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terça-feira, 16 de outubro de 2007

Sintaxe do Desejo: Síntese da Poesia Visceral de Dimas Macedo (Aíla Sampaio)

(Dimas Macedo)

Ânsia visceral de mim
que a face me estrangula...
(“Espumas” p.42)

São raros os críticos que se mantêm fecundos produtores de textos literários. Dimas Macedo é uma das felizes exceções. Assíduo leitor, sobretudo da literatura local, escreve semanalmente um artigo sobre obras representativas, valorizando a arte de sua terra e levando ao público nomes muitas vezes desconhecidos. Sua disposição para a pesquisa, tanto na área do Direito quanto na da Literatura, rendeu-lhe publicações significativas que tiveram repercussão nacional: Lavrenses ilustres (1981), Leitura e conjuntura (1984), Ensaios de teoria do direito (1985), Lavras da Mangabeira – Roteiros e evocações (1986), O discurso constituinte (1987), Notas para a história de Alto Santo (1988), A metáfora do sol (1989), Ossos do ofício (1997), Tempo e antítese (1997), Martins Filho e Joaryvar Macedo (1998), A obra literária de Alcides Pinto (2001), Marxismo e crítica literária (2001), Crítica imperfeita (2001), Pesquisas de direito público (2001), A face do enigma (2002), Crítica dispersa (2003), Entrevista (2003), Décimas a Alcides Pinto (2003), Política e constituição (2003), Filosofia e constituição (2004), Bibliografia – roteiro para pesquisadores (2004), Ensaios e perfis (2004), A letra e o discurso (2006).
Como poeta, pode-se dizer que é um dos mais produtivos da literatura cearense contemporânea. Estreou em 1978, com Primeiros poemas, dois anos depois publicou A distância de todas as coisas, obra que marcou seu nome na história das nossas letras. Deu uma pausa para dedicar-se à carreira acadêmica e jurídica, e, em 1990, voltou à cena com Lavoura úmida; em 1994, lançou Estrela de pedra e, em 1996, Liturgia do caos. Mais uma parada, então para repensar sua trajetória, reeditou o segundo livro em 2001, e retornou em 2003 com Vozes do silêncio. Em 2006, ano do seu cinqüentenário, editou Sintaxe do desejo, uma coletânea que reúne seus mais antológicos poemas. Além de uma síntese de sua produção poética, esse livro é também uma celebração, um coroamento de sua trajetória (como poeta), quem sabe o fechamento de um ciclo.
Os textos selecionados representam um balanço do seu exercício na arte do verso, no transcurso dos anos de 1978 a 2003, marcos da publicação de seu primeiro e último livro (até então). O que se constata é a manutenção do mesmo universo temático e a estabilidade de seus procedimentos estéticos, sua criação consciente do texto como um trabalho de linguagem. Profundamente ligado às raízes, telúrico e sentimental, o poeta conserva na coletânea os principais poemas que louvam a cidade-mãe. “Lavras” (p.26) é o primeiro deles:

Longe daqui do tumulto,
lá no meio das coisas,
prostrada para o universo,
posto que existe,
Lavras é a cidade mais bela do mundo,
pois em cada rua
nasce uma saudade
que termina em meu corpo.

A exaltação da terra natal traz a voz de Drummond, em sua constante evocação de Itabira, mais ainda a de Caeiro: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia” (“O Guardador de Rebanhos”). É recorrente a crítica associar a poesia do Dimas à de Drummond, bem como à de Fernando Pessoa e seus heterônimos. A assimilação das leituras e a identificação temática e estilística está clara em “Ortônimo”, metapoema que norteia o espírito da criação macediana.
A última parte, “Dispersão”, traz ainda “Musa” e “Esfinge”, dois cantos de amor à sua Lavras, que, mais que cidade, é a imagem de sua infância: “Quando me lembro que nasci em Lavras, / a solidão de minha infância é tudo / e a expressão da existência é nada (...) pois as ruas de Lavras são paredes/ que se atravessam em mim como uma ponte.” Essa força que o liga ao passado, como as inquietações diante da existência, leva-nos a Cacaso (em “Lar doce lar”) “Minha pátria é minha infância / por isso vivo no exílio”. Há no homem um menino que guarda inexoravelmente sua infância e vive exilado de si mesmo, procurando o eterno retorno a um tempo impossível. Daí as perscrutações existenciais, a inquietação metafísica tão constantemente revelada em sua poética, o saudoso recordar (“Elegia”, p.36):

Lembro o meu pai
apascentando estrelas
e solidões
em tardes douradas
e a minha mãe
na sombra do alpendre
e olhos no algeroz.

A saudade, os questionamentos sobre a vida, o amor, tudo se transfigura em poesia. Ele mesmo disse, em entrevista ao Diário do Nordeste, por ocasião do lançamento de Lavoura úmida, em 1990, que “a Literatura é um lenitivo para o intelectual exasperado, mas é um lenitivo para quem busca uma resposta para a vida”. Com efeito, sua poesia é visceral, sangüínea, sua mais segura forma de sobrevivência e busca, como se lê em “Palavras” (p.39):

Para me suportar
a mim mesmo me basto.
Para não me morrer de tédio
Mergulho-me palavras.

A salvação do homem está na palavra. Sondando o enigma da existência ou levantando questões sobre o estar-no-mundo, o poeta lança um “Dilúvio” (p.30) de interrogações (aqui resumidas):

O que será esse mundo,
esses cosmos sem fim,
essa utopia?
Correm para onde, então,
essas filosofias?
(...)
Dai-me, Senhor,
conter em minhas mãos
o nada e o não-ser
e o desfazer de mim
a dor dessa introspecção.

Na solidão dos conflitos, o grito de angústia é indagação do mistério. O poeta pede a ajuda divina para livrar-se da dor de existir. A fé nesse Deus que “muda de residência”, mas “carrega a nuvem de seus passos”, é que o ajuda a “viver sozinho no deserto / buscando o amor / sentindo a esperança” (“Escudo”, p.110).
Em “Enigma” (p.66), é o tempo sua clausura. O vento, elemento do efêmero, aparece, em sua poesia, personificado. Se ele é a calmaria do tempo-espaço fundidos, é também seu confidente e cúmplice: “no centro da alma / há um castelo / no qual escuto / as confissões do vento” (“Ânsia”, p.79). A angústia diante do fugaz, bem ceciliana, é uma herança simbolista, e remete à busca de integração no cosmo, desejo de transcendência. Esse sopro simbolista está, inclusive, nos efeitos sonoros dos primeiros versos de “Metáforas”(p.46). “Ó conchas, ó conchas, ó formas”, onde se ouve claramente um sopro de Cruz e Souza, motivo do poema “Poeta”, de Vozes do silêncio (p.14): “João da Cruz e Souza: / eis o meu nome./Tenho a alma clara/ e de cintilações / é feito meu destino”.
A ansiedade de saber-se ou encontrar os sentidos da vida leva-o ao conflito existencial:

Porém a ânsia que sinto
é um conflito
muito maior
que a nave da existência.

A saída é a fé, como vimos no clamor ao Pai, ou a arte:

O mito de toda a existência é sempre a arte (“Lavragem”, p.37)
A arte: minha suprema realização (“Diário”, p.44)

A Literatura, sua arte por excelência, sem dúvida, é seu alento maior, como ele mesmo declarou em entrevista ao jornal O Povo, em outubro de 2006, na véspera do lançamento de Sintaxe do desejo:
“A literatura existe para substituir a vida, porque a vida por si mesmo não se justifica. A arte justifica a vida, porque a vida precisa ser reinventada e ela é reinventada fundamentalmente pela palavra. A palavra cria, a palavra transforma, a palavra liberta”.
Exercitando redondilhas, sonetos ou versos livres, Dimas mostra sua preocupação com a morte, mas não a coloca como centro de sua poética, talvez porque entenda que “O aprendizado da morte é a existência (...) (e) o sentido da vida é a suspeita/ de que a morte é a simetria de (sua) liberdade” (“Poética” p.68). É ainda o amor o seu estro, uma vez mais e sempre, celebrado de forma silenciosa, platônica:

As horas,
um amontoado de saudades,
minha idéia a encontrar-te
é como uma voz interior a ter-te.

Mas é irreal,
e o meu sonho, um sonho,
fundido com a minha angústia
como uma tarde sem horizontes.

Esse amor-falta, em outros versos, adquire carnação e torna-se erótico, até dionisíaco. Em “Banquete” (p.45), poema demais sensorial, há um rito na consumação do amor:

Entre ostras e pêssegos eu bailo
e bêbado
beijo o frutal de tuas algas.
Entre aspargos e vinhos
advinho o apelo de teus lábios.
(...)
E te possuo entre ostras e aspargos.
Entre vinhos e pêssegos eu te consumo
e te presumo mar absoluto e furioso.

Igualmente ocorre em “Frutos” (p. 81), poema sensual e bastante sugestivo:

A carne é fraca
e os frutos
maduros
são ditosos.
Apetitosos
os seios de Aline
na varanda
e as rosas brancas
no corpo de Marcela.

O amor-erótico se espraia em forma de desejo, no poema “Concha” (p.28): “Quero a louca / lâmina / da minha fantasia/ pastando no teu sexo” e se plenifica em “Casulo” (p.52), a mais bela peça romântica do livro:

Te amo sobretudo os lábios
e a resina viscosa dos teus seios,
pois a vulva dos teus olhos enlaça
a sedução invisível dos meus pelos,
onde começo a viver e me embaraço,
porque me mato de amor quando te vejo.

Já em “Ausência” (p. 69), o poeta recusa o amor-sofrimento e celebra o amor-vida, confirmando a doação plena e o desejo de felicidade:

Não. Eu não me quero o suicida
que despenca do alto da torre.
Eu me quero vida para te ofertar rosas
e te colher a plenitude de espigas maduras.

Dimas tem a poesia como o sentido de sua vida, a poesia visceral e sangüínea, costurada com a alma. Evocando a infância ou suas raízes, procurando a lógica da vida ou indagando sobre os enigmas que a cerceiam, refletindo sobre o processo criador ou reinventando-se na ‘tessitura do caos’, lembrando a morte ou celebrando o amor, ele sintetiza seu percurso poético no trajeto de seus 25 anos de poesia, reafirmando seu talento para as letras e fazendo o coroamento de sua maturidade estética e ontológica. Resta-nos a pergunta: se Sintaxe do desejo fecha um ciclo existencial, o que virá agora? Conhecendo o poeta, arrisco uma resposta: a reinvenção (inclusive do novo), porque ele sabe, como Cecília Meireles, que “a vida, a vida, a vida... só é possível reinventada ”. Também a poesia!
Fortaleza, Junho de 2007
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segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Porta fechada (Nilto Maciel)


























Carlos acordou sobressaltado. Os pais falavam alto, discutiam. Do lado de fora, uma pessoa esmurrava a porta. Por que discutiam àquela hora? O medo tomou conta do menino. Ou sonhava? Sonho feito de palavras sem sentido, sons confusos, tumulto indistinto, quase remoto.
Na verdade, Josias batia na tábua porque queria entrar em casa e o pai teimava em não abrir a porta. Dormisse na rua, com os cachorros. Mais gritos e fragor de pancadas. Carlos acordou de vez, o coração a bater em descontrole. A mãe exigia a abertura da porta. Josias não poderia dormir na rua. O homem bradava negativas, vociferava. Aquilo não eram horas de chegar. Fechada a porta, por ela ninguém mais entrava. Somente no outro dia. Dormisse na rua o vagabundo. A mulher chorava, implorava. Deixasse o filho entrar para dormir. O pai teimava. Havia determinado o horário de os filhos estarem em casa: dez horas da noite. Inconformado, o rapaz gritava, chutava e esmurrava a madeira. E ameaçava: se não abrissem a porta, ele a abriria à força.
Em dado momento, a porta pareceu ter sido derrubada. Talvez a tranca tivesse ruído ou os ferrolhos se deslocaram, à custa dos sopapos. Ou terá sido aberta pelas mãos do pai, para evitar o arrombamento? Iniciou-se uma correria dentro de casa. Cinto à mão, o homem se pôs a perseguir o filho sem-vergonha. Corriam, resfolegantes, a gritar. A mãe chorava, pedia calma. Assustados, os meninos se encolhiam nas redes. Pai, mãe e filho corriam pela casa, em fila, cansados, passavam de um cômodo a outro. Apavorado, Carlos se encolhia na rede. Josias passava e o jogava ao léu da noite. O pai o empurrava para mais longe. A mãe o socorria, mas também passava, aos prantos.
Aos poucos foram sossegando. Carlos não soube quando aquilo acabou e de novo dormiu. Talvez quando o pai e filho não mais tiveram forças para correr e falar.
Dias depois, Josias saiu de casa e Carlos nunca mais o viu.
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