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quarta-feira, 20 de setembro de 2006

As insolentes patas do cão (Nilto Maciel)


Daquela noite lembro quase nada, tudo a se confundir na memória. Chego a pensar que foram muitas as noites, condensadas numa só ao longo do tempo e da angústia crescente. Às vezes ainda me digo: foi um sonho, foram muitos sonhos, misturados a lendas, histórias de trancoso, simples imaginações.

Brincávamos na sala, meus irmãos e eu, de trenzinho de caixas de fósforo, de bois e cavalos imaginários, de artista e bandidos de gibi, qualquer fantasia. E não existiam homens como nosso pai, nem mulheres como nossa mãe, e muito menos cachorros como aquele que nos apareceu de repente, patas à janela, a latir para dentro de nosso mundo. 

Um narrador (Anderson Braga Horta)



 
O premiado ficcionista Nilto Maciel reapresenta aos seus leitores, em 1990, sua obra de estréia: o livro Itinerário, lançado em 1974, em Fortaleza, em edição do Autor. Todos bem cuidados em fundo e forma – o que desde o início caracteriza a literatura de Nilto Maciel –, destaca-se dentre eles o conto de abertura, “Aqueles Homens Tristes”.

Prosseguindo esse justamente louvado Itinerário, sempre fiel a uma reconhecida vocação de narrador, Nilto publica agora o oitavo livro (o quarto de contos): As Insolentes Patas do Cão.
Nele nos deparamos com narrativas que talvez pudéssemos qualificar como psicológicas, a exemplo da primeira, “Ícaro”, muitas delas na pauta do fantástico (“O Vencedor”, “A Última Festa de um Homem Só”), outras tocando a tecla da denúncia (“Eucaristia”) ou da sátira (“Mundo Livre”). Em todos os casos, mesmo quando têm a aparência de fragmentos de vida, como “Joana D’Arc e os Amantes”, essas histórias sempre muito curtas mostram um quê de non-sens, ou uma atmosfera de irrealidade, de sonho, de alucinação (nalgumas páginas parece coar-se o influxo de Borges). Um ou outro conto mereceria mais acurado acabamento, que “arredondasse” a fabulação, lhe desse mais coerência (citaria “Um Simples Boneco”); fora de mais, entretanto, exigir que todos tivessem a completitude exemplar de um “Rosa dos Ventos”.

(Sob o Signo da Poesia: Literatura em Brasília, Ed. Thesaurus, Brasília, 2003, p. 334)
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