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quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Pontos na paisagem (Caio Porfírio Carneiro)


Respirando o ar quente, suado, extenuado, sacola pendurada nos dedos, com a outra mão procurava livrar-se da poeira que lhe entrava na roupa, nos olhos, nos poros. E o estirão se alongando. Viu o casebre com pequeno alpendre, arriado, cochilante. Aproximou-se, bateu na porta e arriou-se no banco tosco, no alpendre. Sacola ao lado, abanou-se, desabotoou-se, estirou as pernas, quase cochila. Ali ficou, entregue.

Suspirou fundo, levantou-se, olhou demoradamente o estirão em todas as direções. Só vento, poeira e a árvore desgalhada ao lado do casebre. Bateu forte na porta e ela se abriu. O pote, não muito distante, caneca ao lado. Bebeu a água salobra até se fartar. Olhou em volta. Alguns tamboretes. Nenhum armário, louça ou mesa. Uma rede entrouxada, pendente do armador.

Balançou a cabeça:

– De quem será isto?

Olhou longamente, através da janela, o estirão e a poeira fina navegando no silvar do vento. Fugindo de tudo e com saudades dela armou a rede puída. Deitou-se, suspirou fundo:

– Depois da desgraça feita qualquer lugar serve.

Levantou-se e jogou sobre um dos tamboretes os sapatos de solas gastas, o resto de meias, e, quase despido, estirou-se melhor e coçou o corpo todo.

Adormeceu.

Acordou com os solavancos no punho da rede. Abriu os olhos, estremunhado e perplexo:

– Você veio?

Ela, ali em pé, rota, esquálida e muda.

– Como me encontrou?

– Segui seu rumo.

– Ah.

– De quem é esta casa?

– Não sei.

– Por que você fez aquilo?

– Precisava.

– Que horror.

Apenas fechou os olhos. Ela tossiu:

– Posso me deitar um pouco com você? Estou morta.

Ele lhe deu espaço na rede e ela, pequena trouxa no chão e o vestido uma nuvem de pó, acomodou-se ao seu lado.

Apertou a mão dela:

– Durma um pouco.

– Não vou conseguir.

Nada respondeu e ouviam apenas o silvar do vento lá fora. Silvava, silvava, silvava...

Acordaram com a claridade da manhã entrando pelas frinchas da porta e da janela. Ele esfregou os olhos:

– Não apareceu ninguém.

– Vai ficar aqui?

– Vou continuar.

– Não quer voltar?

– Nunca.

– Que horror.

– Esqueça.

– Estou com sede. Tenho pão.

– Ali há um pote e uma caneca.

Ela levantou-se. Voltou ajeitando o vestido. Deu-lhe um pedaço do pão:

– Não trouxe nada?

– Só umas coisas na sacola.

– E eu esta trouxa. E uns pedaços de pão.

Beberam quase todo o resto da água. Ajeitaram-se e saíram para o tempo. Envolveram-se no descampado. Ele sopesou a mochila, ela ajeitou a trouxa no braço.

– Por que você veio?

Ela voltou a ajeitar a trouxa:

– Não sei.

Olhou-a nos olhos:

– Vamos?

– Para onde?

– O fim do mundo não deve estar tão longe assim...

Saíram caminhando lentamente.

Dois pontos que se foram perdendo na paisagem, sibilante de vento e de poeira navegante.


São Paulo, 14/02/2010 – às 08:00 hs.
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Poema de Silmar Bohrer




São dourados os caminhos


que hei tido percorrido,


impregnados pela libido


dos meus sagrados versinhos.




(20/9/10)
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