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quarta-feira, 3 de outubro de 2007

O dragão (Anderson Braga Horta)





Eu levo um dragão comigo.


Outros têm um gato, um cão,
um passarinho, um lagarto,
um sapo, uma tartaruga
por bicho de estimação.


Eu,
tenho um dragão.


Se o dragão é meu amigo
não sei: ele me devora
mente, sonhos, coração.
Ele rouba o que eu escrevo
mesmo antes que o tenha escrito,
me embaralha os pensamentos,
faz sentir o que não sinto,
namora a mulher que eu sonho
e inda me chama de irmão.


Carrego um dragão comigo
como quem leva o seu cão.


Uns alimentam no peito,
a vida toda, um poema
ou qualquer outra ilusão:
capa de herói, luz de sábio,
halo de santa paixão.


Eu alimento um dragão.


Ele me esfola, me estripa,
me cospe fogo, me engana,
ah! e diz que é meu irmão.
Ele me mata! e é, no entanto,
quem me permite viver.


Eu tenho um dragão comigo,
meu irmão, meu inimigo,
meu sósia e minha abusão;
e ele sou eu, que sou ele,
e é meu verdugo e meu cão.
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segunda-feira, 1 de outubro de 2007

O perdão (Nilto Maciel)

















(El Velorio, 1972, de Carmelo Sobrino)


“– Tu agüenta mesmo um homem?”
Os anões, Moreira Campos

O anão chorava abraçado ao corpo da anã. Descontrolado, fazia a rede balançar, como se embalasse a morta. Uma vizinha entrou no casebre. Por que chorava o anão? Nem sequer olhou para a mulher. Outros vizinhos se aproximaram da porta da casinha. Meninos tentavam sondar o interior da sala e saíam correndo para o mar. Amanheceu morta, o coração parado. Pobre Lourdinha! Coitada, deve ter morrido dormindo. Melhor assim; não sofreu para morrer. O anão chorava sem parar. Acendessem uma vela. Onde arranjar vela? Uma mulher se esgueirou. Lembrava-se de um toco de vela em cima da mesa. Ia num pé e voltava noutro. Começassem a reza. O bater das ondas na praia cadenciava a reza. Ave-maria, cheia de graça. Trouxeram uma garrafa de cachaça. O anão recusou a bebida. Precisava chorar. Sua pobre Lourdinha havia sofrido muito. Não por causa dele, mas dos outros. Nunca nela bateu e ela estava ali como testemunha. Outros, sim, quiseram usar o corpo dela, tão pequeno, como de menina. Como aquele negro safado, anos atrás. Consolavam o anão. Bebesse um tiquinho para se acalmar. Ele voltava à rede, ao corpo da mulher. Ave-maria, cheia de graça. Acenderam o toco de vela. Ia ter caixão? Procurassem o padre na igreja. E se Lourdinha estivesse ainda dormindo? Costumava beber muito de noite? Nunca, nunca bebia. E como tinha sido a história do negro? Muitos anos atrás, quando ainda moravam num armazém abandonado, perto do Mercado Central, um homem arrombou uma das portas. Acordaram assustados. Na mão do bandido o relógio de ouro de Lourdinha. E o pior: o deboche, a perguntar se ela agüentava mesmo um homem. Não conseguia esquecer aquilo. Anos e anos passados e ainda assim a figura do negro aparecia diante dele, a resmungar imundícies. Depois daquilo, Lourdinha nunca mais foi a mesma, sempre nervosa, com medo de tudo e de todos, chorosa, querendo ir embora para bem longe. Uma casinha na beira da praia. Não rezavam mais, a garrafa de cachaça vazia e o toco da vela apagado. E o padre? Tome um golinho, vizinho. Não lhe pronunciavam o nome nem o chamavam de anão. Quem ia arrumar a defunta para o enterro? Súbito assomou à porta a figura musculosa de um negro. O anão arregalou os olhos, fez um esgar, rangeu os dentes, retesou-se todo. E correu para junto da rede e do corpo da anã. Os outros se afastaram para os cantos das paredes. O mar rugia feito um monstro em fúria. O visitante juntou as mãos, como se fosse rezar, e disse: vim pedir perdão pelo que fiz e trazer um relógio de ouro para a sua mulher.
Fortaleza, 10/9/2004.
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