Translate

sexta-feira, 6 de julho de 2007

A cidade morria devagar (Enéas Athanázio)



A pequena cidade de São Roque de Minas definhava na letargia de uma vida sem futuro, agravada ainda mais pelo desmembramento de Vargem Bonita, berço do rio São Francisco. Ali tudo marchava para trás, a olhos vistos, sem que alguma panacéia salvadora pudesse ser entrevista. Não possuía agência bancária, o comércio fraco perdia fregueses para a cidade vizinha, os aposentados recebiam em outras praças, a pecuária e a agricultura claudicavam, a educação e a saúde eram precárias. Ninguém atinava com a solução, os filhos da terra, angustiados, só pensavam em emigrar e as mudanças se sucediam, tal como num conto meu, já bem antigo. Só que a aparente solução, em minha estória, veio de repente, nas asas de um bilhete lotérico, enquanto no caso mineiro ela chegou devagar e com tremenda luta: foi quando lá aportou, disposto a viver na terra natal, o recém-formado agrônomo João Leite, jovem e solteiro. Chegava com a decisão heróica, talvez quixotesca, de tirar da terra sáfara o sustento e, um dia, a própria riqueza.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

A reunião (Nilto Maciel)




















Os homens se acomodaram ao redor da grande mesa. Falavam baixo, cochichavam, mãos postas sobre a tábua ou os papéis. Que notícia traria o Presidente? Teria alguma relação com a morte do vereador de Sapoapé? Não, Sapoapé não – Cipoaté. Ou com o nascimento do cabrito com duas cabeças? Possivelmente não. Aquilo interessava muito mais aos biólogos do que aos políticos. Um ou outro alisava garrafinhas com água e copos. A luz das lâmpadas no teto não provocava sombras. Súbito a grande porta se abriu e por ela entrou o Presidente, boca cheia de sorrisos e bons-dias. Os ministros se levantaram de uma vez, como se tomados de repentino susto. Estrépito de cadeiras arrastadas no chão. O coro de vozes roucas retribuiu a saudação. A autoridade maior se sentou e, com um aceno, autorizou o sentar-se de seus auxiliares. Olhos fitos no rosto do comandante, os homens nem sequer piscavam, paralisados, imóveis, inertes. O que diria o chefão? Sapoapé, Cipoaté, cabrito, vereador? Olhar vidrado, ele engolia palavras, sem mastigar. Um ou outro ministro cruzava as mãos suadas. Nenhuma sombra se mexia sobre a mesa, nas paredes, no chão. E nada de o mandachuva abrir a boca. Ao longe, garçons cochilavam, surdos e mudos. A ponta do sapato de um cupincha encontrou a ponta do sapato de outro cupincha à sua frente. Arregalaram os olhos. Qual o significado daquilo? Estaria ficando louco? Retirasse o pé dali, imediatamente. Deixasse de gracinhas. Alguém ousou levar as mãos a um copo. Reprimenda geral, com os olhos. Não fizesse aquilo. Deixasse a autoridade se servir primeiro. O silêncio fazia ouvirem-se os mais remotos e insignificantes ruídos: na boca de um, nos lábios de outro, a respiração de fulano. Olhares se cruzavam de ponta a ponta. O do vizinho à esquerda do chefe fulminava o sétimo à direita dele. O terceiro à direita piscou discretamente para o quinto da coluna frontal ao frontispício central. Por que o homem não falava nada? Teria perdido a fala? Estaria dormindo? Seria sonâmbulo? Teria enlouquecido? E se o interpelassem? Quem o faria? Não, ninguém ousaria interromper o sono do Presidente.
A mim cabia somente filmar a reunião. E também nada dizer ou perguntar.
Fortaleza, agosto de 2005
/////