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sexta-feira, 5 de março de 2010

Soares Feitosa: Oraculum, oraculi (Nilto Maciel)



(Da esquerda para a direita, sentados: Nilto, Jorge Tufic e Soares Feitosa, nos jardins da reitoria da Universidade Federal do Ceará)



Recebi (em 96 ou 97) um embrulho volumoso e pesado, de remetente desconhecido. Seria mais um escritor novato em busca de leitor e crítico? Naquela noite, eu pretendia dar mais uns retoques num conto iniciado havia mais de uma semana. Jantaria, conversaria com a família, comentaria os fatos do dia. No entanto, o pacote sobre a escrivaninha me chamava a rasgar seu invólucro. Jantei, pouco conversei e nem prestei atenção às notícias da televisão. Quem seria aquele Soares Feitosa? Violei o papel, sem fúria. E aos meus olhos se mostrou um objeto colorido, de capa dura e muitas páginas, chamado Réquiem em Sol da Tarde. Todo feito em computador, em casa, artesanalmente. Pus-me a ler e me fui fascinando. Sentei-me, para não desmaiar. Permaneci lúcido, acordado, por muitas horas. O resto da noite passei a ler aquela poesia, ao mesmo tempo, seca e úmida, mineral e vegetal, leve e pesada. E fui me entorpecendo, até pegar no sono sobre o dorso do livrão. Pela madrugada, minha companheira me acudiu. Eu adormecera, entorpecido de prazer, como se tivesse me enchido de ópio. Dias depois, mandei carta ao poeta. Ora, eu não sabia de sua existência. Eu e quase ninguém. Porque inédito, escondido, a poetar sem alardes, recluso em casa.

Conheci Soares Feitosa em Brasília, alguns anos depois daquela noite de papoulas imaginárias. Conversa rápida, porque anda sempre com pressa, em razão das lides forenses, viaja para cá e para lá e não dispõe de tempo para parlendas inúteis em bares e outros lugares onde poetas barrigudos ou esguios, e sem tino, costumam destilar (ou dedilhar) suas folhas (ou falhas) literárias. Deu-se numa tarde melancólica, num sábado qualquer. Fui ao encontro dele, endereço anunciado por telefone. Apresentamo-nos, sem necessidade, porque já nos conhecíamos literariamente. E isto basta. Falou e falou, durante quase todo o tempo da reunião. Não falou de si ou de sua poesia. Falou tão-somente do Jornal de Poesia, com um entusiasmo de adolescente. Editor de revistas havia mais de vinte anos, fiz-lhe perguntas de entrevistador: Como você seleciona os poemas e contos? E ele, como se se irritasse (parece estar sempre irritado, de mau-humor), não titubeou: Não faço seleção nenhuma; que o façam os leitores e os críticos. Insisti: Certamente nem tudo é publicado. De certa forma, há uma seleção. Ele se irritou mais, depois sorriu. Ou gargalhou: Sim, há os cupinchas. Se for meu cupincha...

De volta a Fortaleza, em 2002, procurei-o. Eu tencionava, havia muito, criar um jornal do conto na Internet. Marcamos dia, hora e local do encontro. Convidei dois ou três amigos para a visita. Abraçou-nos, ofereceu água e café. Vínhamos esbaforidos, suados, cansados. Não, café não combinava com o nosso sarau. Pelo telefone interno, chamou uma serviçal: Traga rapadura. Um minuto depois, uma cesta com pedaços de rapadura nos foi apresentada. Comam. Essa é a comida do sertanejo. Vocês precisam mesmo é de rapadura da serra. Enquanto comíamos, ele voltou a falar de literatura. E do Jornal de Poesia.

Soares Feitosa não tem papas na língua. Fala tudo, sem rodeios (ou arrodeios), sem vergonha, feito criança. Embora meninão, não faz perguntas, mas afirmações. Mesmo as que mais chocam ou melindram o interlocutor? Você nunca leu a Bíblia; não sabe onde fica o sertão; está perdendo tempo com esse tipo de literatura. Além disso, conhece todo mundo: dos poetas gregos aos cantadores de feira, dos romancistas russos ao mais esquecido escritor dos cafundós. Fala, com desenvoltura, de uns e outros. O cego fulano, o louco sicrano, a mocinha de Cabedelo, o mocinho de Maria Farinha. Nunca os viu e não tem interesse de vê-los. Tem memória como poucos: O poeta beltrano, autor de A mocinha de Cabedelo... Parece ter lido há poucos minutos a obra completa do interlocutor: Nilto, quando o cabra que virou bode saltou, nu, a janela da casa do “coroné”, já sabia que um bode expiatório se preparava, no meio do mato, para salvá-lo da morte.

Soares não faz elogios à-toa, assim como não perde tempo em espicaçar poetas, contistas e romancistas. Se gosta da obra, faz hermenêutica. Destrinça tudo, escarafuncha as vísceras do pergaminho. Não diz trivialidades ou frases pomposas, dessas que se ouvem e leem nas academias, nos jornais, nas esquinas, nos bares (fulano é gênio; a poesia de beltrano é digna de Camões). Talvez nem as ouça: entram por um ouvido e saem pelo outro. Parece ter lido tudo. Ou o essencial de tudo: gregos e troianos, poetas e cronistas bíblicos, latinos e trovadores medievais, Augusto dos Anjos, Castro Alves, Fernando Pessoas (assim mesmo, no plural), cordelistas, cegos aderaldos. Além disso, aprendeu, como poucos, gramática e etimologia. Seria um sábio, um mestre. Ri disso. Tem imaginação de profeta. Sorri. Ora, se não tem vocação para sábio, mestre e profeta, só pode ser poeta. Entretanto, diz ter escrito o primeiro poema após completar 50 anos de idade. É possível.

Os mais moços (eu e ele somos sexagenários) chamam-no rabugento, porque o procuram para ouvir elogios e ver seus versos no Jornal de Poesia. Ele, porém, fala de poemas centenários. E eles não o ouvem. Certa noite, ao redor de uma mesa, num bar do centro cultural Dragão do Mar, ele falava do Gênesis. E contava a história do amor de Jacó por Raquel, e citava versículos da Vulgata: “Habebat vero filias duas: nomen maioris Lia, minor appellabatur Rahel; sed Lia lippis erat oculis, Rahel decora facie et venusto aspectu. Quam diligens Iacob ait: Serviam tibi pro Rachel filia tua minore septem annis”. (Na tradução de João Ferreira de Almeida: “Ora, Labão tinha duas filhas: Lia, a mais velha, e Raquel, a mais moça. Lia tinha os olhos baços, porém Raquel era formosa de porte e de semblante. Jacó amava a Raquel, e disse: Sete anos te servirei por tua filha mais moça, Raquel”). Um engraçadinho, metido a sabichão, pôs-se a declamar: “Sete anos de pastor Jacó servia / Labão, pai de Raquel, serrana bela” (...). Irritado, por ser interrompido, Feitosa se calou e fez menção de se retirar. Pedi-lhe calma, permanecesse, continuasse a história. Entretanto, à sua frente, um poeta e uma poetisa se lambiam. Talvez impulsionados pelo conto genesíaco. Feitosa se irritou mais ainda, não sei se por não o ouvirem, não sei se por quererem representar em público. E sapecou: Isso é uma esculhambação.

Estou devendo mais uma visita a Feitosa. A degustação da rapadura da serra. A disposição para ouvir sua fala de homem com raiva do analfabetismo, da ignorância, da cegueira, da surdez de muitos catedráticos, eruditos, mestres. Estou lhe devendo uma visita para compreender um pouco mais de mim mesmo. Porque Soares Feitosa é também leitor de mentes. Ou de entrelinhas. De entrementes? Melhor dizê-lo oráculo.

Fortaleza, fevereiro de 2010.
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segunda-feira, 1 de março de 2010

Livro italiano sobre Fernando Pessoa tem ensaio de Adelto Gonçalves


(Adelto Gonçalves)

O ensaio "Ambiguità e ossimoro: simboli dell'universo e del mistero in Fernando Pessoa" (Ambiguidade e oxímoro: símbolo do universo e do mistério em Fernando Pessoa), do jornalista e escritor Adelto Gonçalves, professor do curso de Direito da Universidade Paulista (Unip) e de Jornalismo Impresso da Universidade Santa Cecília (Unisanta), de Santos, faz parte do livro Studi su Fernando Pessoa, a ser lançado dia 9 de março por Edizioni dell'Urogallo, de Perúgia, sob a direção do professor Brunello De Cusatis, responsável pelas Cátedras de Literaturas Portuguesa e Brasileira e de Línguas Portuguesa e Brasileira da Universidade de Perúgia. Segundo De Cusatis, a obra reúne onze estudos de alguns dos maiores especialistas hoje na obra de Fernando Pessoa em todo o mundo.

Na apresentação do livro, De Cusatis explica que a obra estava prevista para sair à luz em 2008, à época do 120º aniversário de Fernando Pessoa (Lisboa, 13/6/1888), mas "razões profissionais e familiares" acabaram por retardar o seu lançamento. O livro é dedicado à memória do crítico cubano René Pedro Garay, diretor do Departamento de Literaturas Hispano-americana e Luso-brasileira da The City University New York (Cuny), falecido em 30/4/2006 e co-autor com Raúl Romero do ensaio "Epifanía y poema en prosa: El Livro do Desassossego de Fernando Pessoa/Bernardo Soares", que também será publicado com o título Il Livro do Desassossego di Fernando Pessoa/Bernardo Soares: epifania e poema in prosa em Studi su Fernando Pessoa. Nesse ensaio, os autores apontam o livro Fernando Pessoa: a Voz de Deus, de Adelto Gonçalves (Santos: Universidade Santa Cecília, 1997), como texto pioneiro em referência ao poema em prosa na obra de Fernando Pessoa.

Além dos ensaios de Adelto Gonçalves e de Raúl Romero-René Pedro Garay, a obra traz estudos: do próprio Brunello De Cusatis; de Alfredo Margarido, poeta, artista plástico e professor da Universidade Lusófona, de Lisboa; de José Blanco, bibliógrafo pessoano e ex-administrador da Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa; de Manuel G. Simões, ex-responsável pela cátedra de Língua e Literaturas Portuguesa e Brasileira das Universidades de Bari e Veneza; de Ivo Castro, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; de Jerónimo Pizarro Jaramillo, colombiano com doutorado em Literatura Portuguesa pela Universidade de Lisboa e em Literatura Romana pela Universidade de Harvard; de Fernando J. B. Martinho, crítico literário e professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; de Vera Lúcia de Oliveira, professora brasileira da Faculdade de Letras da Universidade de Perúgia; e de Andrea Marcigliano, jornalista e professor de Filosofia e História.

O ensaio "Ambiguidade e oxímoro: símbolos do universo e do mistério em Fernando Pessoa", agora traduzido para o italiano por Brunello De Cusatis, foi publicado originalmente na revista Forma Breve, nº 4, 2006, pp.303-313, da Universidade de Aveiro, Portugal. Já o ensaio "Epifanía y poema en prosa (El Livro do Desassossego de Fernando Pessoa/Bernardo Soares)" foi publicado originalmente em castelhano na revista Forma Breve, nº 2, 2004, pp. 71-79, e na Revista do Centro de Estudos Portugueses (Cesp) da Universidade Federal de Minas Gerais, de Belo Horizonte, v. 25, nº 34, jan-dez, 2005, pp.13-22.

Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa e mestre na área de Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana pela Universidade de São Paulo (USP). Fez trabalho de pós-doutorado com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp) na Universidade de Lisboa em 1999-2000.

Jornalista desde 1972, trabalhou em O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, Editora Abril e A Tribuna, de Santos. Foi correspondente em Lisboa da revista Época em 1999-2000. É colaborador do quinzenário As Artes entre as Letras, do Porto, e dos jornais Diário dos Açores, A Tribuna, de Santos, Jornal Opção, de Goiânia, A Tarde, de Salvador, e revistas Vértice e Colóquio/Letras, de Lisboa, Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, e Forma Breve, da Universidade de Aveiro, entre outras. É sócio-correspondente da Academia Brasileira de Filologia (Abrafil), do Rio de Janeiro.

Estreou na literatura em 1977 com o livro de contos Mariela Morta. Em 1980, ganhou menção honrosa do Prêmio Nacional José Lins do Rego da Livraria José Olympio Editora, do Rio de Janeiro, com o livro Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981). Em 1986, obteve o Prêmio Fernando Pessoa da Fundação Cultural Brasil-Portugal, participando do livro Ensaios sobre Fernando Pessoa.

Conquistou os prêmios Assis Chateaubriand de 1987 e Aníbal Freire de 1994, ambos da Academia Brasileira de Letras. Em 2000, com Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), seu trabalho de doutorado, ganhou o Prêmio Ivan Lins de Ensaios da União Brasileira de Escritores e Academia Carioca de Letras.

Em 1999, publicou o seu primeiro livro em Portugal: o romance Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999), que saiu no Brasil em 2002 pela Publisher Brasil, de São Paulo. Em 2003, publicou pela Editorial Caminho, de Lisboa, Bocage: o perfil perdido, seu primeiro trabalho de pós-doutorado. Escreveu prefácios para dois livros de contos de Machado de Assis publicados em 2006 e 2007 pelo Centro Lusófono Camões da Universidade Estatal Pedagógica Hertzen, de São Petersburgo, Rússia, em edição bilíngüe russo-portuguesa, com o apoio do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.

Atualmente, com bolsa da Unip, desenvolve pesquisas no Arquivo Público do Estado de São Paulo sobre a atuação de ouvidores, juízes de fora e juízes ordinários na capitania de São Paulo (1709-1822). Tem prevista a publicação pela Ateliê Editorial, de Cotia-SP, do livro Aventureiros paulistas: a formação da capitania de São Paulo no século XVIII.
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