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domingo, 20 de novembro de 2005

Wilson Pereira: Narrativas poéticas (Nilto Maciel)



Histórias para crianças e para adultos. Sim, há limites separando umas de outras. Todavia esses limites se tornam imperceptíveis para o leitor ou adulto e mais ou menos familiarizado com a boa literatura que lê uma dessas narrativas para crianças e não sente necessidade de a rotular de “história infantil”.

Os estudiosos costumam chamar de “literatura infantil” e “literatura infanto-juvenil” as obras menores. No entanto, as obras maiores eles não as chamam de “literatura adulta”. Talvez pudéssemos inventar outros rótulos, como “literatura madura” e “literatura idosa”. Uma seria destinada às pessoas entre 30 e 60 anos, mais ou menos. Outra, às pessoas da chamada “terceira idade”. Denominação também adequada a esta última categoria seria “literatura senil”.

Alguns escritores (sobretudo narradores) têm se dedicado a escrever para crianças. São escritores infantis e, ao mesmo tempo, senis. Porém, há alguns anos, pessoas como Jonathan Swift escreveram com enorme criatividade, e suas obras foram e serão lidas, sempre com muito prazer, por crianças, jovens e adultos.

Escritores infantis são aqueles que estão aprendendo a escrever. Os senis são os que nunca aprenderam a escrever.

O poeta Wilson Pereira é também autor do belo livro de narrativas Amor de Menino. Segundo os especialistas em Literatura, trata-se de obra da Literatura Infantil. São histórias de meninos e animais. Ou somente de animais, como a do jerico e da onça, que é uma anedota escrita em linguagem trabalhada e poética. Aliás, o livro todo traz essa linguagem dos bons escritores, dos escritores sem idade definida, mas que nunca chegam à senilidade mental.

Wilson Pereira tem o domínio das técnicas de narrar. Seus personagens são acabados, desenhados, embora os “meninos” sejam sempre meninos, sem grande distinção entre uns e outros, como se todos eles fossem uma criança chamada Wilson. “Ser menino era mesmo muito bom”.(p. 16).

Tudo nas curtas narrativas de Amor de Menino é passado, é infância, é poesia. Não há miséria social, embora hajam dor e morte. Há medo, há os sentimentos comuns a todos nós humanos e, sobretudo, a nós meninos. A poesia da infância. Não poesia infantil, que poesia pueril não chega a ser poesia.

Curiosamente, não há diálogos em nenhuma das histórias do livro. Assim, a linguagem se mantém limpa, trabalhada. Caso Wilson tivesse optado pela utilização do discurso direto, reproduzindo o linguajar rural e infantil, certamente a linguagem não teria a beleza que tem.
O ambiente rural brasileiro, especificamente mineiro, é pintado no livro com riqueza de detalhes: “Manhãzinha fria de inverno. O capim, molhado de orvalho, estava verde-grisalho”.(p.22). As situações são sempre reais e, ao mesmo tempo, de sonho, fantasia. O mundo da criança ou o mundo dos bichos segundo a criança. Daí alguns contos de flagrantes, às vezes episódios de memórias, quase crônicas, como “Arengas”.

As ilustrações de Denise Rochael se casam maravilhosamente aos textos de Wilson Pereira. O traço é primitivo, as cores apropriadas às narrativas e a perspectiva foge à técnica mais tradicional.

As histórias de Amor de Menino são de fácil leitura para crianças, embora não sejam nada infantis, pueris, inacabadas. Pelo contrário, são narrativas de um escritor amadurecido, bom, apto a outras realizações literárias.
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O homenzinho alado e suas lucubrações (Nilto Maciel)



Transformado em pássaro, o homenzinho não conseguia lembrar exatamente o momento em que lhe nasceram asas. E ora repousava nos galhos mais grossos das árvores, ora aproveitava o dia para voar ao lado da passarada miúda.

Decididamente, sua memória não andava em ordem. Talvez em conseqüência da grave transformação física sofrida. Não se lembrava até mesmo se percebera logo a novidade, se sentira medo, alegria ou desespero, se experimentara voar imediatamente após se sentir alado. Recordava apenas de se ter perguntado onde se achavam seus braços, até se convencer da simples conversão deles em asas.

Não conseguia esquecer, no entanto, o momento em que sobrevoava um extenso parque, em vôos rasantes e lentos, como um planador, deliciado com o panorama visto do alto. Avistava uma clareira e sentia vontade de repousar, voltar à terra, pousar no chão. Além do mais, duas figuras minúsculas, talvez presas fáceis para aves de rapina, se mantinham entretidas uma com a outra, sentadas à borda de uma grande pedra.

Feito um bem-te-vi, o homenzinho sustentou-se acima das cabeças das duas criaturas terrestres e, a muito custo, conseguiu reconhecê-las. Sim, podiam ser Eduardo e Batista, dois de seus melhores amigos, companheiros inseparáveis de idéias e ações.

Os dois rapazes conversavam e conversavam, e nem se davam conta da presença daquela figura maiúscula sobre suas cabeças, como uma ameaça. Nada percebiam e nada perceberam, nem mesmo quando o homenzinho alado pousou diante deles e recolheu as asas. Com certeza, não o viam, pois nem sequer se assustaram, nem sequer interromperam a conversa.

Por um minuto, o homem de asas imaginou estarem cegos seus ex-amigos. Sim, talvez não enxergassem mais e só se comunicassem pela fala. E resolveu dirigir-lhes a palavra: "Vocês me viram voando?" Nenhuma resposta. “E como estão vocês aqui na terra?” Nada ouviam, além das próprias vozes. A conversa entre os dois não tinha fim. Falavam de transformações sociais.

O homenzinho não perdeu a paciência. Eduardo e Batista teriam ficado surdos. Não, não podia ser isto. Ora, se fossem surdos, não conversariam um com outro. Mais provavelmente não conseguiam ouvir a sua voz de pássaro humano, talvez baixa demais, talvez excessivamente alta. Sim, os ouvidos deles ouviriam outros sons. Como o bater de asas. Sobretudo asas grandes, como as suas. E pôs-se a bater as asas, como um galo a cantar. Nada cantou, porém. E nem os rapazes notaram o seu esforço.

Decepcionado, dirigiu-se de novo a seus antigos companheiros, agora aos gritos: "Vocês estão perdendo tempo." Encheu os pulmões e voltou a gritar: "Isto não leva a nada, meus amigos." E era como se ninguém estivesse diante deles, como se um micróbio declamasse versos latinos.

Com certeza, Eduardo e Batista não tomavam conhecimento da presença de seu ex-amigo. Ou os ausentes seriam eles? E se os dois não acreditassem na sua existência? Sim, corria um boato segundo o qual ele fora morto. Ou os inexistentes, os mortos seriam os outros dois?

O homenzinho se afastou, a passos lentos, dos rapazes. Continuassem a conversa. Transformassem o mundo, tudo. E não acreditassem nunca na possibilidade da existência de um homem alado. Esquecessem todas as lendas, todos os mitos estudados na escola.

E alçou voo, deixando para trás o bosque, os antigos amigos, a cidade, e foi pousar num matagal distante, depois de longas horas de vadiação pelo céu. Feito um animal lendário, mitológico.
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