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terça-feira, 10 de novembro de 2009

E o boi não lambe (Batista de Lima)



Gerôncio chegou vestido de treva ao armazém. No fundo do salão escuro o negro Sabiá jazia inerte e acorrentado ao pilão deitado. Verificou que o negro estava vivo mesmo depois de tanto apanhar para confessar o roubo.

Foram várias patacas desaparecidas do baú da casa grande no domingo de páscoa. Mas o negro carregador de água já confessara tudo. Só não soube dizer aonde guardara o tesouro.

No curral ao lado o touro “surubim” já escavava o chão com os chifres, após dia e meio sem comer e sem beber e passaria mais um naquele estorrico. Era preciso muita fome para enfrentar o negro. Era preciso exemplar o negro na frente dos outros.

Dia seguinte lá pelas onze o negro foi levado e amarrado nu ao mourão no centro do curral ensolarado. Seu corpo foi untado de manteiga da terra e o touro solto de suas amarras. Era um touro de mais de trezentos quilos esfomeado e sedento, sentindo o cheiro da manteiga que escorria com o suor do negro amarrado ao tronco.

O touro se aproximou, cheirou o corpo do negro, amanteigado, e deu a primeira lambida na barriga úmida. Foi o suficiente para que se ouvisse o grito do condenado e o filete de sangue escuro escorrer pelas pernas. Assim o touro quanto mais lambia a manteiga com o sangue mais parecia enfurecido com tanta fome e sede. Em pouco tempo estava o coitado em carne viva, tentando livrar-se daquela língua lâmina.

Aos poucos ia perdendo todo o sangue e a força do grito, e pendia entregue à dor, desfalecido e exangue. Os outros negros do outro lado da cerca se benziam de olhos marejados.

Na porteira do curral o patrão recebeu o delegado que chegava, avisando ter encontrado o tesouro nas mãos de um meirinho que já estava preso na cidade.
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domingo, 8 de novembro de 2009

Notas poéticas: Três martes, de Davino Ribeiro de Sena (Henrique Marques Samyn)



Havendo estreado na poesia na década de 90 com Castelos de Areia, obra premiada na 5ª Bienal Nestlé de Literatura, Davino Ribeiro de Sena já mereceria algum destaque no ambiente poético contemporâneo por aliar, em sua obra, a preocupação formal à busca do lirismo, ambos comumente relegados pela maior parte dos que atualmente se aventuram pela vereda da poesia – que confundem, geralmente, forma com formalismo e lirismo com pieguice. Distante de ambos os vícios, Davino entrega-se a um labor construtivista sem deixar de dar ouvidos à sua matéria lírica, logrando, não poucas vezes, alcançar resultados notáveis.

Três martes, sua obra mais recente (7Letras, 2004), parte de uma proposta artística tão interessante quanto curiosa: em uma espécie de fantasia semântica, tenciona o poeta versar sobre Marte enquanto planeta e enquanto ente mitológico, desvelando um terceiro Marte que seria produto dos dois primeiros. Davino pretende, por esta via, realizar uma reflexão sobre a alteridade; no entanto, sendo esta alteridade tão enigmática, a meditação acaba sendo não sobre o outro, mas sobre si mesmo e o que o cerca – o mundo, a vida, a História, a experiência humana. O terceiro Marte torna-se, enfim, um espelho.

O longo poema segue uma estrutura fixa, com estâncias de doze versos de medidas variáveis, somando ao final mais de dois mil versos. Todavia, é nesta extensão que está sua fragilidade. Coexistem, no poema, momentos de possante força lírica – veja-se, por exemplo, a descrição do “planeta frio”: “Nenhuma sombra, nada / que recorde a vida / no horizonte monótono / quebrado pelas dunas / de areia avermelhada / e pensar monossilábico (...)” – e momentos em que o ímpeto criativo perde o fôlego, tangenciando o prosaísmo, o que resulta em versos que pouco se afastam do trivial – “Um dia seremos lúcidos / mais do que lúdicos. / Misterioso não é o anjo / mas o homem com o banjo.”. É quando a dimensão contingente – construtiva e intelectiva – sobrepuja a dimensão lírica, esta a verdadeiramente essencial.

Davino destaca-se em meio à esterilidade lírica patente na poesia surgida nas últimas décadas justamente por ser um poeta que tem grande familiaridade com suas fontes de inspiração (o que, aliás, rendeu belíssimas obras em seu livro anterior, Vidro e Ferro, de 1999). Ainda que tais fontes se façam presentes, aqui e ali, em Três martes, o que compromete a inteireza do livro são precisamente os momentos em que a razão se faz excessiva, esvaziando o verso de seu substrato lírico. Davino procurou desvelar um terceiro Marte em meio à tensão entre o Marte-planetário e o Marte-mitológico; poderíamos pensar, analogamente, em uma tensão entre o Davino-lírico e o Davino-construtivista. É quando o último não excede o primeiro, quando ambos se harmonizam, que vemos despontar, verdadeiramente, o Davino-poeta.
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