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domingo, 14 de outubro de 2007

Dulcinéia em Hollywood (Cunha de Leiradella)




Não existem boas nem más estórias. Existem apenas estórias. Que podem ser bem ou mal contadas. Há mil e uma formas de contar uma estória. Mas só uma (e apenas uma) é a forma certa de a contar. E é, justamente, essa forma que faz a diferença. Que mostra o abismo entre um bom e um mau escritor. Entre o escritor que sabe trilhar o seu caminho e o escritor que, sem procurar sequer encontrar o seu caminho, apenas segue o rastro dos outros, e o que é pior ainda, sem saber como nem para quê.
Cherlanyo Barros não é desses. É daqueles. Daqueles que sabem trilhar o seu caminho. Os contos de Dulcinéia em Hollywood poderiam ter sido escritos de mil e uma formas. Mas Cherlanyo Barros soube escolher a forma certa. Mostrou-nos a essência dos seus personagens como ela deve ser mostrada. Todos os seres humanos se parecem nas suas contradições.
E o autor, ser humano que é, não escapa das suas próprias contradições. Não existem contos perfeitos no livro de Cherlanyo Barros. Existem apenas estórias bem contadas. E é esta aparente contradição que deixa no leitor a satisfação de ter feito uma boa leitura. Ser ou não ser é apenas uma questão. E o importante não é a questão, é a postura, poder ser. E a forma como Cherlanyo Barros conta as estórias de Dulcinéia em Hollywood dá ao leitor a condição dessa possibilidade. Poder ser.
Está nascendo no Ceará um excelente contista. Escutem-no. Ele tem algo a dizer.

Casa das Leiras
Portugal

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Bééé (Nilto Maciel)
























A charretezinha subia e descia a rua, o carneirinho a berrar. Animal altivo, sadio, de pêlo branco. Veículo pintado, envernizado, recoberto de frisos coloridos, bancos bem forrados. Verdadeiro carro de príncipes e princesas. O carneirinho berrava bééé. Jairo, na boléia, olhava loiro e feliz para os curiosos. À frente, puxando o cabresto, um homem, provavelmente o pai. Outros garotos, nas janelas e portas das casas, contemplavam o principezinho e sua carruagem real. O animal berrava, talvez para anunciar a passagem do menino rico.
Pela cidade não se viam carros, a não ser, de vez em quando, o jipe do prefeito, um caminhão que chegava num dia e saía no outro, o ônibus que vinha da capital duas ou três vezes por semana.
A quem pertencia a pequena charrete? Ao pai de Jairo? Teria adquirido o veículo apenas para divertir os filhos? Ou cobrava alguns réis pelos passeios? Talvez tenha ele mesmo construído o carro e adestrado os animais. Essas e outras questões faziam parte da conversa dos meninos.
Com o passar dos dias, meses e anos, deixaram de ver a charretezinha e nem se lembravam mais dela, e muito menos do carneirinho a berrar. No ginásio Jairo só falava de meninas e diversões. Não gostava das aulas e muito menos dos padres-professores. Andava a rir à toa, despreocupado de livros e lições, a perambular pelas ruas, a fumar escondido do pai. Pedia auxílio aos colegas nas aulas de português, matemática, inglês, geografia, de tudo. Não sabia nada.
Mais tarde conheceu o álcool, deixou de estudar, não trabalhava, vivia de favores de parentes. Até ser colhido por um veículo numa rua da capital. Andava bêbado, como todo dia. Tentou atravessar a rua e, passos lentos ou trôpegos, não alcançou o outro lado. Morte instantânea, o corpo esfacelado, moído, a sangrar muito. Longe, muito longe dali, um carneirinho berrava bééé.
Fortaleza, 19/10/2004.