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quarta-feira, 9 de novembro de 2005

Tempos de mula preta (Nilto Maciel)


Durante sua segunda vida, José Coité viveu rindo e falando. Brincava, tratando os filhos como se fossem os personagens homônimos: vem cá, filho de Sua. E nem podia imaginar que este, justamente o último da árvore, viria a desdizer toda a sua dedução, deixando cair por terra a semente tão fervorosamente plantada.

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Cochilando ou dormindo, arreganhava os dentes e repetia trechos de salmos, parábolas e provérbios de Salomão: “Grita na rua a sabedoria, nas praças levanta a sua voz, do alto dos muros clama”. Convencia-se a si mesmo de que o finado José Coité pecador não merecia ser lembrado. O calado que só abria a boca para blasfemar e insultar, nos dias de embriaguez. Corria os bares, os cabarés, as ruas e os caminhos montado na mula preta, feito um capeta.

Diante dos filhos, da mulher, dos companheiros de crença e dos infiéis falava enquanto ria. Dizia: minha vida foi uma e é esta. A que era fez-se de pecados, sem sentido, besta, perdida. Queimada. A que é, vejam – Jesus me salvou. Sigo, alerta. Roçado. É inverno sem fim. Não enxergavam todos o sulco divisório, nítido?

Vissem, sem maldade: José Maria, o primeiro filho, não se criou. De início, bem querido, gordinho, sadio, sabido, sapeca. Mas, fruto de tempo ruim, de pai danado, seu destino estava traçado: pecador, fadado ao fogo, ovelha negra. Chamuscada. Melhor morrer cedo, antes dos sete anos. E emagreceu, encheu-se de mazelas, apalermou-se, tornou-se malquerido. Chorão, sujo, feio. Definhava a cada versículo.

— Para que viver?

E esticou as canelas, não sabe a cidade como nem de que.

— Doença de menino?

Sinal de que tudo do tempo do pecado deveria desaparecer.
Essa lógica só se desfez no roçado, num dia de cobras apavoradas. E as beatas da cidade resmungaram:

— Foi-se o bode velho.

Onan contava então cinco anos de idade e já carregava a mania de andar só, de fugir dos irmãos, de desaparecer, de se encantar.

— Onde anda esse menino?

Nada de mal, dizia o velho às queixas de Maria. Esquisitices de caçula. É de boa cepa, vai dar um varão. Como os outros, nascidos da vida regrada e devotada ao Pai, a segunda, a autêntica.

A prole, numerosamente bíblica, se espalhava pela casa em harmonia de tempos de paz na tribo: Rute, Samuel, Esdras, Ester, Josué, Isaías, Daniel, Joel, Jonas, Zacarias e Malaquias. Noutro tempo seriam reis e defensores da lei de Deus. Hoje prósperos cidadãos. Conceituados, cheios de vida e filhos, bem postos nas salas, cumprimentados e olhados com admiração.

Vigiados por José e Maria, nunca um deles escorregou numa casca de banana nem roubou frutas nos quintais vizinhos. E brincavam uns com os outros, amigos e mansos. Menos Onan, sempre arredio, jeito de doido. Vivia pelos cantos, escondendo-se, cheio de sestros. E a mãe de olho grelado, espiando, pisando macio, felina. Se Onan corria ao quintal, lá gritava ela. E o menino, assustado, voltava aos pulos, segurando as calças. Se se metia detrás dos móveis, apavorava-se com os berros de Maria. Na hora do banho ou das necessidades, um olho atento furava a fechadura da porta rústica.

— Menino sem-vergonha.

Crescia, estudava, lia, escrevia, triste, mudo. Deu para escrever diários, diabruras cuspidas nos cadernos escolares. E depois sonetos amorosos e amargurados. Indolências, dizia a viúva.
Muito mais tarde, descobriram-lhe versos sem pé nem cabeça:

Teço a rede
onde adormeço
sede de projetar-me
para o matar-me.

E outras sinuosidades a que um pesquisador deu valor e publicação.
Os irmãos gargalharam, mas deram respostas a todas as indagações do estranho.

— Nunca teve namoradas.

Apaixonou-se repetidas vezes por mocinhas de todos os feitios. Por uma tal Rosana perdeu a noção até da língua. Vivia falando asneiras em estrangeiro: tes yeux sont la citerne où boivent mes ennuis. Não conseguia dormir direito, os armadores gemendo em sonhos genesíacos.

— Vai dormir, Onan.

Chegada a fase da barba, teve uma ou outra namorada, passageira, furtiva. Ainda assim, dormia muito, feito um gato velho, lia e escrevia como um poeta, inventava caçadas e banhos de rio demorados, perdido pelos becos e ruelas mais afastadas.

— Possuía desenvolvimento mental incompleto – disseram as notícias policiais, após ouvidos os irmãos.

Tinha 38 anos quando saltou da torre da igreja, ímpio como o pai nos tempos da mula preta.



26 de maio de 1980.
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