Translate

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Três poemas de Pedro Du Bois

(Quadro de Chico Lopes)

ADEUSES


De todos os adeuses somos testemunhas
peregrinos de escuras vistas dos desencontros
entre as dunas e nas fechadas florestas petrificadas
dos sinais compreensíveis de abrir e fechar


vamos embora em cada tempo: têmpora cinzenta
o corpo dói a despedida na dor da ausência


nos reencontros na frustração avistamos
e reconhecemos não nos interessa o passo


o atraso bem vinda forma de desencantos
na urdidura de novas despedidas: somos
agora os que foram embora e ainda não é noite


nos adeuses voltamos sobre nossos passados
encobertas memórias: estreitas ruas
sem passagens e olhos postos sobre os idos
tempos. Acenamos sem voltar o rosto.




MEDOS

Trago o medo irrecorrível da infância
e o efêmero como no começo
dos escuros e dos barulhos não identificados
aos silêncios e claridades dos tempos tardios

trouxe na lembrança o início e a multiplicação
no crescimento das imagens irrefletidas
sobre realidade gongóricas da sobrevivência

retiro do medo sua essência: eu mesmo,
e o deixo derramado - esparramado -
nas instâncias cedidas uma a uma
como tormentos e sofrimentos cultivados

realizo medos atávicos adquiridos
e os escuros nichos demonstram o sacrifício
de conviver o claro o silêncio e a brandura
imaculada dos esquecimentos diários.

ÉPOCAS


Desdobrada vida: introduzida
época de conquista: medos
e persas em desabalada fuga
– o egípcio olha
com desdém e desgosto –
dos hinos e cânticos
escondidos em escuras roupas
e promessas não alcançadas:
ao credo fé e enlace
entre a história e os vencedores
das batalhas em corpos mutilados
e destroços céticos: em nada
acreditaram os deuses desde o exílio
houvesse a volta e o planeta
– mágica e mistério – tomasse
outro rumo alterasse o prumo e o eixo
endireitasse: o fogo e as trevas
em desdobramentos
de inépcias conhecidas.

/////









quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Pontos na paisagem (Caio Porfírio Carneiro)


Respirando o ar quente, suado, extenuado, sacola pendurada nos dedos, com a outra mão procurava livrar-se da poeira que lhe entrava na roupa, nos olhos, nos poros. E o estirão se alongando. Viu o casebre com pequeno alpendre, arriado, cochilante. Aproximou-se, bateu na porta e arriou-se no banco tosco, no alpendre. Sacola ao lado, abanou-se, desabotoou-se, estirou as pernas, quase cochila. Ali ficou, entregue.

Suspirou fundo, levantou-se, olhou demoradamente o estirão em todas as direções. Só vento, poeira e a árvore desgalhada ao lado do casebre. Bateu forte na porta e ela se abriu. O pote, não muito distante, caneca ao lado. Bebeu a água salobra até se fartar. Olhou em volta. Alguns tamboretes. Nenhum armário, louça ou mesa. Uma rede entrouxada, pendente do armador.

Balançou a cabeça:

– De quem será isto?

Olhou longamente, através da janela, o estirão e a poeira fina navegando no silvar do vento. Fugindo de tudo e com saudades dela armou a rede puída. Deitou-se, suspirou fundo:

– Depois da desgraça feita qualquer lugar serve.

Levantou-se e jogou sobre um dos tamboretes os sapatos de solas gastas, o resto de meias, e, quase despido, estirou-se melhor e coçou o corpo todo.

Adormeceu.

Acordou com os solavancos no punho da rede. Abriu os olhos, estremunhado e perplexo:

– Você veio?

Ela, ali em pé, rota, esquálida e muda.

– Como me encontrou?

– Segui seu rumo.

– Ah.

– De quem é esta casa?

– Não sei.

– Por que você fez aquilo?

– Precisava.

– Que horror.

Apenas fechou os olhos. Ela tossiu:

– Posso me deitar um pouco com você? Estou morta.

Ele lhe deu espaço na rede e ela, pequena trouxa no chão e o vestido uma nuvem de pó, acomodou-se ao seu lado.

Apertou a mão dela:

– Durma um pouco.

– Não vou conseguir.

Nada respondeu e ouviam apenas o silvar do vento lá fora. Silvava, silvava, silvava...

Acordaram com a claridade da manhã entrando pelas frinchas da porta e da janela. Ele esfregou os olhos:

– Não apareceu ninguém.

– Vai ficar aqui?

– Vou continuar.

– Não quer voltar?

– Nunca.

– Que horror.

– Esqueça.

– Estou com sede. Tenho pão.

– Ali há um pote e uma caneca.

Ela levantou-se. Voltou ajeitando o vestido. Deu-lhe um pedaço do pão:

– Não trouxe nada?

– Só umas coisas na sacola.

– E eu esta trouxa. E uns pedaços de pão.

Beberam quase todo o resto da água. Ajeitaram-se e saíram para o tempo. Envolveram-se no descampado. Ele sopesou a mochila, ela ajeitou a trouxa no braço.

– Por que você veio?

Ela voltou a ajeitar a trouxa:

– Não sei.

Olhou-a nos olhos:

– Vamos?

– Para onde?

– O fim do mundo não deve estar tão longe assim...

Saíram caminhando lentamente.

Dois pontos que se foram perdendo na paisagem, sibilante de vento e de poeira navegante.


São Paulo, 14/02/2010 – às 08:00 hs.
/////