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sábado, 13 de janeiro de 2007

Ode à tarde (Nilto Maciel)



Um passarinho cansou de voar e pousou num galho. Cantou uma ode à tarde e tencionou alimentar-se. Voou ao chão e defrontou uma serpente. O guizo dela agitou-se.

— Por que me olhas assim, cascavel?

O pássaro deu um saltinho para trás. Melhor não esperar resposta. Saltitou, deu pequenos voos ao redor do ofídio.

— Tu me odeias porque não sabes voar, não é? Ora, se voasses, o que seria dos pequenos seres como eu? Contenta-te com rastejar.

Cantou trecho da ode à tarde e riu.

— Também me odeias porque não sabes cantar? Eu canto porque não conheço o ódio.

Calada, a serpente mirava o passarinho. E o seduzia com os olhos. Falando e cantando, a avezinha também mirava a cobra.

E deu-se o bote.
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A rosa gótica (Fernando Py)




Romance sobre um romance, a obra de Maciel contém pontos de contato com a de Milton Coutinho, mas sobretudo parece ter mais semelhança com O nome da rosa, de Umberto Eco. Trata-se, na verdade, de história de um bibliófilo erudito, Lamartine, primo do narrador, dono de uma biblioteca vastíssima de obras raras e medievais, um indivíduo que teria traduzido um livro estranho, O Romance da rosa gótica, escrito provavelmente entre 1245 e 1249, em língua d’oc, composto de 4519 versos alexandrinos. A partir dessa informação, logo no começo do livro, Nilto Maciel (ou melhor, o narrador) nos envolve numa trama de desencontros e descaminhos, onde muitas vezes são as palavras, mal interpretadas ou significando coisa diversa do que parecem, que comandam a narrativa; o narrador sente-se confuso diante das informações bibliográficas de que dispõe, e, após a morte do primo, folheando minuciosamente os cadernos de memórias que o falecido deixara, vai descobrindo casos e fatos antigos, de que pouco ou nada se lembra, misturados às próprias reminiscências. Dessa leitura, vai emergindo aos poucos, um mundo de livros e experiências, modificando a idéia que o narrador se fazia do primo bibliófilo, e, pior, chega a duvidar da existência real de Lamartine e de si mesmo. A saída seria a publicação das memórias e das cartas deixadas pelo primo. Mas, ainda aí, não seria aquilo tudo resultado de um tremendo equívoco? Teriam existido mesmo O Romance da rosa gótica e os autores e personagens citados? O narrador se debate em sua individualidade, da qual principia seriamente a duvidar. E a duvidar da existência de seus leitores.

(Tribuna de Petrópolis, Petrópolis, RJ, 10/10/1999)
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