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segunda-feira, 26 de junho de 2006

Nilto Maciel, o contista (Sânzio de Azevedo)



Escritor nascido no Ceará em 1945 e hoje radicado em Brasília, Nilto Maciel, depois da experiência de Itinerário (1974), surgiu-nos com o livro de contos Tempos de Mula Preta (1981), incursionou depois pela novela, com A Guerra da Donzela (1982), e volta agora ao conto, com Punhalzinho Cravado de Ódio (1986). Anuncia para muito breve um romance, Estaca Zero. Mas aqui desejamos falar é do contista, registrando as impressões que nos deixaram algumas de suas narrativas.

Em Tempos de Mula Preta, chamou-nos a atenção o conto de abertura do livro, “Ave-Marias”, onde encontramos a figura do Coronel Izidoro, “vermelho, peru enraivecido”, furioso porque sua filha, a Maria das Graças (ou Gracinha), anda de amores com o Carlinhos, filho do Dr. Pinheiro. O rapaz testemunha uma cena de lesbianismo entre Zefa e Maria, amante do Coronel: “Zefa derreou-se sobre Maria, beijando-lhe os seios, amassando-lhe o ventre, vigorosa.” O conto é estruturado em planos superpostos, mostrando-nos ora o Coronel a ralhar com a filha, ora Carlinhos lendo um romance no cabaré, ora Gracinha no banheiro, etc. Interessante é que nessa narrativa, de clima fortemente erótico, o romance que o personagem lê não é nenhuma obra naturalista de Júlio Ribeiro ou de Adolfo Caminha; não diz o narrador que livro é, nem há necessidade disso: “Livro aberto diante dos olhos parados, Carlinhos coça o queixo. ‘Abriram-se os braços do guerreiro adormecido e seus lábios; o nome da virgem ressoou docemente.’ “Ou, noutro passo: “Os pés de Carlinhos tremem no Chão luzidio da sala, as mãos agarram o livro antigo. ‘A juriti, que divaga pela floresta, ouve o terno arrulho do companheiro.’” Mas essas transcrições não são gratuitas, pois coincidem com a evolução do relacionamento do rapaz com Gracinha. Tanto assim que quando alguém pergunta a Carlinhos se sua mãe está, diz o narrador: “Ajeita-se, gagueja, fixa os olhos nas palavras. ‘Tupã já não tinha sua virgem na terra dos tabajaras.’” (Sabemos nós que todas as transcrições são do capítulo XV de Iracema, de Alencar.) O certo é que, enquanto o Coronel, cheio de ódio, espanca sua amante no cabaré, “Geme Maria das Graças no chão verde. Geme Carlinhos sobre o corpo róseo da moça. Os sinos da Matriz badalam seis vezes.”

A voz indecorosa (Nilto Maciel)



 
João Canoro passava quase todo o tempo nas ruas. Não perdia um minuto dentro de casa. Dormia, acordava e corria para a rua. Como um pássaro que fugia da gaiola. E punha-se a voar, isto é, a andar, andar, andar, até cansar. Tanto gostava de andar pelas ruas que jamais quis ser escriturário, balconista, barbeiro. Preferiu ser office-boy durante alguns anos, caixeiro viajante por mais outros, oficial de Justiça incompetente, vendedor de assinatura de todas as revistas...

Embora andasse como poucos, João nunca se julgava cansado e, mais mundo houvera, mais andara. Calculava, insatisfeito, já ter dado algumas voltas ao mundo. Queria bater recordes. Sem alardes. Modestamente.