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terça-feira, 22 de novembro de 2005

Tragédia no lupanar (Nilto Maciel)


Cena 1



Mada Madaleva senta-se à mesa, pede coca-cola e se põe a pensar. Aspira o próprio perfume, colorida como uma imensa borboleta. Circunvaga num mundo de esperas inúteis, recorda a infância, a família extinta, o antigo palco onde vivera heroínas de amores trágicos. E faz pose, a imitar moças de revistas. Assim, os homens gostarão tanto dela que serão capazes até de cometer desatinos e crimes terrivelmente passionais.


Cena 2



A mesma Madaleva junto à mesma mesa. Bebe a mesma coca-cola e, lânguida, posa para o doce Miguel Ângelo. Pincéis lambuzam a tela, tintas salpicam o chão infecto. A mão felina do pintor reproduz a saia curta godê, os seios ainda belos, os lábios carnudos, a fronte cismadora, a cachoeira negra dos cabelos ondulados. (Miguel buscara o prostíbulo não para pecar, mas para pintar.)



Cena 3



Passos no tablado do velho casarão. Súbito um pontapé escancara a porta. Madaleva desfaz o sorriso estudado e mostra cara de pavor. Uma nesga de sol tinge o chão. Entra Teófilo, assolado por incontrolável ciúme ou masculina inveja. E faz chover enxofre e fogo sobre o jovem pintor. Tomam conta do ambiente sulfuroso odor e compacta fumaça, como a fumarada de uma fornalha.



Cena 4



O modelo, num exemplo de débil sensibilidade, conversa animadamente com o terrível alquimista, esquecidos da tela, do pintor e do crime. Repetem-se os primeiros momentos da cena anterior. Passos no tablado do velho casarão. Súbito um pontapé escancara a porta. Mada desfaz o sorriso estudado. Nervoso, irado, revólver em punho, assoma ao prostíbulo corpanzil tatuado de sereias, marroquinas e peixes alados. Vasculha toda a casa, urrando.
Madaleva – (Sussurrando) Meu irmão!
Teófilo – (Perplexo) Que quer ele?
Madaleva – Procura o homem que me roubou a virgindade.



Cena 5



O tatuado se aproxima de sua irmã, cospe-lhe no rosto, dá-lhe murros e põe-se a gritar: “Fala a verdade, cadela.”
Enquanto isto, traiçoeiro punhal reluzente penetra-lhe as costas largas. Jorram vermelhos rios das escamas das sereias, dos seios das marroquinas e das barbatasas dos peixes.



Cena 6



Madaleva – Por que assassinaste meu irmão?
Narciso – Agi em legítima defesa.
E abraçam-se, abrasam-se, beijam-se avidamente.



Cena 7



A porta do lupanar abre-se languidamente e uma figura de alta linhagem – imagem fiel de Oscar Wilde – desfaz o idílio, com pausada voz:
– É no cérebro, somente no cérebro, que se cometem os grandes pecados do mundo.



Apagam-se as luzes.

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domingo, 20 de novembro de 2005

Wilson Pereira: Narrativas poéticas (Nilto Maciel)



Histórias para crianças e para adultos. Sim, há limites separando umas de outras. Todavia esses limites se tornam imperceptíveis para o leitor ou adulto e mais ou menos familiarizado com a boa literatura que lê uma dessas narrativas para crianças e não sente necessidade de a rotular de “história infantil”.

Os estudiosos costumam chamar de “literatura infantil” e “literatura infanto-juvenil” as obras menores. No entanto, as obras maiores eles não as chamam de “literatura adulta”. Talvez pudéssemos inventar outros rótulos, como “literatura madura” e “literatura idosa”. Uma seria destinada às pessoas entre 30 e 60 anos, mais ou menos. Outra, às pessoas da chamada “terceira idade”. Denominação também adequada a esta última categoria seria “literatura senil”.

Alguns escritores (sobretudo narradores) têm se dedicado a escrever para crianças. São escritores infantis e, ao mesmo tempo, senis. Porém, há alguns anos, pessoas como Jonathan Swift escreveram com enorme criatividade, e suas obras foram e serão lidas, sempre com muito prazer, por crianças, jovens e adultos.

Escritores infantis são aqueles que estão aprendendo a escrever. Os senis são os que nunca aprenderam a escrever.

O poeta Wilson Pereira é também autor do belo livro de narrativas Amor de Menino. Segundo os especialistas em Literatura, trata-se de obra da Literatura Infantil. São histórias de meninos e animais. Ou somente de animais, como a do jerico e da onça, que é uma anedota escrita em linguagem trabalhada e poética. Aliás, o livro todo traz essa linguagem dos bons escritores, dos escritores sem idade definida, mas que nunca chegam à senilidade mental.

Wilson Pereira tem o domínio das técnicas de narrar. Seus personagens são acabados, desenhados, embora os “meninos” sejam sempre meninos, sem grande distinção entre uns e outros, como se todos eles fossem uma criança chamada Wilson. “Ser menino era mesmo muito bom”.(p. 16).

Tudo nas curtas narrativas de Amor de Menino é passado, é infância, é poesia. Não há miséria social, embora hajam dor e morte. Há medo, há os sentimentos comuns a todos nós humanos e, sobretudo, a nós meninos. A poesia da infância. Não poesia infantil, que poesia pueril não chega a ser poesia.

Curiosamente, não há diálogos em nenhuma das histórias do livro. Assim, a linguagem se mantém limpa, trabalhada. Caso Wilson tivesse optado pela utilização do discurso direto, reproduzindo o linguajar rural e infantil, certamente a linguagem não teria a beleza que tem.
O ambiente rural brasileiro, especificamente mineiro, é pintado no livro com riqueza de detalhes: “Manhãzinha fria de inverno. O capim, molhado de orvalho, estava verde-grisalho”.(p.22). As situações são sempre reais e, ao mesmo tempo, de sonho, fantasia. O mundo da criança ou o mundo dos bichos segundo a criança. Daí alguns contos de flagrantes, às vezes episódios de memórias, quase crônicas, como “Arengas”.

As ilustrações de Denise Rochael se casam maravilhosamente aos textos de Wilson Pereira. O traço é primitivo, as cores apropriadas às narrativas e a perspectiva foge à técnica mais tradicional.

As histórias de Amor de Menino são de fácil leitura para crianças, embora não sejam nada infantis, pueris, inacabadas. Pelo contrário, são narrativas de um escritor amadurecido, bom, apto a outras realizações literárias.
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