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domingo, 2 de julho de 2006

Adeus, Alzira (Nilto Maciel)

(Alvaro Dias, autor da foto)



Cinquenta anos. Hã-hã. O pessoal brinca com isso. Quanto mais anos, mais lascado o homem. Muita vida passada. Muita água corrida debaixo da ponte. Os rios correm para o mar e se perdem nesse mundão. É a vida, a vida que se vai. A infância, a juventude, os bons anos. Muitos anos. Tempo que não acaba mais. Mas o que passou, passou. E eu vivi o quê? Metade da existência com essa jumenta. Uma égua, depois de velha. Não serve mais para nada. Faz tudo como antigamente. Só sabe abrir as pernas. No começo, um paraíso, parecia um nunca acabar de prazer, todas as noites, tudo numa paixão doida, num amor sem tamanho. Amor? Isso existiu de verdade ou foi só impressão? A gente falava de amor, amor, amor, jurava amar um ao outro para sempre, e nem notou que um dia essa palavra não valia mais nada. “Amor, você está bem? Boa-noite, amor”. Qual nada! Amor e bosta são uma coisa só. Basta puxar a descarga e vai tudo de esgoto abaixo. Agora, paixão existiu, aquele fogo danado dentro das carnes, queimando as tripas, agitando o corpo, aquele desejo animal, furioso, incontrolável. 

segunda-feira, 26 de junho de 2006

Nilto Maciel, o contista (Sânzio de Azevedo)



Escritor nascido no Ceará em 1945 e hoje radicado em Brasília, Nilto Maciel, depois da experiência de Itinerário (1974), surgiu-nos com o livro de contos Tempos de Mula Preta (1981), incursionou depois pela novela, com A Guerra da Donzela (1982), e volta agora ao conto, com Punhalzinho Cravado de Ódio (1986). Anuncia para muito breve um romance, Estaca Zero. Mas aqui desejamos falar é do contista, registrando as impressões que nos deixaram algumas de suas narrativas.

Em Tempos de Mula Preta, chamou-nos a atenção o conto de abertura do livro, “Ave-Marias”, onde encontramos a figura do Coronel Izidoro, “vermelho, peru enraivecido”, furioso porque sua filha, a Maria das Graças (ou Gracinha), anda de amores com o Carlinhos, filho do Dr. Pinheiro. O rapaz testemunha uma cena de lesbianismo entre Zefa e Maria, amante do Coronel: “Zefa derreou-se sobre Maria, beijando-lhe os seios, amassando-lhe o ventre, vigorosa.” O conto é estruturado em planos superpostos, mostrando-nos ora o Coronel a ralhar com a filha, ora Carlinhos lendo um romance no cabaré, ora Gracinha no banheiro, etc. Interessante é que nessa narrativa, de clima fortemente erótico, o romance que o personagem lê não é nenhuma obra naturalista de Júlio Ribeiro ou de Adolfo Caminha; não diz o narrador que livro é, nem há necessidade disso: “Livro aberto diante dos olhos parados, Carlinhos coça o queixo. ‘Abriram-se os braços do guerreiro adormecido e seus lábios; o nome da virgem ressoou docemente.’ “Ou, noutro passo: “Os pés de Carlinhos tremem no Chão luzidio da sala, as mãos agarram o livro antigo. ‘A juriti, que divaga pela floresta, ouve o terno arrulho do companheiro.’” Mas essas transcrições não são gratuitas, pois coincidem com a evolução do relacionamento do rapaz com Gracinha. Tanto assim que quando alguém pergunta a Carlinhos se sua mãe está, diz o narrador: “Ajeita-se, gagueja, fixa os olhos nas palavras. ‘Tupã já não tinha sua virgem na terra dos tabajaras.’” (Sabemos nós que todas as transcrições são do capítulo XV de Iracema, de Alencar.) O certo é que, enquanto o Coronel, cheio de ódio, espanca sua amante no cabaré, “Geme Maria das Graças no chão verde. Geme Carlinhos sobre o corpo róseo da moça. Os sinos da Matriz badalam seis vezes.”