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domingo, 20 de novembro de 2005

O homenzinho alado e suas lucubrações (Nilto Maciel)



Transformado em pássaro, o homenzinho não conseguia lembrar exatamente o momento em que lhe nasceram asas. E ora repousava nos galhos mais grossos das árvores, ora aproveitava o dia para voar ao lado da passarada miúda.

Decididamente, sua memória não andava em ordem. Talvez em conseqüência da grave transformação física sofrida. Não se lembrava até mesmo se percebera logo a novidade, se sentira medo, alegria ou desespero, se experimentara voar imediatamente após se sentir alado. Recordava apenas de se ter perguntado onde se achavam seus braços, até se convencer da simples conversão deles em asas.

Não conseguia esquecer, no entanto, o momento em que sobrevoava um extenso parque, em vôos rasantes e lentos, como um planador, deliciado com o panorama visto do alto. Avistava uma clareira e sentia vontade de repousar, voltar à terra, pousar no chão. Além do mais, duas figuras minúsculas, talvez presas fáceis para aves de rapina, se mantinham entretidas uma com a outra, sentadas à borda de uma grande pedra.

Feito um bem-te-vi, o homenzinho sustentou-se acima das cabeças das duas criaturas terrestres e, a muito custo, conseguiu reconhecê-las. Sim, podiam ser Eduardo e Batista, dois de seus melhores amigos, companheiros inseparáveis de idéias e ações.

Os dois rapazes conversavam e conversavam, e nem se davam conta da presença daquela figura maiúscula sobre suas cabeças, como uma ameaça. Nada percebiam e nada perceberam, nem mesmo quando o homenzinho alado pousou diante deles e recolheu as asas. Com certeza, não o viam, pois nem sequer se assustaram, nem sequer interromperam a conversa.

Por um minuto, o homem de asas imaginou estarem cegos seus ex-amigos. Sim, talvez não enxergassem mais e só se comunicassem pela fala. E resolveu dirigir-lhes a palavra: "Vocês me viram voando?" Nenhuma resposta. “E como estão vocês aqui na terra?” Nada ouviam, além das próprias vozes. A conversa entre os dois não tinha fim. Falavam de transformações sociais.

O homenzinho não perdeu a paciência. Eduardo e Batista teriam ficado surdos. Não, não podia ser isto. Ora, se fossem surdos, não conversariam um com outro. Mais provavelmente não conseguiam ouvir a sua voz de pássaro humano, talvez baixa demais, talvez excessivamente alta. Sim, os ouvidos deles ouviriam outros sons. Como o bater de asas. Sobretudo asas grandes, como as suas. E pôs-se a bater as asas, como um galo a cantar. Nada cantou, porém. E nem os rapazes notaram o seu esforço.

Decepcionado, dirigiu-se de novo a seus antigos companheiros, agora aos gritos: "Vocês estão perdendo tempo." Encheu os pulmões e voltou a gritar: "Isto não leva a nada, meus amigos." E era como se ninguém estivesse diante deles, como se um micróbio declamasse versos latinos.

Com certeza, Eduardo e Batista não tomavam conhecimento da presença de seu ex-amigo. Ou os ausentes seriam eles? E se os dois não acreditassem na sua existência? Sim, corria um boato segundo o qual ele fora morto. Ou os inexistentes, os mortos seriam os outros dois?

O homenzinho se afastou, a passos lentos, dos rapazes. Continuassem a conversa. Transformassem o mundo, tudo. E não acreditassem nunca na possibilidade da existência de um homem alado. Esquecessem todas as lendas, todos os mitos estudados na escola.

E alçou voo, deixando para trás o bosque, os antigos amigos, a cidade, e foi pousar num matagal distante, depois de longas horas de vadiação pelo céu. Feito um animal lendário, mitológico.
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quinta-feira, 17 de novembro de 2005

O laboratorista Paulo Nunes Batista (Nilto Maciel)


Chamego, o Urubu, de Paulo Nunes Batista, é produto de laboratório, de fazer artesanal. Comecemos pelas histórias que têm por pano de fundo o mundo místico, fantasioso, misterioso do candomblé, do espiritismo. São obras de quem pesquisou, esteve de corpo presente em terreiros de umbanda e outros sítios congêneres. 

Nordestino, Paulo Nunes não deixa de inventar ou reinventar histórias em que o linguajar da região Nordeste é marcadamente parte do entrecho. O linguajar goiano também se faz presente na obra do autor, que há alguns anos vive em Goiás. Em suma, a cultura popular é essencial nesta obra. Daí ser Paulo Nunes um herdeiro dos antigos contadores de histórias, sem deixar de ser um estilista.

Este livro é literatura da melhor qualidade. No entanto, quero destacar dois momentos dele. O primeiro intitula-se “Sempre”. É alegoria, conto alegórico, o que seja, de ímpar invenção. O outro dá título ao todo. Talvez a mais bem realizada página do conjunto. Uma obra-prima.

Paulo Nunes Batista é naturalista, neonaturalista, descritor de seres singulares. Seus perfis psicológicos e físicos são irretocáveis, como nas pinturas impressionistas.

E a poesia? Sim, há momentos de intensa poesia na prosa desse paraibano-goiano. Mesmo nas histórias mais macabras. Veja-se o início de “Monstro”, o ritmo, a cadência das frases. O mesmo se pode dizer do poético-filosófico “Homem ou o quê?”

Este livro é composto de histórias dos mais variados gêneros. “Naninha” é crônica que só cronistas muito sensíveis poderiam compor. Assim também “O último Natal de Mané Saia”. Pungentes. Há também relatos e capítulos de memórias. “O cinto” é escrito de quem habita o território dos espíritos. Depoimento, se quiserem.

Nem tudo em Chamego, o Urubu é água límpida. Ora, ninguém atinge a perfeição em criação artística antes de alcançar a eternidade. Não é demérito isso. Se este poeta nordestino tivesse escrito o mais belo livro em prosa da Literatura Brasileira, certamente não continuaria escrevendo. Pois há neste livro pelo menos duas narrativas muito espichadas, derramadas, excessivas: “Toinhão” e “Interrogatório & Cia Ltda”. Se sofressem alguns cortes, enxugamentos, o sabor de outras histórias estaria neles presente. E o laboratorista Paulo Nunes Batista daria por encerrada a sua missão no laboratório da palavra escrita.
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