Translate

sábado, 26 de agosto de 2006

A literatura como forma de ilusão: Entrevista a Linaldo Guedes

(Nilto Maciel)

Cearense de Baturité, Nilto Maciel vem se destacando como um dos bons nomes da literatura contemporânea, principalmente no campo da prosa de ficção. Recentemente, lançou mais uma obra: “A leste da morte”, pela Editora Bestiário. É um livro de contos com textos que têm muito do elemento fantástico, mas sem usar isso como característica única de sua prosa.
Nilto reside em Fortaleza, onde edita a revista Literatura desde 1991. Publicou diversos livros e tem contos e poemas publicados em esperanto, espanhol, italiano e francês. Nesta entrevista, fala da sua obra e da sua visão do que vem acontecendo em termos de literatura no País. “A literatura é como a religião, a política, o sexo. Ninguém vive sem ilusão”, afirma.

Por que intitular sua nova coletânea de contos de “A leste da morte”?
Em certa época, as coleções de contos no Brasil traziam títulos como “Maria Bonita e outras histórias”. Machado de Assis usava outro método, assim como Guimarães Rosa, que davam aos seus livros títulos singelos, como “Várias histórias”, “Contos fluminenses”, “Primeiras estórias”. Eu prefiro dar ao livro o título de um dos contos, sem aquele “e outras histórias”. Como não há unidade temática em meus conjuntos de narrativas, opto pelo título que me parece mais poético ou sonoro. Questão de gosto. O leitor pode até não gostar dos meus títulos.

Alguns críticos vêem a predominância da literatura fantástica em suas narrativas. Como você trabalha essa tendência em sua obra?
Por muito tempo fui leitor dos românticos; depois me dediquei aos realistas. No entanto, eu buscava a loucura, o incomum, o diferente. Como me deliciei quando li Julio Verne! Os contos de fada também sempre me fascinaram. A literatura gótica eu a conheci ainda adolescente. Poe muito mais tarde, assim como Kafka, os mestres do realismo mágico, Borges, Rubião, José Veiga. Na verdade, eu não queria escrever contos realistas, histórias propriamente ditas. Meu primeiro livro – Itinerário – é constituído de pinturas, rascunhos, observações. Muito mais filosofia do que ficção ou literatura. O que me chama a atenção num personagem é o lado torto dele. O que o distingue dos outros. E isto me leva ao picaresco.

Aliás, vejo também esse lado muito forte em sua obra, mas em “A leste da morte” o elemento fantástico vem cercado de muita leveza, diria até parecendo um conto infantil, como em “Trem-fantasma”. Você concorda?
O chamado conto infantil ou de fada eu conheci de ouvir. Na infância nunca li as histórias de Branca de Neve, de Chapeuzinho Vermelho, etc. Os irmãos Grimm, Charles Perrault só li muito depois. Assim como Jonathan Swift. Você tem razão: o fantástico em mim é leve, infantil, muito próximo do imaginário infantil. Pode haver um cururuzão? Por que não? Outra fonte de minha criação é a mitologia clássica (grega e romana), a filosofia e a História. Isto é, o passado, o antigo, o homem pré-moderno.

Também não existiria algo de surreal em alguns contos deste livro?
No sentido etimológico da palavra, sim. Não o surrealismo canônico. Como disse, eu sempre busquei o além do real, ou o super-realismo.

Percebo também intertexto com algumas obras e autores, como Kafka, Neruda, Borges e outros nos contos deste livro. Fale um pouco sobre isso.
Faço isso conscientemente. Mas não somente com obras clássicas ou escritores muito conhecidos. Há trechos de poemas de Francisco Carvalho em muitos de meus contos. Há versos de canções populares. Gosto também de inventar (o que não é nada novo nem original) escritores e obras literárias. O romance A Rosa Gótica é todo uma invenção de obras e escritores. Ao lado de obras e autores reais aparecem obras e autores irreais (imaginários). O próprio Romance da Rosa Gótica (a obra mencionada pelo protagonista) é pura ficção.

Há um conto, feito sob encomenda para o livro organizado por Rinaldo de Fernandes sobre Guimarães Rosa. É difícil escrever sob encomenda?
Não, não é difícil. O que ocorre é um medo de não corresponder ao pedido. Na verdade, gosto de escrever por inspiração (palavra em desuso). E ela vem da leitura de um poema, de um conto, de uma notícia, do vôo de uma borboleta, de tudo. Vem de tudo, mas quase nunca o “inspirado” está atento à inspiração. A vida agitada de hoje desvia a atenção do homem das pequenas ocorrências que sugerem poemas, contos, canções, etc. O artista é um distraído da realidade dos outros. Dizem que Guimarães Rosa escrevia um conto, muito distraído do mundo, e foi chamado a atenção: “O mundo pegando fogo e você aí a escrever”. E ele teria respondido: “Não me atrapalhe, que estou escrevendo”.

Também vejo em alguns contos personagens escrevendo poemas ou querendo publicar livros. A literatura continua sendo uma necessidade nos tempos de hoje?
A literatura é necessária em muitos sentidos. Sem ela, o que seria do idioma? O que seria das comunicações? É possível aprender a ler e escrever sem literatura? Fala-se da morte do livro. Não acredito nisso. O livro é uma das melhores invenções do homem. E, se o livro morrer, mesmo assim a literatura continuará viva. Gravada a voz, na tela do computador, onde quer que seja. A literatura é como a religião, a política, o sexo. Ninguém vive sem ilusão. Por mais atéia que seja uma sociedade, ainda assim a religião sobreviverá. O homem nunca deixará ser um animal político. A droga, que é tão antiga quanto a humanidade, é outra ilusão necessária. O que não é necessário hoje? A bebida alcoólica? O fumo? Tudo é necessário. Até a guerra. Até a violência. Se alguma ou algumas dessas culturas desaparecer, talvez a humanidade desapareça. Imagine um mundo sem homicídio, uma sociedade muito bem organizada, pacífica. Um dia, alguém tratará de matar o vizinho. Haverá estupefação geral. Ao final, todos compreenderão que há muito não se matava um homem, mas...

Aliás, como você vê a literatura atual, nestes tempos de internet onde as facilidades para divulgar seus escritos são bem maiores? Não corremos o risco de todo mundo se achar escritor, por causa de ferramentas como os blogs da internet?
Já são milhares ou milhões os escritores ditos internéticos. Poucos, porém, apresentam obras de valor literário. Como sempre foi, desde o início dos tempos, desde os primeiros cronistas. Haverá duas classes de escribas: a dos criadores e a dos repetidores, dos rascunhadores, dos eternos aprendizes. Os leitores saberão distinguir uns de outros.

Você edita uma revista literária no Ceará desde a década de 90. Fale sobre essa experiência.
Os suplementos literários foram desaparecendo aos poucos, como os dinossauros. Não creio na hipótese da morte deles num só momento. As revistas literárias sempre foram “igrejinhas”. Coisas do homem. E necessárias. Em 1975 iniciamos em Fortaleza um movimento jovem que redundou na criação da revista O Saco, no ano seguinte. Queríamos publicar nossos contos e poemas. A experiência nos levou às editoras do Rio e de São Paulo. A revista durou quase um ano. Em Brasília, para onde fui em 1977, conheci muitos escritores. E continuei a me corresponder com centenas de amigos de todo o Brasil, desde o tempo do Saco. Propus a alguns deles a criação de uma revista literária. Muitas dificuldades, objeções. Aos poucos, um grupo pequeno se formou. Gente de todo o Brasil. A revista seria patrocinada pelo grupo e teria por nome Literatura. O que ocorre até hoje. Em 1992 consegui editar o primeiro número. As colaborações são dos patrocinadores e de convidados. A tiragem é pequena, a distribuição é feita a bibliotecas públicas, universitárias, comunitárias, entidades culturais, jornalistas, professores, estudantes, interessados em geral. Temos uma lista de mil nomes. E assim se mantém a revista há quinze anos.

Como você avalia o intercâmbio feito entre os autores nordestinos atualmente? A Paraíba conhece o que se produz no Ceará e vice-versa?
Sempre houve essa dificuldade de intercâmbio entre os nordestinos. Conheço escritores de todo o Brasil, mas é bem capaz de me corresponder mais com gaúchos ou mineiros do que com paraibanos ou sergipanos. Não sei como explicar isso. Parece-me que existe um ciúme doentio ou outra besteira sem nome.

Qual a importância de eventos, como as bienais do livro, para ampliar este intercâmbio?
Não vejo nas bienais o melhor caminho para se ampliar o intercâmbio. A Internet, os sites, os blogs são o caminho mais largo, mais propício à aproximação dos escritores, sem dúvida. Ora, tudo caminha para a virtualidade mesmo.

Qual o espaço para o autor nordestino no mercado editorial nacional? Existe este espaço?
O espaço sempre foi curto. O romance de 30 só despontou pela carência de outra literatura no Brasil, por motivos político-sociais, etc. Os escritores de todo o país têm dificuldade de publicar. É uma questão editorial, de mercado, nacional e não regional. Uma questão social, educacional, cultural. A renda do brasileiro é pequena, a escola é precária, o hábito de ler não é incentivado, etc. Tudo afasta o brasileiro do livro.

(Correio das Artes, João Pessoa, PB, 26 e 27 de agosto de 2004)
/////

Amapa (Nilto Maciel)



 
Liana Bennato sorriu e fez mais uma pergunta. Se Amapa conhecia o Amapá. O grande astro também sorriu e tudo nele brilhou: os dentes, os olhos, os brincos, o cabelo.

O homem e a mulher não despregavam os olhos da televisão, enquanto as crianças brincavam, sentadas a um canto da sala.

— Não façam barulho.

Amapa não parava de sorrir e brilhar, e a bela repórter enrodilhava-se toda diante dele. O grande público certamente delirava à frente dos televisores. Como o homem e a mulher que ralhavam com as crianças em brincadeira.