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domingo, 5 de setembro de 2010

Poesia que brota de Bissau (Adelto Gonçalves)

“Chão de Papel” traz uma mensagem antilírica. O olhar feminino de Maria Estela Guedes capta na memória lugares e momentos que o olhar de um poeta homem nunca seria capaz

Este é um livro com cheiro de África. E é uma África vista com isenção por quem viveu na Guiné-Bissau de 1956 a 1966, ao tempo do colonialismo que coincidiu também com o de sua formação pessoal. E ninguém esquece os anos de sua formação. Muito menos um poeta. Por isso, Maria Estela Guedes, nascida em Britiande/Lamego em 1947, reuniu os seus poemas evocativos de uma Guiné-Bissau que já não existe neste livro, “Chão de Papel”, que, como observa Nicolau Saião na apresentação, traz uma mensagem lucidamente antilírica — “se entendermos como lirismo essa escrita impressionista (um pouco defasada da realidade mas legítima e soberana — que por aí vai dando cobertura a um romantismo de pacotilha, ultra-sentimental e, por isso mesmo, refalso e, no fundo, claramente pedante”.

Essa evocação começa pela imagem que guarda dessa Guiné-Bissau, “um mapa de ilhas, um arquipélago de lembranças”, especialmente da Fonte Vaz Teixeira, àquela época “oculta na floresta, em ruínas”, que hoje, provavelmente, não mais existe, “como tantas outras coisas que os anos de independência fizeram desaparecer”, como diz Saião, que também lá andou por 27 meses ao todo, à época em que havia a “província ultramarina da Guiné” e os jovens portugueses de então eram obrigados a defender, às vezes à custa da própria vida ou de abalos ao próprio corpo, o sonho de grandeza salazarista que só existia na retórica dos discursos oficiais.

O olhar feminino de Maria Estela capta na memória lugares e momentos que o olhar de um poeta homem nunca seria capaz, como se constata neste poema intitulado “A Praça”:

Ias à Praça — relíquia verbal de antigo nome
Da Praça de S. José de Bissau —
Com as casas de sobrado e varanda
De madeira pintada de azul-mantenhas?
— Cuma di corpo: E bo papé? E bo mamé?
Tens um objetivo em mente, o Mercado Municipal,
E um local preciso aonde vais em sonhos.
Que queres tu comprar? Sabes que é coisa
De comer, mas o quê? A vagem branca
E azeda de tamarindo? Castanha de caju?
Volta e meia sonhas com isso
Mas ainda não descobriste o que vai tu
Comprar à Praça com as suas casas de sobrado
E varanda de madeira pintada de azul-mantenhas.
Por baixo as lojas de varejo
— Ali o estúdio fotográfico do pai do Erasmo,
Além a Casa Pintozinho —
A velha escola onde estudaste
Encostada a um majestoso mangueiro
E na esquina, instalada no chão com fogareiro
A gorda Nha Tilda torrava mancarra
Que comíamos ainda quente
A cheirar a vida airada e a gente de barriga cheia.

Como se vê, até reconstituição da fala crioula se tem neste poema que, de tão denso e concatenado, teve de ser reproduzido aqui de forma integral. Essa evocação sente-se também em “Cesarianas e casuarinas” em que Maria Estela diz:

Passeios nas tardes de domingo
Pelo Jardim de Teixeira Pinto
Empurrando o carrinho com o bebé de D. Otília
Nascido entre dores e cortes de cesariana...
A estátua do militar no alto do outeiro
A dominar toda a cidade de Bissau
Mira ao longe as evoluções
Dos milicianos e da Mocidade Portuguesa
Diante do palácio do governador e do obelisco
No centro da Praça do Império,
Coroada com a legenda “Ao esforço da Raça”.
Hoje é o mesmo obelisco mas diversa a legenda:
“Monumento aos Heróis da Independência” (...).

Ao contrário do que se pode imaginar, estes versos de Maria Estela não evocam o colonialismo com saudade nem procuram mostrar que os tempos da presença portuguesa na África teriam sido melhores do que os vividos hoje. Até porque tiranos são tiranos, tenham a pele clara ou escura, como bem sabem os guineenses. E mesmo aqueles portugas, os “tugas” que lá viviam, eram vítimas de um mundo mal construído e distribuído que não lhes deixava outra opção que não fosse emigrar — até porque para que meia-dúzia de famílias pudessem se refestelar no bem arrumado jardim à beira-mar plantado, a choldra tinha de ser praticamente expulsa para os quatro cantos do mundo, ainda que à custa de desertificação do país. Havia sido assim desde os tempos da monarquia.

A tragédia da Guiné-Bissau é que, depois que os tiranetes brancos foram embora, ficaram os tiranetes negros e a mesma opressão de uma classe sobre a outra. A sorte é que, como diz Maria Estela, “os tiranetes duram pouco/ e os grandes tiranos, por muitos quarenta anos/ que governem, também pouco duram”, ao evocar no poema “A Kabi Nafantchamna, no dia da sua morte”, a manhã de 2 de março de 2009 em que os noticiários informaram sobre o levante que resultou no assassinato do presidente Nino Vieira (1939-2009):

(...) Conheces o ditado “Quem com ferro mata...?”
Conheces, Nino? Ainda ninguém disse nada
Mas podes crer que
Mesmo sem despacho
Alguém te despachou para o tribunal do Irã.
Bárbaros, violentos, egotistas.
Iguais em tudo na guerra
E iguais em tudo na paz
Aos mais bárbaros, violentos e egotistas
Americanos, asiáticos e europeus.

Em “O cais do Pidjiguiti”, Maria Estela, à semelhança de Camilo Pessanha (1867-1926) em “À noite, no Pego-Dragão”, uma das suas traduções em forma livre das “Oito Elegias Chinesas”, diz num poema perpassado de efeitos sinestésicos: “Não quero partir sem voltar ao Ku Pelon / A ouvir as serenatas do meu amigo”. E recorda que no Pidjiguiti dezenas de trabalhadores foram abatidos, vítimas indefesas de um massacre, ao tempo do colonialismo, para observar, em seguida, como se fizesse um mea culpa em nome dos opressores de então, ainda que nada tivesse a ver com aquilo e fosse apenas uma adolescente de 12 anos de idade, talvez com a ingênua ideia de que, se os colonialistas tivessem oferecido letras, ou seja, educação, em vez de opressão, talvez o caminho tivesse sido outro, de entendimento, embora se saiba que o colonialismo, como o escorpião, jamais renunciaria a sua natureza:

(...) Assim depois o crime repetido insaciavelmente
Por negros e brancos
E mulatos igualmente
Até o dia de ontem
Em que também foi assassinado
Nino Vieira, o presidente.
Sem grandes diferenças, na morte
Todos iguais
Sem precisão de invocar raças
Nem a paleta das cores (...).

Na evocação, Maria Estela lembra que o tempo do cais do Pidjiguiti vai longe, 3 de agosto de 1959, dia em que começou a guerra.

(...) Nunca mais seríeis felizes como antes.
Não era nosso o Chão de Papel
Mas podia ter sido
Se em vez de chumbo, ódio, vinganças e cana
Tivéssemos semeado letras na terra.

Versos como esses refletem o caos emocional que sofre todo o desterrado. E nesse caso Maria Estela é também uma desterrada, pois, ao voltar a Portugal, nas noites de sua solidão, passou a perguntar pelos amigos e familiares que haviam ficado na terra africana que a vira crescer, pelos desaparecidos, sem conseguir banir da memória o drama vivido, o drama da ruptura com um mundo que desapareceu.
Para aqueles que desconhecem a Guiné-Bissau, é preciso que se diga que o título “Chão de Papel” aponta para a pátria-chica do grupo étnico desta região guineense: a tribo dos Papéis, cerca de 40 mil naquela altura, como explica o alentejano Saião, bom conhecedor da região. Trata-se de um trocadilho, um simbolismo feliz, acrescenta Saião.

Editora da publicação eletrônica Triplo V (www.triplov.com), Maria Estela Guedes tem uma vasta obra publicada de livros de e sobre poesia em que se destacam “Herberto Helder, Poeta Obscuro” (Lisboa, Moraes Editores, 1979), “SO2” (Lisboa, Guimarães Editores, 1980), “Eco, Pedras Rolantes” (Lisboa, Ler Editora, 1983), “Mário de Sá Carneiro” (Lisboa, Editorial Presença, 1985), “À Sombra do Orpheu” (Lisboa, Guimarães Editores, 1990), “A_Maar_Gato” (Lisboa, Editorial Minerva, 2005), “Lápis de Carvão” (Lisboa, Apenas Livros, 2005), “Ofício das Trevas” (teatro (Lisboa, Apenas Livros, 2006), “A Boba (monólogo em três insônias e um despertador)”, com prefácio de Eugénia Vasques (Lisboa, Apenas Livros, 2006), “À La Carbonara”, em coautoria com J.C.Cabanel & Silvio Luis Benítez Lopes (Lisboa, Apenas Livros, 2007) e “Poesia na Óptica da Óptica” (Lisboa, Apenas Livros Lda., 2008).

ADELTO GONÇALVES é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo.
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sábado, 4 de setembro de 2010

Modo de usar (Ronaldo Monte)


Quando criei a coluna “Modo de ser & modo de usar” para o jornal Contraponto, previa que o “modo de usar” causaria estranheza em algumas pessoas. Foi o que aconteceu. Aqui e ali, me perguntam se essa história de usar não seria melhor aplicada às coisas do que às pessoas. Mas quem acompanha a coluna percebe que a maioria dos entrevistados compreende o espírito da coisa e responde sobre a melhor maneira dos outros aproveitarem o que eles produzem.


Quase todo mundo já ouviu falar nos valores de uso e de troca que Marx atribuiu aos objetos feitos pelo homem. Quando uma coisa vira uma mercadoria levada ao mercado, ela tem um valor de troca. Mas antes disso, ela tem um valor de uso, à medida que se torna útil a alguém. Uma pedra, por exemplo, pode prender uma pilha de papéis, enfeitar uma mesa de centro, sacrificar um passarinho ou uma iraniana. Pode também, utilidade suprema, surgir de repente no meio do caminho do poeta.

Não sei por que uma pessoa não teria valor de uso. Podemos não ser mercadoria, mas somos sempre de alguma utilidade para alguém. Pode ter coisa melhor do que se deixar usar e abusar pela pessoa amada? E a mãe que entrega o peito ao uso do filho? Por que temos medo de ser coisas? Em que somos melhores do que um pão ou um martelo?

Um psicanalista, por exemplo, dá-se ao uso pela transferência. Um pintor, um jornalista, valem pela utilidade do seu trabalho. Passam também a ter valor de troca, quando estipulam seu preço no mercado.

O estatuto de coisa, aliás, seria até honorífico para muita gente sem qualquer utilidade que anda por aí. Políticos, bandidos, simples parasitas que nunca bateram um prego numa barra de sabão.

A rigor, nossa entrada no mundo se dá “no meio das coisas” (in media res). É preciso ralar muito para adquirirmos um mínimo de consciência histórica que nos leve a descobrir um modo próprio de ser. No fim de tudo, voltamos a ser coisa, matéria orgânica de muita utilidade. E alguns de nós continuarão a ser coisas úteis na memória das gerações.

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