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quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Os primeiros escritos de Nilto Maciel (Henrique Marques-Samyn)



A verve experimentalista de Nilto Maciel confirma-se através da leitura do primeiro volume de seus Contos reunidos (Bestiário, 2009), que reúne os textos publicados nos livros Itinerário (1974/1990), Tempos de mula preta (1981/2000) e Punhalzinho cravado de ódio (1986). Autor prolífico e multifacetado, entre os méritos de Nilto está uma incansável disposição para repensar sua própria produção literária, algo que já pode ser percebido nesses primeiros textos – entre os quais merecem destaque o forte “Punhalzinho cravado de ódio”, o patético “Detalhes interessantes da vida de Umzim” e o bem urdido “Tadeu e a mariposa”.

Extraindo seus motivos de temas históricos, regionalistas ou fantásticos – não sendo incomum a mescla de elementos oriundos desses diversos campos –, Nilto Maciel é o tipo de escritor que resiste a rótulos e a categorizações. Transparece nesse pluralismo um pendor fundamentalmente comprometido com o próprio exercício da escrita: é esse um autor para quem a criação literária é uma forma de organizar e questionar o real – conquanto esse termo, no vocabulário do autor cearense, seja de difícil definição.

Reunindo os primórdios da obra de uma importante figura das letras brasileiras contemporâneas – sobretudo por sua atitude democrática, justamente destacada pela prefaciadora Liana Aragão, que por longos anos materializou-se na revista Literatura – , Contos reunidos de Nilto Maciel vem, em boa hora, ocupar um espaço de valor em nossas estantes: aquele lugar destinado às obras dos que, além de criadores, são também fomentadores da cultura brasileira.
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terça-feira, 10 de novembro de 2009

E o boi não lambe (Batista de Lima)



Gerôncio chegou vestido de treva ao armazém. No fundo do salão escuro o negro Sabiá jazia inerte e acorrentado ao pilão deitado. Verificou que o negro estava vivo mesmo depois de tanto apanhar para confessar o roubo.

Foram várias patacas desaparecidas do baú da casa grande no domingo de páscoa. Mas o negro carregador de água já confessara tudo. Só não soube dizer aonde guardara o tesouro.

No curral ao lado o touro “surubim” já escavava o chão com os chifres, após dia e meio sem comer e sem beber e passaria mais um naquele estorrico. Era preciso muita fome para enfrentar o negro. Era preciso exemplar o negro na frente dos outros.

Dia seguinte lá pelas onze o negro foi levado e amarrado nu ao mourão no centro do curral ensolarado. Seu corpo foi untado de manteiga da terra e o touro solto de suas amarras. Era um touro de mais de trezentos quilos esfomeado e sedento, sentindo o cheiro da manteiga que escorria com o suor do negro amarrado ao tronco.

O touro se aproximou, cheirou o corpo do negro, amanteigado, e deu a primeira lambida na barriga úmida. Foi o suficiente para que se ouvisse o grito do condenado e o filete de sangue escuro escorrer pelas pernas. Assim o touro quanto mais lambia a manteiga com o sangue mais parecia enfurecido com tanta fome e sede. Em pouco tempo estava o coitado em carne viva, tentando livrar-se daquela língua lâmina.

Aos poucos ia perdendo todo o sangue e a força do grito, e pendia entregue à dor, desfalecido e exangue. Os outros negros do outro lado da cerca se benziam de olhos marejados.

Na porteira do curral o patrão recebeu o delegado que chegava, avisando ter encontrado o tesouro nas mãos de um meirinho que já estava preso na cidade.
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