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quinta-feira, 21 de agosto de 2008

O ativista (Marcelo Spalding)



A crônica de uma pequena cidade do interior do estado precursor da liberdade conta que há remotos tempos vivera ali um certo ativista, o primeiro do gênero que se tem notícias. E último. Ocorre que a cidade era conhecida de norte a sul do país como a cidade onde o ar era mais fresco, digamos assim. Programas de rádionovela repetiam piadas, vizinhos tripudiavam e a fama cresceu à revelia de seus honrados cidadãos e apavorados governantes. Tudo isso explicava o ilustre doutor Simão Brutamontes, ativista da moral e dos bons costumes contratado especialmente para reestabelecer a ordem na pequena cidade. – A saúde da alma é a ocupação mais digna de um médico, bradou Simão enquanto olhava suas cartas em busca de uma rainha.
– E a honradez da cidade é a ocupação mais digna de um homem público, exultou Crispim, o vereador, sem notar que o doutor baixava uma canastra quase completa. – Alto lá, doutor, este cinco não é de paus, preste atenção, protestou o boticário, atento ao jogo e às moedas sobre a mesa.
– Queres que eu te dê um de paus, Simãozino?, ironizou Soares, o vendeiro.
– Ora essa, estás me confundindo?
Riram todos, riu o vereador, riu o boticário, riu o vendeiro e riu o doutor. Riram e coçaram as barbas espessas, afinal desde que Simão chegara na cidade todos faziam questão de cultivar barba, bigode e os mais radicais sequer usavam perfume ou desodorante. Mas naquela tarde a partida não terminou, Simão era chamado com urgência no gabinete do prefeito. O ativista entrou sem pedir licença, cumprimentou o prefeito com um aperto de mão forte porém rápido e acomodou-se numa bela poltrona. O outro contou uma longa história sobre a formação da cidade, a importância da educação européia para as primeiras gerações, a pujança cultural e econômica dos anos idos para finalmente confessar que vira seu filho ao telefone – e de risinhos – com um amigo.
– Mas se foi por pouco tempo isso é normal, tentou contemporizar Simão.
– Por duas horas.
O doutor jogou-se para trás na poltrona, suspirou, coçou a barba e ensaiou uma longa explanação sobre ciência, moral e sexualidade, sobre a importância de mantermos os jovens longe das más companhias, evitando assim uma “deturpação formativa irreversível”. Encerrou o discurso suando e exalando um cheiro ruim o suficiente para que o prefeito abrisse as janelas. Voltando à sua cadeira, perguntou:
– O que então o senhor sugere, Doutor Simão?
– Sugiro a ampliação imediata da Casa Rosa, digo, da Casa Verde a fim de tratarmos também os doentes potenciais, aqueles que ainda não praticaram algum ato de, bem, o senhor sabe, mas estão em vias de praticá-lo.
A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez apareciam verdes na pequena cidade. Verdade que antes a casa tinha as paredes rosas e as janelas verdes, em homenagem a certa escola de samba, mas os cidadãos começaram a chamar a casa de Casa Rosinha, ao invés de Casa Rosada, como pretendia o prefeito, e foi decidido pintar as paredes de branco e adotar oficialmente o nome de Casa Verde. Se primeiro na Casa foram trancados homens que dormiam com outros homens, mulheres que dormiam com outras mulheres e casais que dormiam com outros casais – a maioria denunciados por vizinhas do andar de baixo –, a partir da nova demanda do prefeito qualquer homem com brincos nas duas orelhas, sobrancelhas aparadas ou unhas feitas corria sério risco de ser alienado. Também meninas de cabelo curto e corpo musculoso, senhoras com voz grossa e porte avantajado ou mulheres de quarenta anos ou mais reconhecidamente belas e solteiras eram invariavelmente levadas à Casa e submetidas a rigoroso tratamento científico. Ao cabo de cinco meses estavam alojadas umas cento e oitenta pessoas na Casa; mas Simão Brutamontes não afrouxava, ia de rua em rua, de casa em casa, espreitando, interrogando, estudando; e quando colhia um enfermo, levava-o (ou levava-a) com a mesma alegria que outrora os arrebanhava às dúzias.
Considerava seu trabalho concluído quando foi ao gabinete da prefeitura novamente. Entrou no gabinete sem pedir licença, pôs os pés em cima do sofá e o prefeito, sem esperar a pergunta, disse:
– Não adiantou. Ontem foram três horas. Três horas de conversinha com outro homem, sabe o que é isso?, os dois balançaram a cabeça, coçaram a barba, e o prefeito continuou: – Pelo menos eu descobri quem estava do outro lado da linha.
Foi duro ouvir aquele nome. O doutor tossiu, pediu para o prefeito repetir e, quando não restava dúvidas sobre o dono da voz grossa do outro lado da linha, prometeu uma providência para aquele mesmo dia. Ou aquela mesma noite, quando se encontraria para a habitual rodada de canastra a dinheiro.
– Soares, olha que porcaria de jogada! Não sei por que insiste em vir jogar se não ganhas nunca, desafiou Simão.
– Ora, meu doutor, venho pela companhia dos amigos, é claro.
Não restava dúvida. O ativista apenas esperou a partida terminar para comunicar ao seu amigo Soares que teria de encaminhá-lo a Casa Verde. Discutiram e em meio a briga o vereador sai com essa:
– Não, não nego que falei com o filho do prefeito ontem à noite. Mas pode escrever, doutor, amanhã e depois de amanhã e depois de depois de amanhã outros vão ligar para ele e o senhor terá que trancar todos os homens da cidade naquela casa porque não há melhor papo que o filho do prefeito.
Simão não dormiu direito aquela noite nem as duas próximas. Instalara uma escuta na casa do prefeito e de fato sempre havia uma voz diferente conversando com seu filho, e pela manhã lá estava o doutor na casa dos donos das vozes para levá-los à Casa Verde. Deduziu que havia outras conversinhas deste feitio pela cidade e que elas logo se tornariam uma ameaça a decência, pulando do telefone para a cama, o que obrigou Simão a quintuplicar a capacidade de seu empreendimento.
Um caso em especial chocou a cidade e aumentou muitíssimo a importância do ativista. Cansado de monitorar as conversas do filho do prefeito, Doutor Simão achou por bem prender o próprio jovem, talvez fosse ele o culpado pelas recaídas masculinas. Chegou à hora do café na casa do prefeito, expôs seus motivos e pediu que o jovem o acompanhasse. Até aí tudo corria bem, o rapaz reagiu como se esperasse por aquilo, mas a primeira dama mal terminou de ouvir o diagnóstico do doutor e partiu para cima dele com as mãos cerradas, fazendo ecoar sua voz rouca e chorar seu marido, a esta altura encolhido numa poltrona.
– Não teve jeito, meu amigo, contou o ativista para o boticário no dia seguinte, quando vi tamanha inversão de papéis fui obrigado a levar a família toda para a Casa. Onde já se viu ela querer briga e ele chorar como criança?
A notícia da alienação do prefeito, sua esposa e seu filho apenas aumentaram a fama do doutor na pequena cidade. Seu telefone tocava sem parar com denúncia de irmãos contra irmãos, filhas contra pais, esposas contra maridos, colegas contra colegas, alunos contra professoras. E não bastasse o número assombroso de alienados, Simão era diariamente abordado por senhoras iradas dispostas a soqueá-lo em plena rua e senhores sensíveis chorando pelos seus filhos, pelos seus netos, pelas suas esposas ou pelos seus alunos. Naturalmente o doutor considerou aquilo muito estranho e aos poucos estes também tiveram de ser alienados. O boticário porque chorava a ausência do vereador, o vice-prefeito porque sentia falta do prefeito, a esposa deste porque lamentava o afastamento da primeira dama. Em pouco mais de meio ano, quatro quintos da cidade estava dentro da Casa.
Se o alvoroço dos internos era grande, a aflição do egrégio Simão Brutamontes é definida pelos cronistas da pequena cidade como uma das mais medonhas tempestades morais que têm desabado sobre o homem. Mas as tempestades só aterram os fracos; os fortes enrijam-se contra elas e fitam o trovão. Simão pensava em toda sua ciência e seu empreendimento enquanto embaralhava as cartas para uma partida sem apostas, sem conversas, sem companheiros. Olhou para os lados e sentiu falta da atenção do vendeiro, do sorriso fácil do vereador, da desconfiança do boticário. Lembrou do prefeito que confiara nele a sorte de tão proeminente cidade. E sentiu uma idéia que surgia encabulada sob seus sólidos preceitos morais.
Na manhã seguinte, para espanto geral, decretou que os internos da Casa Verde iam todos ser postos na rua.
– Todos?
– Todos.
– É impossível; alguns, sim, mas todos...
– Todos.
Por um dia a cidade voltou a sua rotina normal, à exceção do ativista que abria e fechava livros em busca de uma resposta. Passou o dia nessa pesquisa incessante até ser interrompido pelo boticário, pelo vendeiro e pelo vereador.
– Voltas ao carteado hoje, doutor?
A vontade era largar livros e estudos e abraçar demoradamente um por um dos amigos, talvez beijar-lhes a face, confessar a estima. Mas o ilustre ativista, com os olhos acessos da convicção científica, trancou os ouvidos, brandamente repeliu o trio e fechou-se para sempre no interior da Casa Verde, entregando-se ao estudo e à cura de si mesmo.
Outubro de 2006
(Publicado na Revista Arquipélago, do IEL/RS)

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Marcelo Spalding é formado em jornalismo e mestrando em Literatura Brasileira na UFRGS, vice-presidente da Associação Gaúcha de Escritores, editor do website Veredas, autor dos livros infanto-juvenis 'As cinco pontas de uma estrela' e 'Vencer em Ilhas Tortas', membro do grupo Casa Verde, colunista do Digestivo Cultural e participante de algumas antologias de contos. Profissionalmente dirige a msmidia.com, empresa de informática e comunicação há 5 anos no mercado. Em 2000 lança o livro As Cinco Pontas de uma Estrela, então com 17 anos.
http://www.marcelospalding.com/

domingo, 17 de agosto de 2008

Fornos carvoeiros (Silas Corrêa Leite)



Os fornos carvoeiros
Têm os seus guris pretos
Com os olhos fagueiros
Em toscos comequietos
Sempre uns serviceiros
Se tornando espectros
Os gabirus rueiros
E os seus tristes gestos
Os piás clandestinos
Dos fornos carvoeiros
Têm nos frágeis meninos
Coitados, de trigueiros
Humildes com destinos
Em cruzes sem luzeiros
E são como caprinos
Nesses vis pardieiros
Os clandestinos fornos
Têm os moleques pretos
Na pele os contornos
Com fuligem em espectros
De exploradores donos
Morrem magros, infectos
Assim, em abandonos
Nem terão filhos ou netos
Meninos carvoeiros
Que sustentam seus pais
Pobretões e cordeiros
Desses guetos gerais
Passam dias inteiros
Transportando, em pás
Tantos carvões vermelhos
Que a morte lhes traz
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Os patrões vivaldinos
Desses escravos pretos
São de grandes domínios
E têm lucros certos
(Os curumins, franzinos
Quais gravetos – espectros
NOS FORNOS CLANDESTINOS
SIMPLESMENTE SECAM)

De Itararé-SPE-mail: poesilas@terra.com.brwww.itarare.com.br/silas.htm
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