(Do livro Fractal em duas línguas)
Ontem, como sempre, fui ao Derby. Não gosto do Derby, mas vou lá todas as noites. As pessoas que conheço estão sempre viajando ou, se estão em casa, estão dormindo ou têm visitas. Por isso, vou ao Derby. No Derby ninguém viaja, ninguém dorme, e nunca apareceu uma visita.
Ninguém entra no Derby. Além dos garçons sonolentos, encostados nas paredes ou nas mesas, só nós ficamos lá. De vez em quando, alguém pede um conhaque ou um café, ou então, de repente, se escuta um pigarro ou um suspiro. Mas é só. Quando o relógio bate as horas, só os garçons sabem que horas são. Para nós, as horas não são horas. São apenas ruídos de relógio.
Vou ao Derby há anos, todas as noites. Mas não conheço ninguém, nem ninguém me conhece. Às vezes, quando entro, parece que alguém me acena com a mão. Mas não acena. O aceno foi para chamar o garçom. Nunca ninguém me vê entrar. Nem os garçons. Não os conheço e tenho certeza que, se tentasse falar com algum, ele me perguntaria se não tenho casa ou mulher, ou outro lugar para onde ir. Por isso, não os conheço.
Sou sempre o último a chegar. Quando entro, todos os outros já estão lá. Nunca consegui entrar no Derby antes dos outros. Não falo com ninguém, mas eles me olham e eu sei que todos gostariam de chegar depois de mim. Como eu chego depois deles.
Se tivesse outro lugar para onde ir, jamais iria ao Derby. Mas todas as pessoas que conheço ou estão viajando ou estão dormindo, ou, então, têm visitas, e eu não tenho outro lugar para onde ir. Tenho a minha casa. Mas a minha casa é só a minha casa.
Se ninguém me olhasse, talvez o Derby fosse até um bom lugar. Mas todos me olham e eu não gosto que me olhem. Sempre que alguém me olha espera que eu faça alguma coisa. E eu não posso fazer nada. Se pudesse, não estaria no Derby. Mas eles não sabem e não param de me olhar. Por isso, sei que estão esperando. Talvez não saibam nem o que esperam, mas eu sei que eles esperam. Se não esperassem, também não iriam ao Derby todas as noites, nem olhariam para mim. Por isso, não gosto do Derby. Eu não posso fazer nada.
Eles não sabem, eu sei que eles não sabem, mas eu sou igual a eles. Também espero. Por isso, vou ao Derby todas as noites. Como eles.
Nenhum deles fala comigo. Mas eu sei que pensam que sou diferente, apesar de sentar como eles, de beber como eles e de esperar como eles. Mas eu não sou diferente. Sei que não sou. A única diferença, se é que se pode chamar diferença, é que eu sempre chego depois deles. E, talvez por isso, eles me achem diferente e me olhem, e esperem que eu faça alguma coisa.
O quê, eu não sei. Mas sei que eles esperam. Às vezes, de tanto pensar, chego até a pensar que eles esperam que eu faça um milagre. Ou, então, que não volte mais ao Derby, se não puder fazer outra coisa.
Ontem, como sempre, nenhum deles falou nada. Mas os olhares diziam tudo. Há anos que eles me olham e eu conheço o olhar deles. Mas não podia fazer nada. Mesmo que me levantasse e fosse embora, nada iria acontecer. Eles continuariam esperando e o meu lugar, mesmo vazio, continuaria sendo o meu lugar. Por isso, desviei os olhos e olhei a parede à minha frente. Pelo menos, a parede nada me pediria. E não pediu.
Mas eles também deixaram de pedir. De repente, deixaram de me olhar e até os garçons se desencostaram das paredes e das mesas. Assustado, olhei-os um por um e vi que, realmente, ninguém mais olhava para mim. Mas, mesmo assustado, pela primeira vez sorri no Derby. Alguma coisa, finalmente, estava acontecendo.
Talvez por causa do meu sorriso eles pensassem que fui eu. Mas não fui. Tenho certeza que não fui. Eu só escutei, como todos eles escutaram.
Tudo tem seu tempo determinado,
e há tempo para todo o propósito
debaixo do céu. Há tempo de nas-
cer e tempo de morrer...
A voz calou-se e um deles levantou-se e começou a bater palmas, e todos eles se levantaram e começaram a bater palmas. E, quando as palmas acabaram, todos se voltaram para mim e sorriram, agradecendo. Quis dizer-lhes que não tinha sido eu. Mas eles não queriam escutar-me. Durante anos acreditaram que eu podia fazer alguma coisa e, agora, que alguma coisa, realmente, aconteceu, não precisavam de mais nada. O milagre já tinha acontecido.
Levantei-me e saí, e um deles sentou no meu lugar. Agora, não posso mais voltar ao Derby. No Derby já ninguém espera nada.
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O autor
Cunha de Leiradella
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Com o Longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior (1987), deu início à saga de Eduardo (espécie de seu alter-ego), personagem que atravessa todos os seus livros subseqüentes, entre os quais Guerrilha urbana (1989), Cinco dias de sagração (1993) e A solidão da verdade (1996), que sem nenhum favor podemos destacar entre o que se produziu de melhor no romance brasileiro das últimas décadas. (André Seffrin, Revista EntreLivros, São Paulo, fevereiro de 2006)
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