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segunda-feira, 14 de novembro de 2005

Legenda (Nilto Maciel)



De pé, José Cristiano, silaque, calça frouxa. Cigarro pela metade no canto esquerdo da boca, sorriso morrendo nos lábios e nos olhos negros. Cabelo meio assanhado, diferentemente dos demais personagens. Bigode a Estaline e as primeiras rugas identificando muito cansaço para tão pouca vida. Contava então 28 anos de idade, por mais que se queira ou se presuma.

Sentada, pernas estiradas e juntas, Maria Virgínia. Vestido decotado e cheio de voltas, espalhado pelo capim, como uma enorme dália. Não completara ainda 23 anos de idade. Sorriso de meio palmo no rosto belo, como se fosse grande demais a felicidade. No entanto, no dia seguinte foi recolhida a um manicômio, em estado de completa loucura, após a morte do marido.

Aninhado nas coxas grossas de Maria, o pequeno César também sorri. Morreria aos 22 anos de idade, ao participar de uma rixa entre marginais num bar. Sua mãe, ao tomar conhecimento do crime, tornou-se santa. Falam da produção de uma bela imagem sua, a ser adorada pelos cristãos da cidade: os Moretis.

Na fotografia, o menino mostra um ar de estupenda admiração. Olha fixamente para a câmera. Veste calça curta azul-turquesa e blusinha justa de gola larga. Os cabelos longos espalhados pela testa e sobre as orelhas, que não se vêem. Calça botinhas pretas e novas, pelo estado.

Depois da morte do pai e da loucura da mãe, César passou aos cuidados de seus avós maternos, por decisão judicial. Apesar da luta dos avós paternos, que alegaram ter sido Maria a causadora direta da morte de Cristiano. Surgiu então a célebre guerra entre Nascimentos e Moretis, de que resultou até agora a morte de mais de vinte pessoas, inclusive mulheres e crianças. A última vítima, provavelmente assassinada por um Nascimento, foi Maria. Aconteceu em agosto do corrente ano, nas dependências do manicômio onde vivia.

César viveu desde criança de rusgas nas ruas. Vez por outra, sua mãe conseguia burlar a vigilância dos carcereiros e saía a procurá-lo pelas ruas e ruelas da cidade. Um dia se encontraram. Ela já velha, feia, desdentada, suja, magra. Ele violento, robusto, entre a adolescência e a velhice. Abraçaram-se e choraram.

— És tu, meu adorado César Augusto?

— Sim, mãe amada.

— E que fazes no mundo?

— Atiro pedras em monumentos, igrejas, cemitérios...

— Por que não atiras nos homens?

— É verdade! Por que não atirar pedras nos homens?

— São os melhores alvos.

— E tu onde estás?

— Estou presa por loucos.

— E por que não foges para mim?

— Não temos para onde ir. Nosso lugar era meu marido e teu pai.

— E para onde ele foi?

— Para o paraíso.

— É verdade?

— Sim, foi para o paraíso, onde habitam as serpentes.

— Irei procurá-lo.

E se despediram, alegres, como nos velhos tempos de mocidade, infância e felicidade.

Ao fundo, a antiga Igreja do Sagrado Coração de Jesus, com suas largas portas abertas. Alguns fiéis voltam para suas casas. Duas velhas de mãos dadas (talvez irmãs), um velho com uma bengala cabo de cabeça de cascavel e outros rostos ainda no interior do templo. No patamar, um carrinho de fazer e vender pipocas e o provável pipoqueiro a coçar o queixo.

Entre as torres, um céu azul como pano de fundo. Nuvens brancas dão idéia de um crocodilo em perseguição a um carneirinho, um elefante e outras diversas figuras decorativas.

Após desembolsar a bagatela de trinta mil réis, José satisfez as insistências de Maria e apareceram na coluna "Society Braziliense", assinada por Miharbi, do jornal “A República”.

Publicada na edição do dia seguinte, 23 de agosto de 1954, traz a seguinte legenda: “Na foto o Sr. José Cristiano do Nascimento, sua digníssima consorte, D. Maria Virgínia Moreti do Nascimento, que comemoraram ontem mais um aniversário de matrimônio, o terceiro do feliz enlace, e o lindíssimo garotinho César Augusto, filho do casal. O jovem par é muito benquisto em nosso grand monde, razão pela qual foi efusivamente cumprimentado durante todo o dia que passou, em sua mansion, localizada no elegante e fidalgo bairro das Flores”.

No dia 24, José, sem nada pagar, foi notícia em diversos jornais. Desta feita, na primeira página e em letras quase descomunais: SUICIDA-SE CRISTIANO DO NASCIMENTO.

(24/8/76)
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sábado, 12 de novembro de 2005

Avarmas de Miguel Jorge (Nilto Maciel)


Avarmas, livro de contos de Miguel Jorge, vem apresentado por um estudo de Gilberto Mendonça Teles, centralizado na noção de "descontinuidade da história". Tendo como ponto de referência a literatura brasileira do final do século XX, percebe-se no escritor goiano o domínio da palavra e da frase, mesmo que, às vezes, não se contenha no utilizar jogo de palavras, como no conto “Jogos de Argolas” (sem redundância), em que palavra e o objeto "argola" se identificam simbolicamente como meios utilizados para prender, laçar, ganhar. Outro exemplo está na aliteração: "a bateria batucava batuque de baque e babaque". Noutro conto aparece a mesma relação palavra-objeto, desta feita o objeto "chave", mas já no sentido oposto de abrir, libertar, como se vê em “Branco sobre Branco”: "Se ao menos pudesse transformá-las (as palavras) em uma chave"... Miguel Jorge se vale muito da imaginação. Certa crítica vê nisso (o irrealismo, o realismo mágico, o fantástico etc) um pecado grave. Ora, tudo o que vem do homem não pode exceder a própria limitação humana, se é que o homem, ou a realidade, tem limites. Assim, é de se acreditar primeiro numa "debilidade mental" generalizada, que seja incapaz de captar ou entender a mensagem transmitida pelo artista ou, mais concretamente, o vôo de imaginação dos artistas (o mais correto seria dizer memória em vez de imaginação). Assim como palavras e línguas são postas em desuso, também o são as idéias. Mas se um baú é um objeto, é também um símbolo. E se não se fala mais o etrusco ou o cariri, as culturas dos etruscos e dos cariris permanecem na memória do homem. Italianos e brasileiros foram reprimidos para esquecer aquelas línguas e culturas. Kafka descreveu o que retirou do esquecimento. É maravilhosa a descrição de um espetáculo mambembe em que homens lançam mulheres com argolas.

A arte, ao contrário da ciência ou da sabedoria, é um mistério até para seu criador. Porque o artista é também um homem comum, embora momentaneamente arrebatado pelo mistério da arte. O artista não “entende” a arte que ele mesmo reflete, exceto no instante da “criação", ou, melhor dizendo, da captação. Se o chamado artista entende sua chamada arte nem ele nem ela são artista e arte. São copiadores, no pior dos casos, ou técnicos em escrever, no caso do simplesmente escritor. Ou apenas homens inteligentes. O artista não é necessariamente um homem inteligente.

Temístocles Linhares, em 22 Diálogos Sobre o Conto Brasileiro Atual, analisando os contos de Miguel Jorge, diz: "É a maneira de apresentar ocultando, que se nota em Kafka, em Faulkner, dentro do princípio de que em toda arte se praticam processos de mutilação, tanto quanto de previsão e sugestão". Ora, pois, a arte não é espelho liso e inteiriço – é, no máximo, água em correnteza, em tempestade, é apocalipse. Contos como “Véspera de Pânico”, até pelo título, é uma revelação, a lembrar os textos bíblicos. Com Avarmas, Miguel Jorge veio demonstrar que arte literária não é mero exercício de escrever.
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