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sábado, 20 de outubro de 2007

Carnavalha: Novo Romance de Nilto Maciel (Francisco Carvalho)




De 1974 até agora, Nilto Maciel publicou dezenove livros de ficção e apenas um de poemas. O romance e o conto, conforme se pode observar, evidenciam as predileções do Autor, em seu longo itinerário de 33 anos nos domínios da literatura. Quem já leu seus livros de ficção terá notado, certamente, o cuidado do ficcionista na escolha dos nomes de seus personagens. Não seria nenhum despropósito pensar na elaboração de uma nomenclatura para todos esses figurantes que trafegam nas páginas de seus romances e histórias curtas. Zuza, Pedro Cabral, Eurico, Jesonias, Otávio, Noé, Alessandra, Cátia, Márcia, Aluísio, Orlando, Joice, Cida, Eleide, Cynthia, Ocelo e tantos e tantos outros que despertam a atenção do leitor para esse aspecto importante da carpintaria dos romances. Até os cachorros de Palma foram homenageados com apelidos que se destacam pelo seu ineditismo e originalidade: Alão, Brochote, Cafoto, Dentola etc.
O livro começa com a notícia da chegada de alguns rapazes e moças procedentes de Brasília. Eram funcionários públicos que vinham para as festas carnavalescas de Palma, cidade utópica criada pela imaginação de Nilto Maciel para o desenrolar dos acontecimentos do seu universo ficcional. Palma não deixa de evocar a legendária Macondo, palco das histórias fantásticas de Gabriel Garcia Márquez, em seu caudaloso romance Cem Anos de Solidão. Na página 15, o inusitado mostra o seu feitiço: “O galo cantou estridentemente. As galinhas correram, espantadas. Uma revoada de andorinhas encheu o céu dos quintais”. Só faltou acrescentar que ventos diluviais arrebataram crianças que sonhavam com os anjos enquanto dormiam.
A ficção de Nilto Maciel nos coloca no c entro de uma realidade fantástica, que nos leva às portas do surreal. Uma atmosfera de sonhos e pesadelos permeia as narrativas do romance. Seus capítulos, predominantemente curtos, exploram os conteúdos, sob perspectivas oníricas, das temáticas desenvolvidas no livro. Numerosos personagens contribuem com depoimentos pessoais para o desfecho das narrativas. Mas essa contribuição, eivada de contradições enigmáticas, paradoxalmente só fazem aprofundar ainda mais os mistérios em torno dos acontecimentos. A cidade e seus habitantes passam a impressão de atores de um filme de mistério conduzido por um diretor voluntarioso, que parece se divertir com seu elenco de fantoches.
Na página 96, uma sucessão de fatos provoca calafrios no leitor. Um dos gatos que farejam pássaros numa árvore começa, de repente, a crescer aos olhos de Jacinta. Enquanto outros felinos fugiam daquela visão aterradora, o gato assumia as proporções de um tigre, “abria a boca e avançava lentamente, ameaçador”. Juarez, marido de Jacinta, tentou dar cabo do animal, mas “a fera estraçalhava Juarez”. Como se observa, a leitura dessa narrativa exige do leitor um mínimo de conhecimento acerca do simbolismo de que se revestem certos aspectos do cotidiano. Pode-se afirmar, sem risco de equívoco, que o simbolismo está presente em grande parte da expressão literária do todos os tempos. E até mesmo nos atos mais rotineiros da vida das pessoas, sem que elas se dêem conta desse fato.
Em “Rodopio de moedas” (p. 97), Nilto Maciel volta a usar das mesmas estratégias insólitas para despertar a imaginação do leitor. A conhecida frase de Shakespeare (“Há muita coisa entre o céu e a terra a que não chega a nossa vã filosofia”) nunca foi tão justificada como nas páginas desse romance do escritor cearense. Suas narrativas são vertentes de onde jorram mistérios e enigmas da raiz das palavras. Bastou que uma ave fincasse “as unhas no telhado da casa de Quincas” para que fatos estranhos à lógica do senso comum começassem a acontecer entre Juarez e sua mulher. Moedas e cédulas, sacudidas por ventos misteriosos, vindos não se sabe de onde, caíam da mesa e espalhavam-se pelo chão. Tentavam alcançá-las, mas não o conseguiam. Como se mãos invisíveis os impedissem de tocá-las. Algo parecido com as artimanhas do diabo. Na tentativa de recuperar as moedas e cédulas, “Quincas estatelava-se feito um jarro de porcelana”.
A narrativa da página 27 evoca certas estratégias de Kafka. Da troca de palavras entre Gilberto, Jesonias, Aluísio e Orlando, fica-se com a impressão de que os personagens viajam no porão de um navio que fosse para a Atlântida ou, talvez, para a eternidade. A mesma densidade impenetrável envolve os diálogos obscuros. Lá pelas tantas, Gilberto produz esta frase de significado ambíguo: “Estou com viagem marcada para lá, numa expedição de alto risco”. Aluísio vomitava. “De sua boca saíam pequenos sapos, ratos, baratas. Gilberto se apavorava e também ia ao solo” (128).
Carnavalha não é, seguramente, livro de estrutura linear. Precisa ser lido com o faro de quem procura fragmentos de ouro numa peneira de cascalho. Todas as narrativas exigem leituras plurais, precisam atingir a profundidade das camadas estilísticas onde se encontram os veios simbólicos. A realidade desses escritos de Nilto Maciel é de outra índole. São realidades submersas que não se acham à flor da pele nem tampouco na superfície das palavras. Palma é uma cidade utópica onde criaturas utópicas fingem ter os mesmos defeitos e virtudes das pessoas de carne e osso. Ao leitor cabe decifrar os códigos desta linguagem que nos fala de um mundo possível para os que já nasceram condenados à morte. Ou por imprudência ou por todos os males a que estamos sujeitos. A única expectativa que nos acena é a certeza de que “Não se pode morrer na metade do quinto ato” de alguma peça de Ibsen.
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quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Caim e Abel (Nilto Maciel)
























(Abel e Caim, de Gustav Doré)



O pai de Caim e Abel não se cansava de elogiar o segundo. A mãe se irritava e saía em defesa do outro, como se elogios a um significassem censuras ao primeiro. Quando meninos viviam se atracando. Esmurravam-se por qualquer motivo. Chutavam-se feito cavalos. Sujavam-se nos lamaçais. O pai os punia severamente, mais a Caim. Dava-lhe surras demoradas. A mãe socorria o pobre filho. Nas brincadeiras e nos jogos, todos os gabos do pai iam para Abel. Cresceram como inimigos. Se Abel pretendia uma mocinha, Caim corria em busca dela, a falar mal do irmão. Se Caim se aproximava de uma jovem, Abel não sossegava enquanto não a fazia se afastar do outro. O pai sorria: o filho Abel se parecia muito com ele, até nas conquistas amorosas. A mãe ouvia aquilo irritada: Caim sabia cativar as mulheres.
De tanto se sentir ofendido, Abel passou a planejar vingança. Talvez afogamento no rio. O corpo de Caim apareceria inchado, roído pelos peixes. E se o atraísse para o alto do morro e o empurrasse? Noites e noites acordado, a sonhar o fim do irmão. Caim vivia então em constantes passeios noturnos. Possivelmente enrabichado por alguma dama. Saía de casa ao anoitecer e só regressava alta noite, às vezes de madrugada. Abel seguiu-lhe os passos, sorrateiro. Viu-o voltar sempre pelo mesmo caminho. Adquiriu uma arma de fogo. Daria o primeiro tiro nas costas. Caído o irmão, atiraria mais cinco vezes na cabeça, na nuca, nos pulmões, no meio da espinha. Fez tocaia durante várias noites. Caim parecia compreender o perigo, corria e chegava salvo à casa. Abel não conseguia disparar o primeiro tiro. Respiração quase a parar, as mãos tremiam, os olhos se enchiam de poeira. Mas finalmente viu o irmão se aproximar, todo contente, a assobiar modinhas. Detrás de uma árvore, Abel apertou o gatilho. A bala passou perto da cabeça. Caim correu e se meteu no mato. Abel se pôs a imaginar o que fazer. Iria atrás do irmão ou deixaria tudo para outra noite? Sentou-se. Talvez a bala tivesse atingido o desgraçado. Súbito um vulto apareceu, silencioso, lento. Nada Abel viu ou ouviu. Sentiu apenas uma pancada na cabeça. E tombou, o sangue a jorrar.
Fortaleza, 31/10/2004.