Quando criei a coluna “Modo de ser & modo de usar” para o jornal Contraponto, previa que o “modo de usar” causaria estranheza em algumas pessoas. Foi o que aconteceu. Aqui e ali, me perguntam se essa história de usar não seria melhor aplicada às coisas do que às pessoas. Mas quem acompanha a coluna percebe que a maioria dos entrevistados compreende o espírito da coisa e responde sobre a melhor maneira dos outros aproveitarem o que eles produzem.
Quase todo mundo já ouviu falar nos valores de uso e de troca que Marx atribuiu aos objetos feitos pelo homem. Quando uma coisa vira uma mercadoria levada ao mercado, ela tem um valor de troca. Mas antes disso, ela tem um valor de uso, à medida que se torna útil a alguém. Uma pedra, por exemplo, pode prender uma pilha de papéis, enfeitar uma mesa de centro, sacrificar um passarinho ou uma iraniana. Pode também, utilidade suprema, surgir de repente no meio do caminho do poeta.
Não sei por que uma pessoa não teria valor de uso. Podemos não ser mercadoria, mas somos sempre de alguma utilidade para alguém. Pode ter coisa melhor do que se deixar usar e abusar pela pessoa amada? E a mãe que entrega o peito ao uso do filho? Por que temos medo de ser coisas? Em que somos melhores do que um pão ou um martelo?
Um psicanalista, por exemplo, dá-se ao uso pela transferência. Um pintor, um jornalista, valem pela utilidade do seu trabalho. Passam também a ter valor de troca, quando estipulam seu preço no mercado.
O estatuto de coisa, aliás, seria até honorífico para muita gente sem qualquer utilidade que anda por aí. Políticos, bandidos, simples parasitas que nunca bateram um prego numa barra de sabão.
A rigor, nossa entrada no mundo se dá “no meio das coisas” (in media res). É preciso ralar muito para adquirirmos um mínimo de consciência histórica que nos leve a descobrir um modo próprio de ser. No fim de tudo, voltamos a ser coisa, matéria orgânica de muita utilidade. E alguns de nós continuarão a ser coisas úteis na memória das gerações.
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