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quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Literatura e desvario (Henrique Marques Samyn*)




Nilto Maciel é, mais do que escritor, um guerreiro das letras. Mantém heroicamente, desde 1991, a revista Literatura, uma das poucas publicações brasileiras dedicadas exclusivamente às letras; paralelamente, constrói uma premiada obra como romancista e contista, além de assinar artigos, ensaios e poesias.
Carnavalha (Bestiário, 2007), sua obra mais recente, é uma espécie de romance em retalhos, construído por meio de uma laboriosa montagem de narrativas. O tênue fio que as une, o próprio motivo carnavalesco, dá azo ao vertiginoso desfile de cenas que se desenrola em torno de Zuza, bêbado e gauche, centro deste universo em que tudo tende ao desvario. O texto de Nilto comumente habita a fronteira entre o real e o fantástico, limite que também Carnavalha, com freqüência, desconhece; assim é que a narrativa entrelaça passagens em torno das mais prosaicas situações com textos de evidente carga simbólica. Carnaval, mundo feito máscara: nada é o que parece ser.

Se rótulos fossem necessários, talvez fosse possível qualificar Carnavalha como um romance etnográfico; categorizações, todavia, pouco importam no tocante à literatura, e mais vale observar que Nilto Maciel mergulha no universo carnavalesco para extrair dele a matéria-prima de sua criação literária – um romance em que a essência do carnaval mescla-se com a própria marcha da existência. Nas narrativas de Carnavalha, o que há é um desfile de efêmeras criaturas cujas vidas, árduas e dolorosas, sôfregas e retortas, só encontram algum sentido nos delírios dos que as vivem. Ainda assim, somos capazes de sentir, por esses miseráveis seres, alguma empatia – talvez por nos semelharmos mais a eles do que gostaríamos de crer. A navalha de Nilto Maciel fere, afinal, nossa própria carne.

*Henrique Marques Samyn: escritor, tradutor e pesquisador acadêmico, vive no Rio de Janeiro. Autor de Poemário do desterro e de diversos artigos acadêmicos. Sua obra literária já foi publicada em diversos periódicos brasileiros, na Venezuela e na Espanha. Cursa atualmente doutorado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, com tese sobre poesia medieval.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Obituário (Nilto Maciel)




Quando o primeiro caderno se completou, Cleto desistiu do segundo. Não ia mais anotar os nomes dos falecidos e as respectivas datas de morte. Tudo começou quando o pai morreu. Comprou um caderno grande e deu-lhe o título de “Falecidos”. Quase todo dia anotava um nome: parente, amigo, conhecido, político, ator, cantor, escritor, jogador de futebol. Se lia ou ouvia notícia de falecimento, corria ao caderno e anotava: fulano de tal e a data. De vez em quando passava algumas horas a rememorar os seus mortos. Mulher, quem era Anacoluto dos Anzóis Pereira? Ana se irritava com a mania de Cleto: Sei lá, homem. Deve ser algum gramático sem pé nem cabeça. Outras vezes se lembrava de algum parente esquecido ou pessoa famosa. Já teria morrido? Consultava o caderno e não encontrava o nome. Mulher, Maria ainda está viva? Ana só faltava chorar: De que Maria falava o marido? Mulher, por onde anda aquela cantora carioca que regravou uma música de Noel Rosa? Não lembrava o nome e por pouco não ficava doido de tanto escavar a memória dele e de Ana.
Decidiu: não ia mais anotar os nomes dos mortos. Comprou outro caderno e deu-lhe o título “A falecerem”. Passou um dia a copiar nomes de parentes, amigos e pessoas famosas. Mulher, como se chama aquela sua prima que se casou com o Jorge caminhoneiro? Ana, quem é o presidente dos Estados Unidos? Não esqueça de escrever o seu nome, Cleto. Não escreveu, irritado, jogou o caderno na gaveta e se pôs a ler o jornal: “Previsão do tempo: Amanhã chove em todo o litoral”. Não choveu, mas Ana concluiu o primeiro caderno com o nome do marido.
Fortaleza, 12/10/2004.