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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Nacos de necas & outras histórias - 09 (Claudio Parreira*)

(Microcontos extraídos de O Bule: http://o-bule.blogspot.com)

1

Jovem ainda, 17 anos, e sai com um jacaré. Suas amigas mais velhas, um pouco mais ajuizadas e experientes, aconselham:

– Larga disso. O camelo é mais charmoso.

O camelo, porém, não bebe. Ela prefere ficar com o gorila. E depois dele o elefante, porque fuma. Não resiste, porém, ao abraço do tamanduá e por isso mesmo se entrega aos beijos do leão. Chega em casa abraçada ao cachorro. Seu pai, indignado com o comportamento da filha, reclama:

– Isso são horas de chegar, mocinha?


2

Nós nos conhecemos no dia da sua morte. Foi curioso: eu passava na rua; na mesma rua ele havia acabado de morrer. Eu disse oi, ele falou oi. Para encurtar a conversa, eu cheguei a ser grosseiro: “Não adianta você ficar aí falando comigo porque eu não acredito em mortos falantes!”. Ele gargalhou. E disse: “Pois agora que estou aqui deste lado, começo a duvidar – a vida existe mesmo ou não passa de puro sonho?”. Faz três anos que conversamos. Eu continuo não acreditando. Ele duvida mais e mais a cada dia. Concordamos apenas num ponto: todas as respostas são insuficientes.


3

Passei anos falando bom dia todas as manhãs. Alguns respondiam, outros não, a grande maioria sequer me notava. Faz algum tempo, por distração, falei boa tarde ao invés de bom dia. O presidente da empresa ameaçou me demitir, os gerentes agora se calam quando eu me aproximo e os boys me olham com uma expressão que mescla admiração e repulsa. Eu compreendo: de uma hora para outra alterei o delicado equilíbrio das coisas. Não sei como suportaram isso; é mesmo muita sorte ainda estar por aqui.


4

No mês passado fui vítima de dois assaltos – mas tudo correu bem: eu saí vivo e os ladrões, satisfeitos. Percebi isso. Na semana passada, um assalto apenas. Mas foi genial: fui seqüestrado e passeamos muito pela cidade, eu e o ladrão. Descobri, aliás, ser ele um apreciador da filosofia de Kant. Um homem raro – e foi com raro prazer que lhe entreguei todo o meu dinheiro.

– É o suficiente para as suas investigações filosóficas? – perguntei.

– Tá de bom tamanho, doutor – respondeu ele, que se foi levando o meu carro. Ontem, no entanto, as coisas não correram nada bem: fui pego de surpresa, com pouquíssimo dinheiro, e o ladrão, percebi, ficou decepcionado.

– Faltas desse tipo são intoleráveis – ele protestou.

A mim só restou baixar os olhos e concordar, resignado.


5

A caixa é pequena: menos de um metro quadrado. Mas tem me sustentado há mais de 20 anos. Eu faço assim: chego na cidade, alugo um teatro modesto e espalho cartazes com uma fotografia colorida da caixa pelos postes. Em vermelho, uma frase bem simples: “O que será que tem dentro da caixa?”. É o suficiente para lotar o teatro. A cada uma das 100, 200 pessoas eu falo: “Não é fantástico? Nunca vi coisa tão genial dentro de uma caixinha!”.

Com medo de serem consideradas insensíveis a tão refinada manifestação artística, as pessoas todas concordam. Algumas até acrescentam: “É mesmo! O conteúdo da caixa é impressionante!”. Impressionante são as pessoas, eu diria. Mas isso não vem ao caso agora.


*Claudio Parreira - Escritor, chargista e vigarista. Foi colaborador da Revista Bundas, do jornal O Pasquim 21, Caros Amigos on line, Agência Carta Maior, entre outras publicações. Incluído nas antologias Contos de Algibeira, da Ed. Casa Verde; Fiat Voluntas Tua, editada pela Multifoco, e também Dimensões.br, da Ed. Andross. Mora em São Paulo, SP. Bloga em http://claudioparreira.blogspot.com/
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A morte... anunciando a sua chegada (Tânia Du Bois)



A morte nos filmes vem silenciosa. Chega sorrateira dando a impressão de serenidade e algumas vezes a faz “bonita”. A morte na vida real chega barulhenta: anunciando temor e angústia. O corpo se transforma em reprodução de sons pesados, fortes, que nos assustam, chamando-nos a atenção; a morte chega anunciando o deprimente instante. Lembro da morte assistida: todas chegaram acompanhadas de um ronco e, agora, o som da tristeza se encontra em mim.

E o último suspiro? Na verdade, quem tem o forte suspiro somos nós que sentimos a morte chegando. Ao se anunciar, nos desestruturamos por algumas horas; começamos a ver o lago escuro; no sol sem brilho sentimos o impacto de o vento frio entrar em nossos ossos, a cabeça roda, as pernas tremem e o coração acelera. Tudo o que queremos é que a pessoa não sinta a chegada da morte; como choramos a lembrança antes de esquecê-lo.

Já perceberam que sempre que a morte é anunciada nós corremos ao encontro dela? Com a morte anunciada conseguimos reunir os familiares, rever amigos... Por muitas vezes ela se torna inspiração para os poetas, levando-nos à contradição, invertendo a situação, e por muitas vezes refletindo o belo. O poeta Pedro Du Bois chama a morte de a “Ausência Inconsentida”. Belo nome, dá certo ar de elegância, de silêncio, de paz. Transmite algo, como a “renovação da vida, em outra forma e função”. Nada parecido com o que se faz presente: ouço gritos, choros, desesperos que batucam na minha cabeça, no ouvido e deixam meu coração desgovernado, consumindo-me entre a vida e a morte.

Na “Ausência Inconsentida”, Du Bois declara ser inconsentida a perda; e a ausência, como no poema:
“Na morte espelha a tristeza / em pouca companhia / não será a carne e os olhos fechados / trazendo parco consolo. // Na morte esplendor e glória / trajeto feito, curto e seco / caminho inexorável / de indizíveis saudades.”

Anunciada a morte, não há consciência; há tênue lembrança da vida, que se faz forte. Há a minha tristeza em presenciar, há o badalar do sino, há flores secas; o sonho contém o instante do que não existe mais.
“Pero há vivas memórias / Há mortos que nunca morrem, / voz / imagem / eles surgem feito marés / ou límpidos cristais a esculpir / as lágrimas que a curva do olho não apaga...// Há mortos que nunca morrem, / feitos braseiros, rios caudalosos seguem a refletir em nós vivas memórias...” Carmen Silvia Presotto.
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