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quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Mea culpa (Nilto Maciel)

















Algumas horas após o cometimento do crime, familiares, amigos e vizinhos da vítima se dirigiram à delegacia de polícia da pequena cidade. Revoltados, gritavam, exigiam a imediata prisão do criminoso, ameaçavam invadir o prédio. Se o celerado já estivesse preso, que o soltassem. Queriam linchá-lo. A multidão crescia e a rua parecia em pé de guerra. Nenhum soldado aparecia. Passados alguns minutos, o delegado se aproximou da porta, aparentemente muito calmo. O povo urrava sem parar. Cadê o criminoso? Queremos fazer justiça! O homem pediu serenidade de ânimo e silêncio. E iniciou breve discurso. Meia dúzia de frases sem sentido, obscuras, incompreensíveis, como se falasse latim. Para encerrar, convidou as pessoas a se dirigirem à sua sala. Uma a uma ou casal após casal. Primeiro os pais da vítima. Fizessem fila. Dois minutos depois, o casal saiu, silencioso e cabisbaixo. E caminhou na direção de casa. A terceira pessoa voltou mais silenciosa e mais cabisbaixa ainda. E assim aconteceu com todos e a rua da delegacia voltou à paz de antes.

Passaram-se dias, meses, anos, e nunca mais na pequena cidade se falou do crime ou do criminoso. Na rua os cidadãos apenas se cumprimentavam, ainda cabisbaixos: bom-dia, boa-tarde, boa-noite. E voltavam para suas casas, calados.

Fortaleza, 24/25 de setembro de 2004.
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quarta-feira, 3 de outubro de 2007

O dragão (Anderson Braga Horta)





Eu levo um dragão comigo.


Outros têm um gato, um cão,
um passarinho, um lagarto,
um sapo, uma tartaruga
por bicho de estimação.


Eu,
tenho um dragão.


Se o dragão é meu amigo
não sei: ele me devora
mente, sonhos, coração.
Ele rouba o que eu escrevo
mesmo antes que o tenha escrito,
me embaralha os pensamentos,
faz sentir o que não sinto,
namora a mulher que eu sonho
e inda me chama de irmão.


Carrego um dragão comigo
como quem leva o seu cão.


Uns alimentam no peito,
a vida toda, um poema
ou qualquer outra ilusão:
capa de herói, luz de sábio,
halo de santa paixão.


Eu alimento um dragão.


Ele me esfola, me estripa,
me cospe fogo, me engana,
ah! e diz que é meu irmão.
Ele me mata! e é, no entanto,
quem me permite viver.


Eu tenho um dragão comigo,
meu irmão, meu inimigo,
meu sósia e minha abusão;
e ele sou eu, que sou ele,
e é meu verdugo e meu cão.
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