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quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Exílios (Ronaldo Cagiano)



A cidade se perde em seus próprios labirintos: pelas serpentes de pedra e asfalto corre pressuroso um rio de animais metálicos.
Não há mais lugar para os homens.
Anônimos, como areia na ampulheta,
vamos em busca da utópica Pasargada,
enquanto a história nos atravessa como um raio.
A metrópole oriental,
como um ventre, espera o desconhecido e na sua intangível solidão geométrica
exilo-me nos labirintos dos bazares onde florescem catedrais de ausências.
O tempo, enxame de bactéria a nos roer, me leva a mundos que eu sonhei um dia:
De Cataguases a Isfahan
de Brasilia a Teerã,
quanto de mim vai ficando nesses caminhos
com sua orfandade de margens.

Quando contemplo
os picos nevados das montanhas Alborz
ou busco os longes caminhos de Shiraz e Burujerd
os barcos da infância
que lancei no rio Pomba rumo ao desconhecido
ressuscitam nas águas do Zuyandé
prisioneiros do vento, cativos da geografia.

(Teerã, 1/6/07)

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Quarteto (Nilto Maciel)



























Impressa tenho n'alma larga história
deste passado bem que nunca fora;
ou fora, e não passara; mas já agora
em mim não pode haver mais que a memória.

Camões

- I -
Jacira morreu numa sexta-feira à tarde. Um tiro no coração. Segundo Diana, o assaltante ou estuprador atirou e fugiu. E nunca o encontraram. Fizeram-se retratos falados e nenhum deles se parecia com os detidos.
Quando Isaque chegou, a rua semelhava uma feira-livre. Carros da polícia diante da casa. Os parentes de Jacira choravam, gritavam, revoltados. Telefonaram para Daniel. Pegasse um avião. Lamentava muito a morte da cunhada, contudo não via necessidade da viagem. Nada podia fazer. Além do mais, andava sem dinheiro. Não falaram isso a Isaque. Seria uma segunda morte para Jacira. Insistiram, e Daniel chegou no dia seguinte, após o sepultamento. Regressou a São Paulo, às pressas. Não queria ver a ex-mulher.
A todos Diana contava a tragédia: as duas conversavam na cozinha. Preparavam café. Nunca trancavam a porta da rua. Só quando saíam ou iam dormir. Um rapaz entrou na casa e, pé ante pé, chegou à cozinha. O susto das duas. Até derramaram café. A polícia encontrou xícaras quebradas no chão. O sangue de Jacira se misturava ao café.
Não havia pegadas, indícios da presença do assassino. O que havia levado? Dinheiro e o revólver. Pegara a arma no quarto de Diana. Deixava-o sempre sobre o armário. Numa caixa, junto à bolsa, aos documentos, ao dinheiro. E chegara a molestá-las sexualmente? Disse algumas obscenidades. Apontou a arma e mandou as duas para o quarto. Tirassem as roupas. Aos gritos de ambas, atirou e fugiu. Desesperada, Diana só pensou em socorrer a amiga. E não viu mais nada.
A polícia convocou os vizinhos. Ninguém vira nada. Só ouviram o disparo.
Diana chorava o tempo todo. Prometia vingança. Daria a mesma morte ao homicida. Não sossegaria enquanto não o pegassem.

- II -
Ao separarem-se, Daniel saiu de casa, ficando Diana só. E todo dia ia ela à casa de Isaque e Jacira. Como antes. Ele fugia à presença da cunhada. Ia para a rua, a casa dos pais. Incomodava-o ver Diana. Sobretudo porque sabia da dor do irmão. E ficava confuso com isso – ora, Daniel nunca fora namorado e marido apaixonado.
A atitude de Isaque fez com que Diana também o evitasse. Ia à casa dele somente quando se convencia de que Jacira se achava só. E o tempo todo dedicava a queixar-se de solidão... Não quisera a separação. Aliás, não sabia o verdadeiro motivo dela. Por que não voltava para junto dos pais e irmãos? Não, jamais faria isso. Eles provavelmente não a aceitariam de volta. Separação significava para eles, sobretudo para o pai, um erro gravíssimo. Quase um crime.
De tanto insistir, convenceu a amiga a aceitá-la em casa. No entanto Isaque não daria o sim. Insistisse, chorasse. Precisavam uma da outra. Por que romper uma amizade de tantos anos?
Por dias e dias Isaque se manteve insensível ao pedido de Jacira. Temia a própria desunião com ela. Diana acabaria contaminando-os de intrigas.
Ao saber do propósito da ex-mulher, Daniel se irritou. Isaque não devia curvar-se aos assédios “daquela maluca”. Resistisse, mesmo à custa do pior.
Passado um mês da separação, Isaque cedeu aos rogos de Jacira. E Daniel viajou para São Paulo, sem um adeus ao irmão. Traidor!

- III -
Os vizinhos não viram o assassino. Ninguém viu o assassino. Exceto Diana e Jacira. Logo, o crime podia ter sido cometido por Diana – concluiu o delegado.
Convocados a depor, vizinhos de ambos os lados da casa de Isaque disseram que as duas discutiam sempre. E gritavam, ofendiam-se com palavras.
O depoimento de Isaque incriminou Diana ainda mais. A cunhada estudava tiro numa academia e até comprara um revólver. O mesmo utilizado para matar Jacira. A acusação falou em crime premeditado. E os motivos? Ora, por recusar Jacira o amor da amiga. Ou por não aceitá-la mais em casa. Ou por não querer separar-se de Isaque e viver com ela.
Isaque não admitia tais hipóteses. A amizade das duas não chegava a tanto. Jacira lhe teria falado isso. Nunca guardava segredos para ele. Se Diana a matara mesmo, o motivo teria sido outro. Talvez estivesse apaixonada por ele. Daí a separação. Se amasse Jacira, não premeditaria matá-la. Por que não?

- IV -
Após três dias de investigações, Diana passou a indiciada no inquérito. Sobretudo ao chegar de São Paulo uma longa carta de Daniel. Incontinenti, Isaque a levou ao delegado.
Tinha certeza de que Diana matara Jacira. Não as unia a simples amizade. Talvez mantivessem uma relação homossexual desde os tempos de colégio. Espécie de amor platônico de Diana por Jacira. Casadas, teria acreditado a segunda na “cura” da amiga. Coisas de adolescentes. Entretanto só se agravara a “doença”. Teria feito propostas mais objetivas, nada platônicas, após o casamento.
A carta deixou todos estarrecidos. E se Jacira tivesse se deitado com Diana? Isaque transtornou-se ainda mais. Sua ex-mulher teria sido apenas vítima das perseguições? Ou teria cedido aos desejos de Diana? E se, em vez de perseguida, também tivesse desejado a outra?
Segundo a carta, a assassina vivia aos pés de Jacira. Nunca a deixava em paz. Até se dar a separação de Daniel e Diana. Não suportou ele ver sua mulher deitada com outra. Não pediu explicações. Todavia Diana disse, nervosa, estarem com sono e calor, e terminaram dormindo.
Formado o processo, tudo levava à condenação. Antes disso, porém, Diana se matou.

- V -
Daniel sempre escreveu aos pais e, especialmente, a Isaque. Nunca, ainda assim, havia feito nenhuma referência à sua separação. A não ser por meias-palavras. Não suportava mais Diana. Nunca mais queria revê-la. Esquecessem de vez aquele passado repugnante. Tinha até nojo da ex-mulher.
Isaque pedia maiores explicações. Não atinava com a causa da separação. Chegavam outras cartas, e nada de clareza.
Ao separar-se, Daniel asilou-se numa pequena pensão, e raramente ia à casa dos pais. Nunca visitava o irmão. Só se viam quando este o procurava na pensão ou no escritório onde trabalhava.
Por insistência dos pais e de Isaque, um mês após a separação voltou para a casa paterna. Entretanto logo arranjou jeito de ir embora. E partiu para São Paulo, sem emprego, quase sem dinheiro.
Diana permaneceu na casa alugada por Daniel. E negava ter sido a causadora da separação. Inventava motivos: ciúmes de Daniel, a falta de filhos. E quem causava ciúmes? Os amigos. Qualquer um. Tudo sem nenhuma razão. E por que não planejavam um filho? Sim, podiam pensar nisso. Porém já era tarde. Daniel não voltaria jamais.
Jacira não dava opinião. Fugia às perguntas, mudava de assunto, escorregava pelos cantos. Não sabia de nada.

- VI -
Ao anunciar sua ida para São Paulo, apresentou Daniel um só motivo: queria melhorar de vida. Fortaleza não lhe dava oportunidades para progredir. O empreguinho no escritório já ia para dois anos, e o salário não passava daquela ninharia. E nenhuma promessa de melhoria.
Os pais tentaram convencê-lo a ficar. São Paulo ficava muito longe. Além do mais, fazia um frio dos diabos e a violência andava solta.
Para anular os argumentos paternos, escrevia cartas cheias de otimismo. Arranjara emprego em menos de uma semana. Salário bom, três vezes maior do que o do escritório de Fortaleza. Frio, nem tanto. Já se acostumara à garoa. Gostosa até. Enfim se livrara daquele calor insuportável do Ceará. E já arranjara amigos. Muitos cearenses, trabalhadores, honestos, camaradas. E até já andava namorando uma baianinha.
Perguntava sempre por Daniel e os outros irmãos. Jamais mencionava o nome de Diana. Nem o de Jacira. Como se não existissem, ou nunca tivessem existido. Mesmo nas cartas a Isaque. Este, no entanto, contava tudo: a presença constante de Diana em sua casa, o apego dela a Jacira, a insistência para aceitarem-na como hóspede.
Não, não aceitasse aquilo. A “maluca”, a “sem-vergonha”, a “maldita” não merecia a acolhida de ninguém. Sobretudo dele, Isaque. Melhor acolher uma cobra venenosa, uma cascavel medonha. Não cometesse a loucura de tê-la debaixo do mesmo teto. Nunca, nunca, nunca! Se o fizesse, iria se arrepender amargamente. Para o resto da vida.

- VII -
Os desentendimentos entre Daniel e Diana tiveram início logo nos primeiros dias do casamento. Ele nada contava ao irmão, muito menos a outras pessoas. Nem saberia dizer o que acontecia ou não acontecia. Ausência de amor, paixão? Frigidez? Talvez não. Sentia simplesmente angústia, insatisfação, ansiedade. Para que se casara com Diana? Podia continuar solteiro, a namorar uma e outra. Como sentia saudades daqueles bons tempos! Os dois, ele e Isaque, amigões, companheiros. Sempre juntos nas praias, nos bares, nos clubes noturnos. Garotas à vontade. Sem compromissos. Até conhecerem as duas amigas.
Muitas vezes saía só. E Diana corria atrás do outro casal. Isaque e Jacira riam. Deixassem de tolices, parassem de brigar. Infantilidades. Não, não, o casamento ia mal, muito mal. Isaque deixava de rir. Por quê? Ciúme, só podia ser ciúme, muito ciúme. E quem provocava tais ciúmes? Diana se confundia. Ora falava de ex-namoradas do marido, ora de ex-namorados seus. Daniel negava tudo. Não havia nada daquilo. Invencionices de Diana. Na verdade, dera um grande passo em falso. Não devia ter casado com Diana. Não havia amor, quase nada. Isaque levava na brincadeira. Amor surgia na cama. Com Diana talvez nunca. Havia algo mais. Não sabia explicar. Como se houvesse uma barreira a separar um do outro. Um bichinho a roer os mínimos laços que pudessem uni-los. Deixasse de loucuras. Que bichinho podia ser aquele?

- VIII -
Diana e Jacira sempre juntas. Nos ônibus, a caminho do colégio. Nas praias, uma deitada ao lado da outra. Nas festinhas do bairro. E sempre sós, sem namorados ou amigos. Isaque e Daniel, também sempre juntos, brincavam. Quem seria capaz de separar uma da outra? Pelo menos por uns dias. Fácil. Bastava um deles namorar uma delas. E apostaram uma dúzia de cervejas. Quem preferia quem? Daniel riu. Se era de brincadeira, qualquer uma servia. E saíram a campo – caçadores. A princípio se mostraram esquivas. Fugiam, medrosas. Nem respondiam aos gracejos dos rapazes. Porém após dias e noites de caçadas infrutíferas, já quase descrentes da conquista, encontraram-se os quatro a sós. Numa pracinha do bairro. Elas comiam pipoca, eles fumavam. Pararam diante delas. Não fugiram mais e, cinco minutos depois, conversavam como velhos amigos. Ou novos namorados.
Ao se despedirem, já os dois casais haviam combinado novo encontro. E Isaque e Daniel foram comemorar a dupla conquista. A cervejada ficava por conta de ambos. Criara-se, assim, um problema. Quando dariam por encerrada a brincadeira? E quem tomaria a dianteira? Só nova aposta.
Um ano depois, casados, reconheceram as derrotas. E nada beberam.

- IX -
Durante o namoro os quatro sempre saíam juntos. Aos domingos iam à praia, quando não faziam pequenas viagens ao interior. Em Juazeiro do Norte participaram da romaria do padre Cícero. Visitaram o antigo Colégio dos Jesuítas, na Serra de Baturité. Banharam-se nas praias de Jericoacoara e Canoa Quebrada. Conheceram a Gruta de Ubajara e as dunas de Almofala. E não deixaram de ir aos cinemas e às festas dançantes. Pareciam ainda namorados. Contudo Isaque e Daniel esqueceram o costume de beberem nos bares. Os amigos zombavam deles. Amarrados, não podiam mais jogar sinuca e ouvir Waldik Soriano.
O dinheiro era minguado e mal dava para o aluguel das casas, a alimentação, o transporte. No entanto não deixavam de se divertir. Como ao tempo de solteiros.
Além do mais, elas nada ganhavam. De estudantes passaram a donas-de-casa.
A união deles e delas também nada sofreu. Isaque e Daniel tornaram-se até mais amigos. Assim como Diana e Jacira. Às vezes um dos casais dormia na casa do outro, quando voltavam tarde da noite. Não dormiam na mesma cama, todavia no mesmo quarto. E conversavam até altas horas.
De manhã, os irmãos saíam para trabalhar, enquanto as amigas dormiam.
Até que um dia Daniel voltou para casa mais cedo. E encontrou despidas na cama Diana e Jacira.

- X -
Numa das cartas Daniel relatou episódios de sua vida com Diana. Desde os primeiros dias de casamento ela recusava manter relações sexuais com ele. Alegava indisposição. Sono, cansaço. Parecia sentir asco ao contato com ele.
A princípio não suspeitara homossexualismo. Porém ao vê-la deitada com Jacira, uma chispa de dúvida o deixou atormentado por dias e dias. Quis conversar com Isaque. Não teve coragem. Com certeza o outro não ouviria com tranqüilidade suas palavras. E se estivesse enganado? Afinal, as mulheres são sempre mais amáveis umas com as outras, sobretudo se amigas.
Melhor conversar com Jacira. Como começar? E onde? Não, não saberia o que dizer. Não dispunha de outros dados para chegar ao assunto, a não ser o da cena na cama. Aquilo seria suficiente para caracterizar lesbianismo?
Conversou com um amigo. Contou a historinha da cama, sem dar nome às personagens. O amigo não teve dúvida – tratava-se mesmo de homossexualismo.
E aqueles olhos apaixonados queimando o corpo de Jacira? Quem não via aquilo? Isaque nada via. Parecia hipnotizado.
Depois o crime. O amor não correspondido armara a mão de Diana. Só um idiota não entendia assim.

- XI -
A notícia da morte de Daniel soou perto da meia-noite. Telefonema de sua segunda mulher. Isaque desesperou-se e viajou na manhã seguinte. Para o sepultamento. E só então conheceu Maria Helena e os dois filhinhos do casal: Daniel e Isaque. Como se dera o acidente? Dirigia em alta velocidade. Havia bebido muita cerveja. Perdeu o controle e o carro capotou. Morte dolorosa. O corpo todo esfacelado. Fraturas generalizadas.
O segundo casamento de Daniel aconteceu poucos meses após chegar a São Paulo. Um ano depois nasceu Isaque. No seguinte, Daniel. Dissera várias vezes: nunca mais voltaria a Fortaleza. Talvez na velhice. Queria esquecer o passado. Sobretudo o mais recente. Nem lhe falassem dele. Seus pais e Isaque insistiam para que passasse umas férias em Fortaleza. Queriam conhecer os garotos. Mandou diversas fotografias. Os meninos lembravam-no pequeno. Ele, no entanto, parecia outro. Alguns quilos a mais e um semblante triste. Até quando aparecia sorrindo ou gargalhando, a tristeza inundava seus olhos.
Maria Helena disse ter feito tudo para que parasse de beber. Ainda assim cada vez bebia mais.
Isaque tentou levar os sobrinhos e a viúva para Fortaleza. Porém os pais dela se mostraram inflexíveis. Só admitiam um passeio. Cuidariam dela e deles.
A partir de então Isaque se voltou também para o álcool. Não se conformava com a morte de Daniel. Chorava sempre. A culpada de toda aquela desgraça chamava-se Diana.
Entretanto ela já não existia também.

- XII -
Sempre amigos, Isaque e Daniel. Desde adolescentes. Quando meninos brigavam todo dia. Nos jogos de futebol trocavam caneladas. Nos jogos de botão nenhum aceitava a derrota de seu time. Em conseqüência, acabavam surrados pela mãe. Queria-os unidos, bem unidos. E os atava um ao outro, como castigo.
Estudaram nas mesmas escolas. Iniciaram-se nos movimentos político-estudantis na mesma época. Engajaram-se na mesma agremiação política. Nas manifestações de rua um protegia o outro. Corriam juntos da polícia.
Ao concluir o curso científico, Isaque se afastou das lutas estudantis. Desiludiu-se dos estudos e arranjou emprego no comércio. E dedicou-se mais e mais às farras. Daniel continuou os estudos por mais um ano. Insistia para que Isaque voltasse a estudar e participar do movimento estudantil. Logo, no entanto, seguiu o mesmo caminho do irmão. O período mais ativo de suas vidas. Viviam em festinhas, bares, praias. E nunca mais voltaram a falar de política. A polícia caçava os estudantes mais ativistas. E muitos até freqüentavam a casa de Daniel e Isaque. Davam notícias horríveis: fulano preso e torturado, sicrano desaparecido, beltrano fuzilado no meio da rua.
Aterrorizados, Daniel e Isaque afastaram-se definitivamente dos velhos amigos.

- XIII -
Após a separação, Daniel saiu de casa e hospedou-se numa pensão. A muito custo voltou à casa dos pais. Isaque, todavia, no mesmo dia da morte de Jacira fechou sua casa e só deixou a de Seu Francisco e Dona Luisa para casar-se de novo. Nem sequer cuidou da mudança dos poucos móveis para a casa dos pais. Seus irmãos trataram da entrega das chaves da casa. E, posteriormente, da venda dos móveis.
De São Paulo chegavam-lhe convites para deixar Fortaleza. Daniel não cansava de escrever cartas tentadoras. Isaque precisava mudar de ares. Esquecer tudo. Iniciar nova vida. E todos em casa concordavam com isso. Ele, entretanto, relutava. Não queria abandonar os pais. Necessitavam dele, de sua presença. Caminhavam para a velhice. E não iria casar outra vez? Tão novo, não devia permanecer só. Até para esquecer Jacira. Se casasse pela segunda vez, a mulher iria morar com os sogros. Seu Francisco e Dona Luisa riam. Coitado do filho!

- XIV -
Isaque conheceu Violeta num clube. Dançavam e bebiam. Todos alegres. Sentado, só, sentia-se um estranho. Não conhecia mais ninguém. Nenhum amigo ao lado. Nenhuma daquelas garotas bonitas de anos atrás. E, sobretudo, a ausência de Daniel.
Cotovelos grudados à mesa, bebia, fumava, sem coragem de convidar alguma garota para dançar. Como se sentia mudado! Quase um velho solitário. Distante do salão de danças.
Já desiludido, pronto a pagar a conta, Violeta passou, olhou para ele e sorriu. Convidou-a para dançar. Também sentia-se só. O namorado andava com outra. Aliás, o ex-namorado.
Nas noites seguintes falou mais dela e de um tal Genésio. Abandonou-a, após mil promessas de amor. Um aproveitador!
Durante dias e meses Isaque e Violeta se divertiram a valer. Festas, praias, camas. Até dizer-se grávida. Ele se assustou, se aborreceu, ameaçou acabar com o namoro. Porém, antes de o filho nascer, casaram-se. O menino recebeu o nome Carlos. Um ano depois nasceu outro: Frederico. Homenagens a Marx e Engels. Violeta gostou dos nomes, embora não soubesse nada daqueles “revolucionários”.
Apesar do novo casamento, Isaque não deixou de beber. Reencontrou alguns ex-amigos, e todas as noites os encontrava nos bares.

- XV -
Vez por outra, Isaque acordava além da hora de chegar ao escritório. Não conseguia sequer sair da cama. Até ser demitido.
Aluguel atrasado, obrigou-se a entregar a casa alugada ao proprietário. Violeta queria voltar para seus pais, levando os meninos. Para evitar a separação, Isaque conseguiu um quarto na casa de Seu Francisco e Dona Luisa. Além do quarto, refeições.
Sem beber por uns dias, pôs-se a escrever versos. Violeta não dizia nada. Se Isaque não procurava emprego, também não bebia.
Dos versos passou às cartas. As do irmão morto. Lia e relia todo o pacote. Mudo, no quarto, feito um prisioneiro. Nem sequer brincava com Frederico e Carlos.
Violeta, contudo, não sossegava. Visitava os pais, levava os filhos a passeio. E procurava emprego para o marido.
Passado mais de um mês recluso e abstêmio, Isaque saiu de casa para apresentar-se ao futuro patrão. Emprego certo. Por obra de Violeta.
No entanto Isaque só voltou para casa perto da meia-noite. Bêbado como nunca. E voltou transtornado: queimou todas as cartas de Daniel, discutiu com os pais, os irmãos, Violeta. E falou pela primeira vez em suicídio.
Adormeceu pela madrugada. E não acordou para ir trabalhar. No mesmo dia Violeta o abandonou, levando os filhos.

- XVI -
Após a fuga de Violeta, tudo piorou para Isaque. Ameaçava trazê-la de volta à força. Dona Luisa chorava, desesperava-se. Seu Francisco convocava os filhos a tomarem atitudes mais enérgicas – se possível, a internação de Isaque num asilo de loucos.
Tudo indicava loucura em Isaque. Passava quase o tempo todo nos bares. Em casa brigava com todos. Se parava de beber, sofria alucinações, não conseguia dormir. Noites inteiras falando só. Dizia conversar com Daniel. E parecia estar mesmo diante do irmão. Ria, contava casos, relembrava fatos de suas meninices, as brincadeiras, as brigas, tudo em minúcias. Ia recordando, recordando, e parava exatamente nos dias de namoro – dele e Jacira, de Daniel e Diana. Como se daí em diante nada tivesse existido, acontecido.
Bastava, porém, beber, e todo o passado recente – do casamento ao presente – ressurgia. Feito vulcão. E ele se transtornava, o ódio, a fúria, o desespero em erupção. Daniel morto, Jacira assassinada, a diabólica Diana viva. Não a acreditava sem vida. Mentira de todos.
E, assim, um dia rapazes musculosos vestiram-lhe uma camisa-de-força, alojaram-no numa camioneta e o conduziram a um sanatório.
Concluído em 4.8.1993.