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segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Notas poéticas: Métrica e visão de mundo de Augusto dos Anjos (Henrique Marques Samyn)


(Augusto dos Anjos)

Indubitavelmente um dos mais extraordinários nomes da poesia brasileira, Augusto dos Anjos, embora fosse poeta dos mais inspirados, parecia sempre compelido a asfixiar o lirismo em versos de uma rigidez assombrosa. Compreenda-se, no entanto, que esta expressão – “asfixiar o lirismo” – não se refere aqui a qualquer tipo de sobrevalorização da forma, mas sim a uma opção estética perfeitamente coerente com sua matéria lírica, como espero esclarecer nas próximas linhas.

A singular natureza do lirismo de Augusto dos Anjos deriva de sua não menos singular atitude perante a realidade, exemplarmente definida por Álvaro Lins como uma contradição entre as frágeis certezas de um materialismo de bases cientificistas e uma insaciável inquietação existencial com aquelas incompatível; deste modo, o poeta buscava o absoluto movendo-se em meio ao “círculo do nada físico”, para utilizar a precisa expressão do referido crítico. De onde as aporias nas quais Augusto dos Anjos incessantemente mergulhava, que podem ser exemplificadas pelo segundo quarteto de seu soneto dedicado ao filho natimorto, no qual os conceitos emprestados da ciência revelam-se inúteis para a compreensão da morte brutal: “Que poder embriológico fatal / Destruiu, com a sinergia de um gigante, / Em tua morfogênese de infante / A minha morfogênese ancestral?!

É desta contradição seminal que deriva a estética do vate paraibano. Dante Milano analisou-a com agudeza: Augusto dos Anjos utilizava reiteradamente decassílabos acentuados na sexta sílaba (heróicos), nos quais eliminava implacavelmente os hiatos (na feliz expressão de Milano, “nunca largava a tesoura para cortar a cabecinha das inocentes vogais que às vezes queriam brincar-lhe no decassílabo”) e entremeava proparoxítonos. O resultado eram versos de uma rigidez assombrosa que, por vezes, parecia prestes a se flexibilizar pela presença de algum proparoxítono; falsa impressão, logo desfeita por conta da repetição métrica – os fragorosos decassílabos que, sempre acentuados da mesma forma, criavam um andamento de uma solidez impressionante. As sinalefas de Augusto dos Anjos chegavam a criar alguns versos virtualmente indeclamáveis, como o que abre os “Mistérios de um fósforo”: “Pego de um fósforo. Olho-o. Olho-o ainda. Risco-o” – que deve, evidentemente, ser lido como decassílabo!

A dureza dos versos do vate paraibano deve ser compreendida como a expressão mais adequada para sua visão de mundo: percebendo a matéria como uma espécie de cárcere em cujas celas a vida, convulsamente, espraia seus tentáculos e evolui em um implacável ciclo de destruições e renascimentos, também em seus versos constringia o lirismo com singular mestria; o resultado, por outro lado, não era um enfraquecimento deste, mas sua intensificação. Se nos versos de Augusto dos Anjos não havia frinchas que permitissem a passagem do ar, todavia o lirismo neles enclausurado permanecia vivo – e sem demonstrar quaisquer sinais de debilidade.

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sábado, 19 de janeiro de 2008

Boi da cara triste - terceira parte (Nilto Maciel)





 










CALVÁRIO

- I -
Navegava a lua para as bandas do Candeia, feito cabaça na correnteza, passavam por ela tufos de nuvens, latiam cachorros no mundo. E Zé Carroceiro escorregava pelos becos, tochas acesas, garras afiadas, sem um miado na goela seca.
Dormia o boi no curral, exposto ao sereno e aos morcegos, tadinho! Acordou, abriu os olhos, levantou a cabeça, remexeu-se. A sombra do carroceiro atravessava a cerca, a bosta, o chão, e foi se apagando cheia de psius, carinhosa, mansinha.
– Sou eu, amigo velho.
Os calos do homem alisaram a testa do antigo puxador de carroça, e o curral se encheu de cicios.
– Meu boi bonito, eu vim fugido, feito um gatinho, sem alarido, muito contrito, para bem pertinho só de você.
Explicou Zé Carroceiro o motivo daquela visita tão fora de horas, enquanto o boi concordava com as preocupações de sou protetor.
Ao fim do entendimento, deixaram ambos o curral e, pelos becos mais escuros, alcançaram o quintal da palhoça do homem.

- II -
Amontoados defronte o prédio da Prefeitura, os flagelados assopravam o sol. Queriam comida e providências, água e satisfações.
– Mate aquele boi.
Raimundo Pitanga se empapava de suor e cuspia soluções. A verba chegava de trem, o governo não ia falhar. Esquecessem o animal, funcionário da municipalidade.
Os homens escarravam, caras de herege, e num instante o cuspe virava mancha na calçada.
– Conversa para fazer boi dormir.

- III -
Num meio de noite, Zé deu um berro do tamanho do mundo e só faltou cair da rede. Maria não morreu, porém os meninos choraram até de manhã.
– Pesadelo doido, mulher.
A velha acendeu a lamparina e mandou os filhos de volta às fiangas.
– Doidice desse doido.
Na parede, o carroceiro cresceu, cabeça de tacho, orelhas de abano, ombros de aleijado, pernas de sete-léguas.
Tremia a chama da candeia e ora a venta de fole do narrador tomava o lugar de uma orelha, ora sua mão de alabarda destelhava a cabana.
Os meninos soluçavam uns por cima dos outros, cobertos de olhos por todos os lados, arrependidos de todos os pecados, mãezinha do céu.
O pai procurava facões debaixo dos pés e a mãe o agarrava pelas costelas e implorava a Deus.

- IV -
Plantado no quintal de Zé Carroceiro, o boi balançava as orelhas, o rabo e a caceta, guarda da casa de seu colega de lixo. Cuidou, o chão tremia. Varava a terra o dragão do fim do mundo ou andava ao léu a leva dos sem-terra? Esbugalhou os olhos na direção da assombração. Qual nada de fabuloso! Marchavam sobre o quintal eram os bichinhos de dois pés. Vinha nu e enfurecido o safado do prefeito, armado de espingarda. Junto ao seu ombro direito, Luiz Macedo carregava munição. Nos calcanhares deles, Joaquim Traçalha, e mais atrás Manoel Cotia abraçava buchas e mais buchas.
– Lá está ele.
Engrossava a procissão toda nação de gente, olhos fitos no boi, garras e dentes de fora, feito feras.
Enquanto o diabo esfregava o olho, derrubaram a cerca e cercaram o boi. À primeira cutelada, minou sangue dos chifres e ninguém podia contar as mãos que açoitavam o condenado.
Súbito Raimundo Pitanga ordenou silêncio e calma e se dirigiu à turba para uma última questão: queriam mesmo o boi ou preferiam esperar pela verba?
– O boi.
Então o prefeito se afastou e deu passagem aos urubus, que voltaram a surrar o animal.
Um deles correu a um canto da cerca, colheu uns galhos espinhentos, engendrou uma coroa e se precipitou para o local do sacrifício. E coroou o boi, em meio a gargalhadas.
– Salve, boi dos sertanejos.
E davam-lhe bofetadas, cuspiam-no, feriam-no com suas armas.
Tiveram a idéia de fazer uma cruz para maior alegria do pagode, saírem pelas ruas e crucificarem o boi, porém o dia amanhecia e urgia preparar o almoço.
E as todas facas da fome tiravam do boi o couro, rasgavam as carnes duras, faziam de matadouro o quintal do carroceiro, mineiros à cata d'ouro.

Junho/1980 a julho/1982.