Às vezes a gente se apega, mesmo sem querer, e acaba gostando de alguém. Que pelo menos seja de uma criança então. Eu estava de saco cheio daquela história de dar aulinhas. Fora de brincadeira, os alunos eram uns capetas e os pais eram piores ainda, ganhava-se mal e, além disso, naquele ano, eu tinha ido parar numa escola do outro lado da cidade, tive até de comprar uma lambreta pra chegar a tempo de uma escola à outra. Sem contar que a toda hora aparecia algum jornalistinha, médico, padre, pedreiro, doutor, encanador e o escambal dando pitacos e oferecendo soluções sensacionais para o problema da educação. Falar é fácil, sempre foi. E a gente é que tinha de trabalhar em três escolas, correr de uma pra outra, fazer dezesseis horas por dia pra pagar as contas, vai vendo. E tinha aqueles coitados que não aprendiam nem se a gente desse cambalhota, ou fizesse malabarismo no meio da sala de aula. E tinha aqueles coitados que chegavam fedendo, doidos pra comer a merenda e esperar o lanche. Como é que alguém pode se interessar por Emílias e Narizinhos quando se chegava com o estômago pregado às costas e as orelhas cheias de bolachas familiares advindas da pinga paterna da noite anterior? E pro meu lado ainda tinha aquela diretora que parecia uma coruja de tanta plástica e de tanta chatice. É preciso dar nome aos bois, digo, à vaca: chamava-se Sandra Siqueira Nunes, ainda deve estar por aí, fodendo a vida dos outros. Não era mesmo fácil, mas eu tinha uma família pra sustentar e não podia entregar a rapadura. “Você reclama de barriga cheia” me diziam. Falar é fácil. Pimenta nos olhos dos outros é refresco. Como diria o Machado, suporta-se com paciência a cólica alheia. Isto mesmo. Mas eu tinha de agüentar até o fim do ano. Isto mesmo, só até o fim do ano... e arrastava outra vez minha carcaça cansada pro outro lado da cidade, onde quarenta e cinco alunos de onze anos, mais ou menos, me esperavam em cada sala de aula.
Foi numa tarde em que o calor estava torrando nossos miolos que ele chegou até minha mesa. Todo malandro, negro, cheio de desenhos no corte de cabelo, franzino, com um par de tênis que devia caber uns dois pés dele dentro, querendo puxar assunto pra não fazer a lição, eu andava bem ligeiro com todas essas malandragens:
- O senhor tem uma moto, né professor?
- Uma lambreta.
- É meio feia a moto do senhor, mas dá pro gasto. Sou doido por moto. Meu tio tem uma Hornet, por que o senhor não compra uma Hornet?
- Não tenho dinheiro. O que é que seu tio faz.
- Meu tio é ladrão. Meus tio é tudo ladrão. Tem dois que tá preso e um que morreu. Os outros dois só rouba. Teve um tio meu que deu um tiro na boca de um cara e os dentes saíram pela nuca. Meus tio é tudo doido. O outro só rouba caminhão e faz seqüestro relâmpago. O senhor é casado?
- Sou, por quê?
- Se não fosse, eu ia dar o telefone da minha tia pro senhor. Ela é a maior gostosa, queria que o senhor visse. Mas ela namora com um velho que deve ter mais de cem anos. Ela tem uma filha de dois anos também. A menininha é o maior barato, sabia que a primeira coisa que ela falou foi o meu nome? Vive atrás de mim, ela é o maior barato, professor, é esperta demais. Agora ela já fala tudo. Já sabe até conta. Quer dizer, sabe mais ou menos. Ela conta assim: um, dois, três, cinco, oito, dez, dezoito. Minha tia é meio chata. Às vezes ela me bate, mas quando ela tá legal também ela compra um monte de filme de terror e a gente passa a noite toda assistindo. O Senhor já assistiu O exorcista?
- Já.
- É muito louco, né. Esse é o melhor professor. E diz que morreu todo mundo que fez o filme. Sinistro, né?
- Pois é. Mas e seu pai, Maciel? Sua mãe?
- Meu pai morreu no ano passado, professor. Ele trabalhava pra prefeitura. Cortando as árvore. Aí uns dois anos atrás uma árvore caiu em cima dele. Ele ficou ruim um bocado de tempo. Ai melhorou um pouco e aí no ano passado ele morreu. Minha vó recebe a pensão dele, mas não me dá nada. Quer dizer, ela me dá roupa e comida, né professor e cuida de mim.
- E sua mãe, Maciel?
- Minha mãe bebe. – Ele falou e pela primeira vez pareceu se entristecer. Minha mãe bebe. Não precisava me dizer mais nada, eu podia deduzir o resto. Bateu o sinal.
- E a lição, Maciel?
- Foi mal professor, não fiz não, mas é que essa lição é muito chata. - Eu sabia que a lição era chata mesmo. A escola era um pé no saco pra todo mundo.
***
Durante o intervalo, na sala dos professores, perguntei aos outros sobre o Maciel.
- É um vagabundo. – Disse um.
- Não faz nada. – Disse outra.
- Parece que a família é toda desestruturada. – Disse outra e continuou. – Deu um trabalho danado no ano passado, quando o pai morreu. Arrumava briga todo dia. Arranjava confusão até com os meninos da oitava série. E pior que muitas vezes ele, daquele tamanho, conseguia bater nos meninos grandes.
- Vem alguém na reunião de pais?
- Nunca veio ninguém. – Disse o professor que chamara o Maciel de vagabundo.
***
Quando voltei de novo na sala do Maciel, ele mal esperou que eu terminasse de fazer a chamada. Pegou suas coisas, sua cadeira e foi se sentar junto de mim, na minha mesa.
- Ei, professor, hoje eu vou fazer toda a lição. – Disse – Pode encher a lousa que eu vou fazer tudo.
Só que era aula de leitura. Estávamos lendo O pequeno príncipe, quero dizer, estávamos tentando ler O pequeno príncipe. A maioria só abria o livro e começava a conversar, obrigando-me a aumentar o tom de voz, que é um jeito de gritar elegantemente. Mas o Maciel quis ler neste dia e quis ler em voz alta. E leu... e bem. Daí em diante o moleque mudou na minha aula. Não que ficasse quieto, porque isso ele não conseguia mesmo. Mas fazia todas as atividades e terminava primeiro que todo mundo. Só depois é que começava a bagunçar.
- O Maciel só faz a lição do senhor, professor. – Diziam os outros alunos. E ele fazia mesmo. Rápido e bem feito... a letra não era das melhores, mas dava pra perceber que ele se esforçava. Às vezes eu ficava até envergonhado, não imaginava porque todo aquele apego a mim. Eu, que andava sempre tão estressado. Eu, que tinha tão pouco tempo e pouca paciência sempre. Mas a verdade é que eu também me apegava ao menino... e conversava com ele... e gostava de conversar... só precisava dar um freio quando ele começava a querer falar de sexo. Já sabia um bocado de coisas, o danado, e queria me mostrar que sabia, mas eu precisava cortar, afinal de contas aquilo era uma quinta série.
Dois meses antes de seu aniversário, ele já estava me perguntando, o que eu daria de presente a ele. Perguntei o que ele queria ganhar.
- Pode me dar uma moto professor. – Disse e sorriu. – brincadeira, professor, dá o que o senhor quiser. – Emendou e sorriu de novo.
- Beleza.
- Dá um dinheirinho mesmo, professor.
- Tá, quando chegar seu aniversário eu te dou um dinheirinho.
- Aê. – Ele disse e ficou em silêncio uns instantes, pensando, antes de perguntar: - Professor, como é que faz dinheiro?
- Como assim?
- É, como é que faz dinheiro?
- É na casa da moeda. Existem umas máquinas.
- Meus tio são meio burro né professor. Era só roubar uma máquina dessas e aí ficava fazendo dinheiro em casa, não precisava roubar mais nada.
- Maciel!
- Mas não é professor! Bastava uma máquina, de fazer logo nota de cinqüenta. Uma vez meu pai me deu uma nota de cinqüenta.
- Deixa de bobagem, Maciel.
Dei-lhe algum dinheiro, quando chegou seu aniversário. Adverti que não dissesse a ninguém, pois poderia me complicar.
- Tá achando que eu sou alcagüete, professor?
- Não, Maciel, não.
***
O tempo, sempre senhor de tudo, transcorreu. O fim do ano se aproximava e numa tarde de novembro o menino chegou com ar preocupado na minha mesa.
- Que foi, Maciel?
- Nada não, professor.
- Como nada, e por que é que você tá todo jururu?
Silêncio.
- Fala, Maciel.
- Sabe o que é, professor? O ano ta acabando , né? E o senhor mora longe, né? Queria saber se no ano que vem o senhor vai dar aula aqui?
Respirei fundo. Êta pergunta danada de difícil de responder. Ainda bem que não caiam perguntas desse tipo nos concursos. Tinha de dizer a verdade.
- Já pedi a remoção, Maciel, ano que vem vou trabalhar noutra escola mais perto da minha casa.
- Hã... tá bom. – Ele disse e eu pude ver o brilho das lágrimas umedecendo seus olhos, contudo não chorou. Estava calejado, o Maciel. Era só um menino, mas já tinha aprendido a agir como o mais duro dos homens. Eu, por meu lado, me sentia um traidor, um tremendo mau caráter. “É a vida”. Eu dizia de mim para comigo em cima da minha lambreta enquanto pilotava até a outra escola. Como se pudesse me enganar... Como se pudesse disfarçar aquela coisa ruim que me oprimia o peito.
***
- Depois de amanhã é o penúltimo dia de aula, professor. A gente vai fazer uma apresentação lá no CEU. Eu vou ser o Michel Jackson, professor. – Ele diz e aí começa a imitar os passos do artista recém-falecido, talvez até melhor que o próprio Michel. – O senhor vai lá ver, né, professor?
- Que hora vai ser a apresentação?
- Uma hora da tarde.
- Puxa vida, Maciel. Eu saio da outra escola, lá do outro lado da cidade, meio dia e meia.
- Tudo bem professor. – Ele diz baixando o olhar como se tivesse levado um tapa na cara.
- Vou ver se consigo sair mais cedo, Maciel, não prometo nada. Mas vou ver se dou um jeito de chegar a tempo.
- Faz um esforço, professor. Queria que o senhor me visse lá amanhã.
- Vou ver. – Eu digo e dentro de mim mesmo me prometo que vou fazer o que for preciso pra ver o menino dançar.
***
Não consegui chegar no início da apresentação, mas o Maciel percebeu quando cheguei e sorriu. Embora ele sorrisse o tempo inteiro, achei que sorrisse por causa da minha chegada.
Ao final, ele e as outras crianças agradeceram à platéia se curvando como se fossem artistas famosos. O público, formado principalmente por alunos da escola onde eu trabalhava e do CEU, estava delirando com a apresentação. Batiam palmas, assobiavam, gritavam.
Voltamos a pé pra escola. Era perto. No caminho o Maciel estava empolgado. Era o centro das atenções. Tinha arrebentado. As meninas do CEU ficaram babando. E quando ele tinha feito o Moon Walker, então? Moon o que, professor? Aquele passo que você desliza pra traz. Aquele passo é o maior boi professor, difícil foram os outros que eu mesmo fui inventando na hora. Deu tudo certo, né professor?
- É, Maciel, deu tudo certo.
No final da aula, era praticamente a última, ele me pediu que o levasse para casa de moto. Seria da hora. Disse que não podia. Não tinha um capacete pra ele e seria perigoso. Entristeceu de novo. Dei um abraço nele e uns tapas no ombro. Eu estava sem jeito.
- Então tchau, professor.
Abracei de novo. Os outros alunos tiraram sarro. Briguei com eles.
- Se cuida, carinha. Você é gente boa demais. É o moleque mais firmeza do Parque Bristol, Clímax, da zona Sul – Falei
- Beleza, professor. – Disse e foi deslizando pra trás, fazendo o Moon Walker do Michel Jackson.
Na hora de vir embora chovia. No caminho, acabei caindo da moto. Eu tinha escolhido ser professor, porque já tinha sido menino. Diabo, eu não era bom com o tal do Adeus. Era um péssimo professor. E eu sentia uma coisa ruim por dentro. E pensava nos meus filhos. E tinha vontade de chorar. E me preocupava com o que o futuro e o mundo guardavam pro Maciel. Mas tinha de terminar de fechar as médias da outra escola. Que merda de mundo burocrático.
***
Não sei porque hoje eu estava triste. A velha depressão contra a qual eu tenho lutado desde menino. Coloquei umas músicas... e... me lembrei do Maciel. O que ele estaria fazendo neste feriado de carnaval? Seria que tinha caído já no crime? Pensei em orar pra Deus por ele. Brigo muito com Deus, sou meio mal humorado às vezes, mas, sempre que me vejo em enrascadas, apelo pra ele. Desisti de orar. Sempre quis ser artista, então, em vez de orar, escrevi esta história. A arte é a oração do artista. Boa sorte, Maciel.
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* Daniel de Souza Lopes é professor da rede pública estadual e municipal de São Paulo. Tem textos publicados nas revistas literárias eletrônicas Germina e Amálgama. Edita o blog: www.pianistaboxeador21.blogspot.com . Lançou em 2008 o livro É preciso ter um caos dentro de si para criar uma estrela que dança.
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