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quarta-feira, 9 de novembro de 2005

Silveira de Souza: Nós e o fogo (Nilto Maciel)

Os contos (ou relatos, como quer Silveira de Souza) de O Cavalo em Chamas se filiam a duas vertentes distintas da prosa de ficção. Aquela que se projetou em Murilo Rubião e José J. Veiga, e a que se esmerou em Machado de Assis.

A história curta, tradicionalmente conhecida como conto, não só tem servido de objeto de discussões de ficcionistas e teóricos da literatura em busca de definições, como tem dado ensejo a constantes rebatismos, mercê das transformações que tem sofrido. Muitos encontraram belas e grandiosas definições. Arranjar, porém, novos nomes para o gênero parece tarefa sem proveito. Porque a cada definição e a cada transformação seria preciso um novo batismo. Assim, o termo relato, se serve a Borges, não se amolda a Rubião. Até um mesmo escritor cultua o gênero sob diversas formas. Pode-se chamar de relato “As pulsações”, mas seria desproposital fazê-lo com “Exercícios Burgueses”.

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A maioria dos contos de O Cavalo em Chamas se aproxima da técnica borgeana, quer pelo fantástico das situações, quer pelo enredo. Todavia, dificilmente o leitor médio dissociará o desfecho da narrativa – sempre surreal – do fato narrado. Pelo contrário, por mais fantástico que seja aquele, é quase imperceptível o limite entre o real e o irreal no corpo da narrativa. Exemplos disso são “Questão de Tempo” e “O Braço Direito de Noêmia”. No próprio título do primeiro, esse princípio. Quer dizer, é só uma questão de tempo a transformação do real em irreal. Mera conseqüência.

A metamorfose ou a deformação, nos desfechos, embora irreal, se apresenta como resultado lógico de acontecimentos reais e cotidianos. O leitor pode até imaginá-la, com antecedência. Esses desfechos não poderiam deixar de ser fantásticos. Do contrário, dificilmente o leitor os entenderia como metáforas. O braço de Noêmia, por exemplo, cresce para proteger o personagem-narrador. Se não crescesse desmesuradamente, até transformar-se em jibóia, como o leitor iria associar a idéia de proteção, apadrinhamento, a monstruosidade, coisa suja? Além do mais, esse braço é o direito, ou o da direita.

Noutros contos, entretanto, o elemento fantástico não espera por desfechos. É o que se vê em “Psicocinésia”, em que a filha excita o pai, resultando daí uma fenomenal aceleração de movimentos dos objetos da casa: levitação de cadeiras e pratos, chuva de pedras. O mito do incesto, tão maravilhosamente recriado por Sófocles. Com as mesmas características desta narrativa são “As Pulsações” e “Bugres”, ambas com sabor de mistério.

Embora o irreal esteja presente em quase todo o livro, não é menos verdade que Silveira de Souza seja um machadiano, mesmo nos contos mais fantásticos. Existe, porém, uma profunda diferença de tratamento entre estes e os contos psicológicos. Nuns os personagens são meras representações de entidades abstratas, como o remorso, a vingança, a culpa. A presença deles é imprescindível unicamente por ser impossível escrever prosa de ficção sem personagem. Noutros, importa a relação entre eles.

Em “IRPVII” o tema é a burocracia, já satirizada por inúmeros contistas. Em outros quatro contos a análise psicológica dos personagens assume o primeiro plano. É o que se vê em “Os Pequenos Desencontros” e, sobretudo, em “Exercícios Burgueses”. Bem construídos, num as dificuldades de um casal de reencontrarem o caminho do hotel são a gota d’água para o rompimento da união deles, pretexto para o fim do relacionamento amoroso já minado por “mil pequenos desencontros e frustrações”. O narrador não dá ao leitor, ainda assim, um só indício dessa situação anterior, a não ser nas últimas linhas da narrativa. Noutro, mais machadiano ainda, o clássico triângulo amoroso, duas figuras díspares em diálogo angustiante.

Talvez a visão poética de Jorge de Lima seja isso mesmo que Silveira de Souza conseguiu situar nos seus relatos, porque não estamos imunes às chamas do que chamamos irreal – tão dentro de nós.
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Tempos de mula preta (Nilto Maciel)


Durante sua segunda vida, José Coité viveu rindo e falando. Brincava, tratando os filhos como se fossem os personagens homônimos: vem cá, filho de Sua. E nem podia imaginar que este, justamente o último da árvore, viria a desdizer toda a sua dedução, deixando cair por terra a semente tão fervorosamente plantada.

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Cochilando ou dormindo, arreganhava os dentes e repetia trechos de salmos, parábolas e provérbios de Salomão: “Grita na rua a sabedoria, nas praças levanta a sua voz, do alto dos muros clama”. Convencia-se a si mesmo de que o finado José Coité pecador não merecia ser lembrado. O calado que só abria a boca para blasfemar e insultar, nos dias de embriaguez. Corria os bares, os cabarés, as ruas e os caminhos montado na mula preta, feito um capeta.

Diante dos filhos, da mulher, dos companheiros de crença e dos infiéis falava enquanto ria. Dizia: minha vida foi uma e é esta. A que era fez-se de pecados, sem sentido, besta, perdida. Queimada. A que é, vejam – Jesus me salvou. Sigo, alerta. Roçado. É inverno sem fim. Não enxergavam todos o sulco divisório, nítido?

Vissem, sem maldade: José Maria, o primeiro filho, não se criou. De início, bem querido, gordinho, sadio, sabido, sapeca. Mas, fruto de tempo ruim, de pai danado, seu destino estava traçado: pecador, fadado ao fogo, ovelha negra. Chamuscada. Melhor morrer cedo, antes dos sete anos. E emagreceu, encheu-se de mazelas, apalermou-se, tornou-se malquerido. Chorão, sujo, feio. Definhava a cada versículo.

— Para que viver?

E esticou as canelas, não sabe a cidade como nem de que.

— Doença de menino?

Sinal de que tudo do tempo do pecado deveria desaparecer.
Essa lógica só se desfez no roçado, num dia de cobras apavoradas. E as beatas da cidade resmungaram:

— Foi-se o bode velho.

Onan contava então cinco anos de idade e já carregava a mania de andar só, de fugir dos irmãos, de desaparecer, de se encantar.

— Onde anda esse menino?

Nada de mal, dizia o velho às queixas de Maria. Esquisitices de caçula. É de boa cepa, vai dar um varão. Como os outros, nascidos da vida regrada e devotada ao Pai, a segunda, a autêntica.

A prole, numerosamente bíblica, se espalhava pela casa em harmonia de tempos de paz na tribo: Rute, Samuel, Esdras, Ester, Josué, Isaías, Daniel, Joel, Jonas, Zacarias e Malaquias. Noutro tempo seriam reis e defensores da lei de Deus. Hoje prósperos cidadãos. Conceituados, cheios de vida e filhos, bem postos nas salas, cumprimentados e olhados com admiração.

Vigiados por José e Maria, nunca um deles escorregou numa casca de banana nem roubou frutas nos quintais vizinhos. E brincavam uns com os outros, amigos e mansos. Menos Onan, sempre arredio, jeito de doido. Vivia pelos cantos, escondendo-se, cheio de sestros. E a mãe de olho grelado, espiando, pisando macio, felina. Se Onan corria ao quintal, lá gritava ela. E o menino, assustado, voltava aos pulos, segurando as calças. Se se metia detrás dos móveis, apavorava-se com os berros de Maria. Na hora do banho ou das necessidades, um olho atento furava a fechadura da porta rústica.

— Menino sem-vergonha.

Crescia, estudava, lia, escrevia, triste, mudo. Deu para escrever diários, diabruras cuspidas nos cadernos escolares. E depois sonetos amorosos e amargurados. Indolências, dizia a viúva.
Muito mais tarde, descobriram-lhe versos sem pé nem cabeça:

Teço a rede
onde adormeço
sede de projetar-me
para o matar-me.

E outras sinuosidades a que um pesquisador deu valor e publicação.
Os irmãos gargalharam, mas deram respostas a todas as indagações do estranho.

— Nunca teve namoradas.

Apaixonou-se repetidas vezes por mocinhas de todos os feitios. Por uma tal Rosana perdeu a noção até da língua. Vivia falando asneiras em estrangeiro: tes yeux sont la citerne où boivent mes ennuis. Não conseguia dormir direito, os armadores gemendo em sonhos genesíacos.

— Vai dormir, Onan.

Chegada a fase da barba, teve uma ou outra namorada, passageira, furtiva. Ainda assim, dormia muito, feito um gato velho, lia e escrevia como um poeta, inventava caçadas e banhos de rio demorados, perdido pelos becos e ruelas mais afastadas.

— Possuía desenvolvimento mental incompleto – disseram as notícias policiais, após ouvidos os irmãos.

Tinha 38 anos quando saltou da torre da igreja, ímpio como o pai nos tempos da mula preta.



26 de maio de 1980.
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