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sexta-feira, 11 de julho de 2008

A mão esfolada, de Guy de Maupassant: Uma visão fantástica com o senso comum e a dedução lógica (Ana Carolina Bianco Amaral)

(Guy de Maupassant)

Resumo

A literatura fantástica, desde sua origem, gera um descentramento racional em seus receptores. Com ênfase na ruptura da verossimilhança, o abalo sistematológico racional é acionado, gerando atributos hesitacional, dos quais preponderam os legados da narrativa. As estratégias textuais, o senso comum e a dedução lógica promovem a indução do leitor. Essa transcodificação permite a reciprocidade, interação e participação desse destinatário que, por sua vez, reconstrói a ficção, exercendo a pluralidade entre os significados.

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O movimento romântico, em uma de suas modalidades, destinou-se ao presságio onírico, à leviandade fantasiosa, ao oculto. A ascensão desses caracteres predominantes expandiu-se em vigor. A partir de então, em meados de 1830, com as primeiras traduções de Hoffman na França, o termo fantástico foi apropriado à designação vigente dos escritos literários. Para Todorov (2007), esse tipo de literatura define-se pela hesitação experimentada por um leitor implícito, cúmplice do protagonista, ante a ruptura da verossimilhança narrativa, posicionado ao evento sobrenatural.
Ademais, Irène Bessière (1974) afirma que a falsidade e a hipótese do sobrenatural seriam condições indispensáveis do fantástico. O falso, o irreal, o ilusório devem produzir a ilusão, e não findar a veracidade da narrativa; atingem alguma relação entre a realidade concreta, correspondida entre o texto e a cognição do leitor.

O senso comum e a dedução lógica

A verossimilhança ocorrida dentro da narrativa fantástica prevalece em toda diegese. O cotidiano presente instala o tom real na narrativa, partindo da realidade banal, que se adere à noção pertencente a um grupo social não portador de fundamentação sistemática. Para Cotrim (2001), o entendimento médio, comum, apropriado à maioria das pessoas encontra-se emaranhado de tal maneira que suas noções são caracterizadas por uma junção acrítica de juízos, provenientes tanto da intuição como do campo racional. O resultado obtém-se no devir do conjunto de formulações que servirão como base de orientação para a vida prática do indivíduo como se fossem definitivas. Dentro desse processo cotidiano é comum encontrar a categoria de verdades definitivas e absolutas, devido à ausência de uma fundamentação sistemática, habituada às próprias noções populares.
A literatura fantástica é imbuída de senso comum e percepção que engendram a movimentação do texto. Para Marilena Chauí (1997), não existiria algo chamado particularmente percepção, mas haveria sensações elementares ou dispersas cuja organização seria feita pela inteligência. A percepção seria um objeto da sensação. Enquanto nesta sentimos qualidades pontuais, diversas e dispersas, na outra sabemos que estamos obtendo uma sensação.
O movimento narrativo necessita do cotidiano para coexistir, o aspecto temporal do presente e a singularidade real deste, situa o leitor e as personagens em um espaço qualitativo da realidade. A inserção da irrealidade sobrenatural só tem a repercussão almejada dentro do espaço comum definido, em que o próprio senso social não instaura qualquer tipo de indagação.

A análise

O conto A mão esfolada, de Guy de Maupassant, é representante das obras do século XIX. Na consideração dos aspectos fundamentais, propomos a execução de uma análise fantástica, atendendo ao legado teórico de Tzvetan Todorov e Irène Bessière, coadunando, nesse exercício, as premissas textuais remetentes à declinação lógica e sensorial, que é inerente a cada indivíduo.
A narrativa em questão possui a voz de um narrador-personagem, direcionando a obra ao leitor implicado nos elementos estruturais. Todorov (2003) acredita que a modalização verbal condiciona esse ledor à pratica hesitacional, integrando esse atributo à rotatividade textual.
O cenário do conto é proveniente da verossimilhança. O enredo principia-se com uma reunião informal entre amigos. Pedro, viajante aventureiro, adquire uma mão esfolada de um velho feiticeiro, este afirma que o membro cadavérico apetecia a um assassino. Acontecimentos estranhos são sucedidos na trama. Alguns eventos não-familiares ausentam-se de racionalidade inquirida em uma explicação, como a determinada noite em que o protagonista, após zombar do resquício corporal cadavérico, dependurando-o em seu reposteiro, é vítima da tentativa de assassinato, apresentando vestígios de estrangulamento em seu pescoço. O evento conduz o moço à possível loucura. É levado, dessa maneira, ao manicômio, e falece após o acontecido.
Os fatos sucedidos são discursados por um narrador-personagem. No grupo dos amigos, relatado inicialmente, é posicionado, no diálogo, o verbo embriagar. De acordo com a página virtual Brasil Escola, [s/d], os efeitos do primeiro período causado pelo álcool são a euforia e a desinibição. Esta é apresentada nitidamente no comportamento social dos personagens. O excesso do entusiasmo mantido pelo jovem ao falar da mão corrompe (para o leitor) a autenticidade dessa compra, pois o rapaz poderia estar alcoolizado, equivocando-se a respeito da mesma. Pode-se duvidar sobre a visão do jovem quando ele reproduz a fala; porém, quando o narrador-personagem analisa o objeto e descreve-o, relata então uma visão de terceira pessoa. Tal evento sucede-se porque o narrador reproduz a o discurso no aspecto original, com parágrafo e travessão, reforçando que sua visão não é partidária da singularidade, pois as personagens secundárias também vêem a mão da mesma maneira que o narrador a vê: “-Mas que vai tu fazer dessa coisa horrível? – Inquirimos nós.”
Denominaremos certos elementos textuais de premissas. A primeira inclusão destas dá-se, pois, com a inserção do verbo embriagar, discutido acima.
Com a descrição da mão humana é apresentada a espetaculosidade. O narrador em primeira pessoa se terceiriza para fazer uma descrição do horrível aos olhos dos leitores, abrindo mão de uma visão relativa do objeto. Distanciando-se deste, aproxima-se do ledor e compartilha com ele um grotesco absoluto. O público participa de todo o espaço de maneira natural, pois o cotidiano apresenta-se coerente. Para Irène Bessière (1974), o real é paradoxalmente a melhor medida do fantástico, introduzindo um universo cotidiano acrescido de armadilhas. A descrição da mão esfolada é, pois, a segunda premissa textual.
A origem do membro humano cadavérico é apresentada através do moço que está sob a voz do narrador- personagem. Intenciona-se que o leitor[2] dê credibilidade aos fatos devido à reprodução retórica[3] inserida na obra. A procedência da mão é a premissa número três, pois repercute no discurso persuasivamente e é fundamental para o entendimento da trama. É dedutível que o órgão pertencente a um assassino seja também da estirpe do mesmo. E pelo fato de o feiticeiro ter tido grande afeição à mão, deduz-se que o membro corpóreo pode ter sido vítima de algum feitiço, tornando-se extra-natural. Segundo Houaiss Virtual, 2007, o termo feiticeiro associa-se com bruxo; este utiliza forças sobrenaturais para causar malefícios. Assim, encontramos o princípio da falsidade, pois as premissas situadas no texto facultam entre a verdade e a ilusão. A mão pode, realmente, ter pertencido a um assassino, na mesma medida pela qual o relato sobre a origem dela evoca ambigüidade. Essa incerteza gera uma demasiada expectativa pelo desfecho da história, vividos até então, pelo leitor.
Quando os amigos perguntaram ao jovem qual a utilidade da mão, ele respondeu que a usaria como botão de campainha para assustar os credores. Nota-se a zombaria do moço. Usaria o artifício de uma mão cadavérica para espantar qualquer indivíduo que fosse atormentá-lo, porquanto, qualquer cidadão comum ao ver um objeto de repugnância atrelado à porta se assustaria e se ausentaria do local. Conforme a exposição de Bessière (1974), o autor do fantástico coloca o leitor no centro do seu jogo, fazendo dele um ator, convidando-o para completar uma narrativa descontínua e fragmentada. A intromissão estranha no cotidiano permite que o ledor adentre no espaço da trama e questione o comportamento da personagem que desvirtuosamente utiliza a mão de um cadáver para espantar certos indivíduos. O escárnio em si sugere uma determinada trivialidade, mas o aparecimento do cadáver rompe com o natural. Por esse aspecto surge a indagação de um leitor crente na realidade (respaldo adquirido por um espaço cotidiano) que contradiz a exposição de um membro corpóreo à porta de casa.
Nota-se a quarta premissa. Um personagem aconselhou Pedro a enterrar o resquício humano, caso contrário o dono da mão iria pessoalmente buscá-la. Reforça o pensamento com o provérbio quem matou, matará, subentendendo-se que a mão de um assassino, segundo a versão do feiticeiro, será assassina também. O autor insere esses componentes textuais como lúdicos quebra-cabeças necessitados por uma montagem, atribuindo essa função ao receptor. Tudo é dedutível. O amigo poderia estar zombado de Pedro em decorrência da versão assassina da origem da mão que ele contou. Acredita-se assim, pois o ambiente, como já citado, é intrinsecamente real, e até então é desprovido de anomalias, tudo é natural: horizonte situado na trivialidade banal.
A quinta premissa é exposta no texto. O personagem zombador conta para o seu amigo que ouviu alguém bater à porta logo após a colocação da mão esfolada na campainha. Ao ouvir o batido, chamou por alguém que não respondeu. Ocorre, então, a inserção do sobrenatural como hipótese. Afirma Bessière (1974) que toda narrativa fantástica deve concordar com o plano de revelar o ilusório de maneira convincente sem que ele seja confundido com a realidade, porquanto o tema contribui para dar a aparência da existência real do que jamais existiu. As outras premissas são “pistas” indiretas para o leitor iniciar a dedução do estranho, enquanto a última a ser tratada não é uma hipótese do sobrenatural, mas diferencia-se dos outros casos, pois o receptor[4] mantém assídua a desconfiança ao que concerne a procedência da mão, devido às informações de origem cedidas por intermédio do rapaz, podendo ser alteradas em sua veracidade. O fantástico caracteriza-se por um re-velar, pois as pistas não levam a nenhuma certeza, mas a outras dúvidas.
Torna-se premissa do anti-natural o momento no qual Pedro confessou ter ouvido alguém bater à porta. E mesmo na repercussão desse ato, não obtemos certeza de sua realidade, posta a hipótese de um equívoco, já que o vento da noite poderia causar a impressão de um batido; ou então o jovem poderia estar sonhando, relevando a afirmação de estar na cama no horário da meia-noite, subentendendo-se certa sonolência. Esta o levaria a sofrer de onirismo e, dessa maneira, o personagem enlearia a ilusão com a realidade.
O dono da residência exigiu que Pedro retirasse a mão esfolada da porta externa. O jovem lhe obedeceu, mas a colocou na campainha do próprio quarto.[5] Explanou a necessidade de morrer, analogicamente à ordem religiosa Trapistas. Sua ironia, neste momento, é tópico de excelência, porque encara a seriedade de modo adverso da sociedade. O que fere os outros, agrada-lhe. Dessarte, demarca-se a sexta premissa textual.
Observemos a afirmação executada pelo moço, na qual a mão o fará ter pensamentos sérios todas as noites quando for dormir, ou seja, quando ele sonhar. Neste caso, o sonho não pode ser considerado como um símbolo, pois este seria conotativo, rompendo com o cotidiano verídico, e como vimos, com a anulação do habitual, o fantástico não prevalece. Se o leitor não crer na proposta natural dentro dos parâmetros reais que a narrativa oferece, o sentimento responsável por suscitar o terror e deslumbramento não surgirá. Na psicanálise freudiana (1990), o sonho não seria apenas um entrelaçamento de causas associáveis sem significado, nem uma cadeia de sentidos ocorridos durante o sono, como muitos acreditam, mas um produto individual muito notável do exercício psíquico e possível a uma análise. Deste modo, se explicável psicanaliticamente, de maneira alguma o sobrenatural terá êxito.
O narrador-personagem, após o episódio estranho ocorrido na residência de Pedro, voltou para sua casa e contou ao empregado daquele ter dormido mal. Notemos a sétima premissa. Parecia ao jovem a presença de um homem na casa, e por isso, seu sono estava agitado. Mas ocorre a assunção do descanso noturno. Conseqüentemente, o moço pode ter sido vítima, situação semelhante ao caso exposto anteriormente, de onirismo, não transcendendo a um devaneio a impressão de uma presença de um homem em sua residência. Quando o dia amanheceu, o criado de Pedro bateu em sua porta anunciando a morte de seu patrão. O moço vestiu-se correndo e chegou à casa de seu amigo. Inúmeras pessoas preenchiam o ambiente. Discutiam e conversavam ao mesmo tempo. Cada uma delas narrava o acontecimento ao seu modo. O narrador-personagem dirigiu-se até o quarto onde foi promulgada a morte. Quatro policiais estavam em pé procedendo com suas verificações. Dois médicos conversavam na alcova, e não entravam em um acordo.
Pedro estava em estado de choque e com o aspecto físico horrível. Em seu pescoço havia a marca de cinco dedos bem enterrados. É dedutível, então, que o moço tenha sido estrangulado, considerando-se que somente esse tipo de atentado denotaria a evidência de cinco dedos, e faria a pessoa, pela pressão das mãos, ter a pupila dilatada. Estamos diante do fantástico. Acredita-se que o narrador-personagem (visão plural, e não singular) assumiu a realidade devido ao fato de vários personagens externos como a polícia, o médico e as pessoas estarem, juntamente com o moço, repletos de “curiosidade” sobre o atentado ocorrido. Porquanto, surge a oitava premissa: Pedro se apresentava com aspecto terrível e parecia ter visto algo sobrenatural. Irène Bessière (1974) elucida que a associação do irreal e do real não é possuída de significação própria: ela parece somente o indispensável ingrediente da descontinuidade e uma forma de lembrar a onipresença de um além, do oculto dentro da realidade. Novamente, o leitor “atordoado” faculta entre as indagações sugeridas no texto. Este questionamento é natural diante do fantástico, além de proposital.
É citada a nona premissa: o amigo do Pedro olhou para o posicionamento local do membro humano, no quarto, e não o encontrou. Notemos, ainda, a justificativa do narrador-personagem, dizendo ter olhado à campainha por acaso, denotando sua descrença acerca da hipótese da mão ter enforcado seu amigo, da maneira pela qual o texto sugere ao leitor. Essa falta de malícia ou ignorância do rapaz é comprovada no momento em que ele afirma ser mérito dos médicos a retirada da mão, com a intenção de evitar um possível escândalo entre as pessoas circundantes no local; por isso, não questiona o destino do membro corporal.
A fraqueza da narrativa fantástica, retoma Bessière (1974), é uma ambigüidade na qual o jogo do verossímil e o inverossímil se torna irresolúvel. O texto marca essa dualidade. Por um lado é disponibilizada a realidade cotidiana, na qual os fatos aceitos em até determinados momentos estariam dentro da realidade. Após essa desafetação, ocorre a ruptura do autêntico por ter sido penetrado por um aspecto estranho e sobrenatural.
O narrador-personagem, após certo período, encontrou uma notícia no jornal relatando o atentado, e a recortou. Na nota afirmava-se a caracterização do evento quase assassínio como uma luta violenta entre o jovem e o malfeitor. Reforçava-se que os olhos estavam terrivelmente dilatados, e no pescoço havia a marca profunda de uma mão magra e nervosa. Com esta exposição jornalística a décima premissa é acentuada.
No dia seguinte ao recorte da nota foi publicada outra notícia de jornal, garantindo a ausência de riscos mortais na vítima do atentado; porém, receava-se por sua saúde mental. O narrador-personagem insistiu na loucura do seu amigo e, por essa razão, o visitou no hospício por um período de sete meses. Descrevia que no delírio do paciente ouvia palavras estranhas mencionadas pelo doente e este, como todos os loucos, julgava-se perseguido por um espectro. É apresentada a décima primeira premissa: Pedro, escandalizado, diz que lhe estão estrangulando. O propósito dessa afirmação é a dedução informativa, na qual é outorgada à mão a responsabilidade da tentativa delitosa. Porém, o jovem encontrou-se louco, internado num hospício. Em quem acreditar? Conforme Bessière (1974), a falsidade está típica na narrativa fantástica. O falso e dissimulado apresentam-se como real, porém é contido pela inverossimilhança, ocorrendo, assim, o questionamento do leitor.
Pedro morreu. Sendo órfão, seu amigo, o narrador-personagem, levou o corpo à aldeia da Normandia, onde o jovem havia nascido. Chegando ao local, o padre chamou o moço e os acompanhantes, mostrando a eles um caixão. Havia um esqueleto comprido, deitado de costas, que, segundo o rapaz, parecia o desafiar com o olhar. Ocorre a inserção da a décima segunda e última premissa: Pedro adquiriu a mão em Normandia, como já evidenciado no texto. Quando seu amigo foi à cidade enterrar o corpo, descobriram um túmulo no qual comportava o cadáver. Este possuía uma das mãos amputadas, deduzindo-se, na ausência do membro corporal, ser a mão adquirida por Pedro no evento inicial narrativo.
No outro dia, o narrador-personagem pagou cinqüenta francos ao padre para que este rezasse missas para o repouso da alma do cadáver cuja sepultura foi violada. Esta ação final retoma todas as probabilidades textuais citadas. Não há a afirmação, em momento algum, da conclusão do jovem narrador acerca das hipóteses. A narrativa finaliza-se no estado hesitacional, concedendo todo evento especulativo e conclusivo para o leitor participante. Façamos um emaranhamento entre as premissas:
1. O verbo embriagar. A embriaguez traz como conseqüência a desinibição e a euforia. Estas características manifestam-se em Pedro na ocasião em que o personagem adentra a casa de seus amigos e anuncia trazer a mão de um cadáver; por essa razão o leitor pode questionar se o jovem estava embriagado ou se o seu relato é autêntico;
2. A descrição da mão. A caracterização do membro cadavérico é semelhante ao esqueleto encontrado no túmulo: a mão e o esqueleto, por serem muito compridos assemelham-se, podendo ser partes integrantes do mesmo corpo;
3. A origem da mão. Pedro afirma que esta pertencia a um feiticeiro. Ademais, explana que ela fazia parte do membro corpóreo do assassino. Propositalmente, o texto gera a dedução de que o resquício humano foi vítima de feitiços, considerando a antiga pertença do bruxo, hipoteticamente de má índole, pois pertencia ao corpo de alguém que já havia assassinado outras pessoas;
4. Quem matou, matará. Um dos amigos de Pedro aconselha-o a enterrar a mão, achincalhando a conjetura dela matá-lo. Zombavam, mas o provérbio reforça a idéia na qual a mão era assassina e estrangulou o moço, induzindo a dúvida no leitor;
5. A batida na porta. Após o estudante ter pendurado na campainha a mão esfolada, foi dormir e escutou alguém bater na porta. Levantou-se, perguntou quem estava batendo, não obtendo resposta. Novamente, o fenômeno conduz à ilação, da qual hipotetiza a batida da mão à porta, devendo considerar-se o estado do personagem, pois uma vez dormindo, surge a possibilidade de ter sofrido devaneios instaurados por algum presságio onírico;
6. Pensamento de morte dos Trapistas. Pedro retirou a mão e a colocou dentro de seu quarto e, chacotenando, disse que teria pensamentos de morte. Por essa razão, o leitor hesita na hipótese de estrangulamento da mão, e na poluição dos pensamentos de morte;
7. A impressão do homem na casa do narrador-personagem. Após este ter voltado da casa do Pedro, afirma que ao dormir teve a impressão de que alguém estava na sua casa, algum homem. Ou jovem teve uma ilusão recorrente ao sono, ou realmente havia um homem dentro da casa. A presença dentro da residência explicaria o estrangulamento do sue amigo. Poderia ser qualquer indivíduo que estivesse seguindo os estudantes e cometido o atentado.
8. A marca dos dedos no pescoço de Pedro e sua disforme aparência. Após e estrangulamento do rapaz, a marca de cinco dedos estava soterrada em seu pescoço, e as pupilas estavam dilatadas como se tivesse visto algo terrível, sobrenatural. Hipoteticamente, a mão poderia estar viva, tentado homicídio; porém, não havia pistas da tentativa de trucidamento.
9. A mão desaparecida. O narrador-personagem olhou para o local onde a mão estava e não a encontrou Acredita que os médicos a retiraram da campainha para não escandalizar as pessoas. Não há questionamento sobre a possibilidade da mão (que até então o leitor desconfia) ter executado o enforcamento do seu amigo. Essa indagação origina-se do leitor, que acha estranho um estrangulamento distraído de rastros, juntamente com sumiço da mão cadavérica, que não foi mencionada por nenhum indivíduo.
10. A notícia de jornal. A nota encontrada pelo narrador-personagem afirma que a vítima e o malfeitor mantiveram uma luta exacerbada, enaltecendo a marca situada no pescoço do jovem. O advento incerto desestrutura a confiança do leitor acerca da verossimilhança, abalando o prognóstico da certeza.
11. O escândalo do estudante. O amigo de Pedro foi visitá-lo no hospício quando o louco se levanta e gritando diz que o estava estrangulando. Destarte, incide-se a promulgação do exercício questionador do leitor. A convicção, a autenticidade não são estabilizadas, considerando-se, por conseguinte, a internação do vitimado em um manicômio.
12. O esqueleto de punho cortado e o pagamento pelo enterro. O cura do cemitério encontrou um túmulo cujo cadáver não possuía uma das mãos. O membro corporal estava ao lado, e um personagem secundário afirmou que o resquício olhava para narrador-personagem, parecendo que saltaria em seu pescoço, tencionando a restituição da mão. Ademais, o mesmo alvo do restolho cadavérico mandou rezar missas, não para Pedro que era seu amigo e havia morrido, mas para o a alma do corpo (sem uma das mãos) que estava no túmulo violado. A pretensão das possibilidades é evocada em todo percurso da narrativa.. É evidente a atuação do questionamento que as estratégias provocam. Sendo assim, a assunção do desfecho narrativo é exclusivamente cedido ao ledor.
Explana Bessière (1974) que a narrativa fantástica alia o espetáculo e a ilusão, faz da falsidade seu próprio objeto, na qual o autor zomba do leitor que fundamentalmente participa da obra. Este, não encontrando um equilíbrio entre o real e o sobrenatural, hesita, e essa incerteza é o que faz o fantástico engrandecer-se, elevar-se, tornar-se um gênero no qual o leitor indeciso recorre a si mesmo (quando há permissão do texto), propondo-se a reconstruir as estratégias textuais. O desfecho tão esperado da narrativa não acontece pelas personagens, considerando-se que elas não decidem se a mão esfolada assassinou Pedro ou o enredo fez-se em abordagem ilusória. O ledor, que integralmente hesita entre as premissas depositadas na trama, opta se a mão é assassina e sobrenatural, ou se todos os fatos coincidiram-se. Pois nesse tipo de narrativa, a dúvida não é instaurada pelos personagens, sendo que os mesmos não hesitam, mas somente é acometido pelo amiúde questionamento.
O repertório textual é constituído de elementos que abrangem a pluralidade do enredo. A ocorrência dá-se pelo viés interpretativo das probabilidades estratégicas emanadas pela enunciação. A reconstrução narrativa efetuada pelo leitor é situada no viés literário apresentado pela disposição. Destarte, através do cumprimento dessa leitura, a percepção do ledor é ativada, permitindo a centralização das novas probabilidades que, efetuadas, são sancionadas junto ao senso comum e a dedução lógica, deglutidas no discorrer literário. Portanto, o tratado hipotético fantástico apresentado é assíduo na projeção cognitiva, na qual remonta, desconstrói e reelabora as visadas dos leitores; sendo que, para Foucault [s/d], citado em Borba, a morte da interpretação estaria na sustentabilidade da crença da existência primária de símbolos, como marcas sistemáticas, coerentes e pertinentes, enquanto a vida da interpretação é o crer que não há mais interpretações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BATALHA, Maria Cristina. A importância de E. T. A. Hoffmann na cena romântica francesa. Scielo.[s/d]. Disponível em :http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid-=S151706X2003000200008
BESSIÈRE, Irène. Le récit Fantastique - La oétique de l’ incertain. Trad. Fábio Lucas Pierine, revisto por Ana Luiza Camarani. (digitado) Paris: Larousse, 1974.
BORBA, Maria Antonieta Jordão de Oliveira. O pós-estruturalismo em duas vertentes de interpretação. UFRJ, [s/d]. Disponível em: http://www.filologia.org.br/ixcnlf/17/16.htm
CITELLI, Adilson. O Romantismo. São Paulo: Ática, 1986, Série Princípios.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia - história e grandes temas. São Paulo: Saraiva, 2000.
DUCROT, Oswald. TODOROV, Tzvetan. Dicionário das ciências da linguagem. Edição portuguesa orientada por Eduardo Prado Coelho. Publicações Dom Quixote, S/D.
ESCOLA, Brasil. IG. Disponível em: http://www.brasilescola.com/drogas/alcool.htm
FREUD, Sigmund. História de uma neurose infantil e outros trabalhos. Vol. 17. Rio de Janeiro: Imago,1976).
JUNG, C. G. Freud e a psicanálise. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1990.
ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Vol. 1. Trad. Johannes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1996.
LAROUSSE. Dicionário ilustrado da língua portuguesa. São Paulo: Larousse do Brasil, 2007.
LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: O romantismo na contramão da modernidade. Trad. de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1995.
PAES, José Paulo. Gregos e baianos: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1985.
______________. Os buracos da máscara: antologia de contos fantásticos. São Paulo: Brasiliense, 1985.
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_________________. Introdução à literatura fantástica. Coleção Debates. Trad. Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2007.




[1] Aluna especial do mestrado na área de Estudos Literários pela UNESP (Araraquara).
[2] Iser (1996) afirma em sua argumentação teórica que o leitor (implícito) constitui o horizonte de sentido do texto; sendo, dessa forma, conduzido pelas perspectivas matizadas recorrentes à ficção.
[3] Para Ducrot e Todorov (1972), a retórica deve permitir àquele que a possui, atingir, no interior duma situação discursiva, o objeto desejado; ela tem, pois, um caráter pragmático: convencer o interlocutor da justeza duma causa.
[4] Ledor.
[5] A excessividade dos achincalhamentos efetuados no contexto narrativo é cíclica, transportando a peremptoriedade do leitor à ambigüidade notória.
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terça-feira, 8 de julho de 2008

A peleja de Dom Zé Alcides e o dragão de Sobral (Raymundo Netto)



Dados os últimos acontecimentos fenomenológicos e sísmicos que vêm, literalmente, abalando o Ceará, ouço, todas as manhãs, falas sobre “vórtice ciclônico de ar superior”, “diminuição da temperatura no oceano Pacífico”, “zona de convergência intertropical” entre outros palavrórios pouco convincentes, principalmente após a famigerada noite pirotécnica de relâmpagos que despertou a cidade de Fortaleza. Digo despertou, para os outros, pois eu mesmo nem dormia, e descobri in loco a razão de tudo isso.
Era tarde. Vinha passando ao lado da catedral que, à solidão da noite, de tão sombria, chegava a dar calafrios. Na barra da saia da Matriz, demônios com unhas maiores que os dedos, entre cusparadas, invadiam as virilhas de meretrizes, sugando a alma das jovens criaturas. À ladeira do Forte, homens e mulheres seminus surgiam embriagados com garrafas na mão e olhos perdidos.
Pressenti ter que sair logo dali. Contudo, rompeu a chuva e me abriguei embaixo de uma lona velha da feira. Sons, que mais pareciam os de latas caindo nos telhados, emouqueciam. “Que trovões!”, pensava, pois relampejava tanto a ponto da noite quase parecer o dia. Nisso, baratas, escorpiões e os pombos do Palácio do Bispo se dirigiam a caminho da praia. Morcegos campeavam a praça dos Leões, enquanto na igreja do Rosário dos Pretos, ossadas esquecidas, intuindo a presença do mal, se arrastavam pela escadaria. Gatos de cemitério saltavam de todos os lados, como numa peste. Mesmo diante da chuva, o calor era tão grande que estalavam as paredes e vitrais. No ar, talhos de galhos secos e linhas comidas por cupins dos telhados históricos. Os bêbados, os drogados, as prostitutas, os passantes noturnos do centro da cidade clamavam ao deus do Ceará: “É o fim do mundo, o fim do mundo!”
Sentindo meus pés úmidos, constatei que as águas do Acaraú, diante da epigênese epifânica da vida, subverteram em trombas d’água na Fortaleza impassiva, enquanto que, na colina do Marajaik, os verdes abutres voavam a grasnar ameaçadores.
Do horizonte, uma imensa nuvem de poeira deitou-se sobre a praça da Sé sufocando a todos, inclusive os comerciantes da feirinha despejada.
Logo correu a notícia de que outros homens, a entupir os corredores dos hospitais da aldeia, apareceram com manchas vermelhas, dores no corpo e olhos injetados em sangue, vítimas de um vírus latente trazido na poeira da destruição. Foi então que vi, em meio à negra nuvem, a imagem grotesca de um dragão voador. Lembrei a profecia: “Reza a lenda que o mundo vai se acabar pelo Ceará. Um dragão monstruoso dormiria silencioso em sua morada sob uma cidade que, embora tenha muitas igrejas e santos padres, estaria condenada à destruição. Esta cidade é Sobral!”
Sim, leitor amigo, os tremores de terra em Sobral foram causados pelo monstro desperto, a cumprir a sentença de pavor e morte, mandando às favas as placas tectônicas e os vulcões submarinos. Da mesma forma, aqueles “trovões” eram frutos da inexperiência aeronáutica da criatura que tombava nas torres da catedral e nas casas velhas da Justiniano de Serpa. Aliás, não sei se vocês souberam, mas elas desabaram!
Pasmo, assisti à romaria de sobralenses descambando, e até assumindo cargos públicos, em Fortaleza. Viriam os vivos, viriam todos e tudo, até o eclipse.
Foi quando chegou um homem magro, pele marcada de sinais e nariz quase tombando sobre o bigode alvo. Reconheci: era o poeta José Alcides Pinto.
— Ainda por aqui, Zé? — estranhei.
— Mundico, quem pode afirmar com absoluta certeza se o morto não está vivo, embora morto esteja? — respondeu, arregaçando as mangas e puxando o cinto da calça.
O cego curandeiro, João da Mata, e os tremembés de Almofala partiram em luta contra os demônios, e muitos, inclusive os filhos de Janica, foram abatidos.
— Maldição, maldição, maldição! — gritou, aborrecido, Alcides ao dragão que, ao reconhecê-lo, pôs-se a vomitar chicotes de fogo que mais pareciam relâmpagos revelando uma cidade que já não mais dormia.
Zé Alcides corria e saltava, de um lado para outro, fugindo do dragão. Num momento, arrancou um pedaço de raio fincado no asfalto que derretia, ostentando-o como lança diante da fuçalha daquele que o encarava. Eram criador e criatura num embate final. Foi quando ele abriu a braguilha e, para fúria do lagartão, mijou em suas patas. Humilhado, o monstro lançou o poeta contra a parede da catedral, coiçeou, mas ele resistia. Mesmo enfraquecido, Zé Alcides conseguiu lançar, na venta do dragão, uma garrafa com uma mosca presa, fazendo com que ele se dobrasse em dor:
— Ainda vai, filho de uma égua? Lascou-se! — comemorava, alquebrado.
O dragão, como mágica, transformou-se em constelação e seus demônios renderam-se em cinzas; o sol nasceu brilhante e a esperança despontou. Aos pés da calçada, em meio à lama do Acaraú, meninos de rua passaram a catar siris, enquanto as pessoas chegavam desenterrando a cidade. Em pouco, na falta do que dizer de uma vida monótona, só se falava na noite chuvosa, nos trovões incomodantes, nas fagulhas dos céus, nos tremores de terra, na peste da dengue. No centro da praça, entre palhaços, pervertidos e meretrizes, o poeta, prostrado ao colo da jovem Berenice — senão não seria o Zé Alcides —, esgotava:
— Não tenho mais nada a fazer no mundo. Vou conviver com os peixes e as sereias, os corais e as algas, afinal, tudo o que vive se acaba, tudo que foi criado terá fim!
— Morreu o poeta maldito; bendito seja o poeta! — gritava um louco, enquanto Santana do Acaraú fechava os olhos, deixando os moradores às escuras...

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José Alcides Pinto (1923-2008), o poeta maldito, nasceu no povoado de São Francisco do Estreito, Santana do Acaraú, Ceará. Abandonou empregos públicos para se dedicar à literatura. Autor de O Dragão, Os Verdes Abutres da Colina e Diário de Berenice, dentre outros. Alguns dos trechos do texto foram adaptados da obra de Zé Alcides.

(Especial para O Povo - www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/796778.html)

Raymundo Netto. Só. Contato: http://mail-b.uol.com.br/cgi-bin/webmail?Act_V_Compo=1&mailto=raymundo.netto@uol.com.br&ID=IxkP56wNWz8cUQFvZGgVsY5jwYRGR6MZ0cDvJ6sr&R_Folder=aW5ib3g=&msgID=9081&Body=0
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