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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O voo de Alaor Barbosa (José Leão Filho*)

(O escritor Alaor Barbosa)

No sul de Goiás, voltando de agradável visita a Goiânia para Uberlândia e São Paulo por rodovia, você vai de novo tangenciar a bonita cidade de Morrinhos. Se seguir além do trevo da entrada, e atentar à sua direita, poderá enxergar alguns pequenos morros que talvez motivaram o nome dessa cidade que tem a sua importância na história de Goiás. Mas se fizer o contorno do trevo, e entrar à esquerda rumo à cidade, vai deparar com uma estátua de Cristo que assinala e recorda, sem que o prefeito que lá a colocou tivesse essa intenção, os antigos liames familiais e intelectuais do povo de Morrinhos com a antiga capital federal, o Rio de Janeiro. E aí você já estará descendo uma avenida que o levará a passar perto do cemitério, não o mais antigo, e sim o segundo, já hoje em dia tornado velho pela construção de um outro, numa parte nova da cidade. Continuando, você alcançará, percorridos três ou quatro quarteirões, o âmago original e histórico da cidade onde nasceu, viveu até aos quinze anos de idade, e, após uma temporada de nove anos e pouco fora, em Goiânia e no Rio de Janeiro, tornou a morar, por quatro anos, já como advogado que sem demora se tornou bastante conhecido em toda a região, o escritor Alaor Barbosa. O burgo que ele inventou, Imbaúbas, muito, mas muito mais interessante que aquela Macondo de Gabriel García Marques, deve situar-se ali por perto. Imbaúbas é um lugar que precisa ser conhecido.

Alaor Barbosa, um dos melhores repórteres da fornada do Jornal do Brasil dos anos 50-60, foi farejar nesse pequeno mundo com seu faro atilado e certeiro. Ali se estabeleceu solicitador-acadêmico e, dois anos depois, advogado, em busca de uma parada na vida, a fim de se recompor dos abalos sofridos no Rio de Janeiro com o golpe, autodenominado Revolução, de abril de 1964, e ansioso de recuperar, e de dele se apropriar para sempre, o “tempo perdido” da sua infância e do passado da sua cidade. Alaor, repito, é um filho daquela terra dadivosa, penúltimo filho, feito caçula por morte, aos sete meses de vida, da irmãzinha Maria da Conceição. O pai, morrinhense filho de mineiros do Sul de Minas. A mãe, filha de paulistas de Igarapava, nascida um tanto casualmente em São Pedro de Uberabinha, depois e atualmente Uberlândia, e criada até aos sete anos em Igarapava e com essa idade transplantada, para sempre, para a Morrinhos onde a esperava, incônscio da trama dos destinos de ambos, o futuro pai dos seus filhos. A relação de Alaor com Morrinhos nunca se esgotará, pois lá se casou e nasceram-lhe os dois primeiros filhos. Lá sempre volta, impelido por um tropismo recíproco, a um tempo seu e de seu povo.

Das suas vivências e incursões no passado da região, Alaor desenterrou e recriou numerosos casos e estórias: os substanciosos e exemplares contos de Picumãs, Campo e noite, Os rios da coragem, Praça da Liberdade, Caminhos de Rafael; e os marcantes romances O exílio e a glória, A morte de Cornélio Tabajara e, o mais recente, recém-saído do que antigamente se chamava prelo, Memórias do nego-dado Bertolino d’Abadia. A morte de Cornélio Tabajara trovejou dentro e fora de Goiás, como uma obra fortíssima, perfeita na trama e na linguagem. Anotadas igualmente na inefável Imbaúbas – em primoroso produto da AB-Editora, que, como se adverte, nada tem a ver com o nome do autor –, Memórias do nego-dado Bertolino d‘Abadia (336 p), agora publicadas graças à diligência do advogado Rafael Noronha, que as anotou, em combinação com o escritor Alaor Barbosa, merecem ser conhecidas do Brasil e do mundo. Ah, se merecem!.

Obscuro a não ser em Imbaúbas – onde nasceu, viveu e morreu, com temporárias evasões para Goiânia, São Paulo, Brasília e até Rio de Janeiro – o gigante Bertolino, em sua exuberante insignificância interiorana, se meteu no Exército Nacional, participou das revoluções de 1930 e 1932, viu-se envolvido na Intentona Comunista de 1935 e, mais tarde, ingressou mesmo no Partido Comunista de Imbaúbas. Após uma longa vida passada de peripécias amorosas e políticas, – “foi assassinado quando estava sentado, na banda de fora de sua casa, na calçada do passeio, no lusco-fusco de uma tarde de sábado”, como indica o “Epílogo antecipado”. “... o matador puxou o revólver e lhe disparou dois tiros. Bertolino d‘Abadia desabou no chão. O arremate: três tiros mais, dois no peito, um na testa.”

No Prólogo, o Doutor Rafael Santoro Noronha – o registrador das memórias que passou a Alaor para oportuna publicação —, ao apontar traços da personalidade do nego-dado, realça de logo uma personagem secundária mas coruscante, um desses cornos-de-goteira que se abrigam da chuva sob o beiral da própria casa enquanto um Pantagruel irresistível ou conveniente se serve lá dentro: Alonso Luís Carneiro.

“À noite ou de madrugada, Bertolino d’Abadia, desde uns cinco-seis anos atrás, lhe bate à janela do quarto ali na Rua Santa Catarina e, com sua possante voz, que os vizinhos ouvem, avisa: ‘Alonso, pode sair, que eu quero entrar!.’ E o Alonso obedece. Sim, o Alonso Carneiro levanta-se da cama e, calado, humilde, conformado, abandona a casa e sai para a rua, a fim de que Bertolino d’Abadia entre e deite-se com a sua mulher.”

Segundo o publicador do livro – autor, na verdade –, “Rafael Noronha me pediu que o lesse, corrigisse-lhe a forma literária e, se concordasse, o ajudasse no momento que julgássemos mais oportuno a encontrar editor.” Respeitou-se um prurido ético: a publicação sai após a morte de Bertolino.

Suspeitei que Rafael Noronha nunca existiu, a não ser na fantasia de um ficcionista veraz em sua inventiva.

Na sala onde anoto estas linhas enquanto converso peripateticamente com minhas lembranças, recordo que, antes de empreender a primeira e tão sonhada viagem à Europa – notadamente à Península Ibérica -, Alaor tratou de, tanto quanto possível, conhecer Goiás e o Brasil. Temia passar, lá longe, pelo vexame de emudecer diante de perguntas elementares sobre sua terra. Esse traço de percuciência, curiosidade e capricho intelectual já se lhe manifestava aí por 1955, quando ele empolgava em Morrinhos e Goiânia as platéias estudantis com a sua admirável oratória de adolescente precocemente preocupado com questões culturais e políticas da nacionalidade e do Mundo.

Em 1956, com mesada paterna, Alaor se abalou para o Rio, indo morar na Rua Correia Dutra (Flamengo), na casa do culto, gentil e retraído irmão mais velho, Geraldo, funcionário do IAPI. Na mesma rua, logo acima, Alaor começou a frequentar (e para onde em seguida se mudou) um ninho de estudantes goianos residentes em quartos exíguos de um apartamento sem conforto, dentre os quais surgiriam mais tarde um prefeito de Goiânia, um Governador do Estado, empresários da mídia eletrônica e publicitária, um médico, dois jornalistas e um magnata do sistema financeiro. Todos em busca da formação escolar, mormente a de nível universitário, que ainda não existia em Goiás — e que hoje lá se encontra tão desenvolvida. Alaor freqüentou o Clássico no Colégio Juruena e em seguida no Educandário Ruy Barbosa. Leitor voraz, frequentava as ricas bibliotecas públicas do Rio, filou algumas aulas de Sociologia (de Guerreiro Ramos) e Português (de Aurélio Buarque de Holanda) na Escola Brasileira de Administração Pública, da Fundação Getúlio Vargas, e, por intermédio do amigo Assis Brasil, um dos “escritores do Restaurante do Calabouço” a quem se ligou, passou a freqüentar a redação do Suplemento Literário do Jornal do Brasil, do qual se tornou, sem demora, o mais jovem colaborador, com comentários a respeito de livros recém-publicados. Assim complementava ele, com o honrado dinheiro que recebia por seus artigos, as mesadas paternas, que iam mingüando em consequëncia da incipiente inflação monetária do governo Juscelino Kubitschek. No Suplemento do JB Alaor convivia com a nata da jovem elite intelectual e artística brasileira, hoje no poder.

Terminado o segundo grau escolar, e no momento de encetar o curso de Direito, foi pelo pai chamado à realidade de que teria de ganhar o seu dinheiro para viver: mesada paterna, não mais haveria. O rapaz padeceu um bocado até conseguir emprego de jornalista. No jornal, optou pela área política, após um curto estágio na reportagem-geral. Na profissão de jornalista, que perdurou quase o tempo todo do seu curso universitário, se projetou muito e depressa. Fez uma entrevista de página inteira com Carlos Lacerda, de quem recebeu, em editorial assinado, um baita elogio; viajou com Jânio Quadros numa das suas excursões de campanha por Minas Gerais; recolheu de Juscelino a sua primeira entrevista de ex-presidente; entrevistou João Goulart mais de uma vez, e Fernando Ferrari, Alceu Amoroso Lima, Francisco Julião, Mário Martins, Jean-Paul Sartre, Jorge Amado, Mauro Borges Teixeira, e muitos outros. Conviveu com grandes nomes da literatura brasileira. Um deles se fez seu amigo e incentivador: João Guimarães Rosa. De volta a Goiás, veio-lhe o longo tempo da advocacia, o breve período como diretor de banco, a enriquecedora experiência de consultor legislativo (por concurso de provas e títulos) do Senado Federal, e, atualmente, outra vez, a advocacia em Brasília. Durante esses períodos ele não cessou a sua exaustiva dedicação à criação literária. Nos últimos quatro anos, Alaor publicou quatro livros, dos quais os dois mais recentes são os romances que mencionamos. Logo depois que saiu seu primeiro livro de contos, Joel Silveira, esse jornalista quase mitológico, leu-o em Goiânia, aonde fora cobrir a deposição do governador Mauro Borges Teixeira. E exclamou com entusiasmo: “Se Lacerda tivesse conseguido escrever um conto tão bom como Pretérito imperfeito, não teria feito a Revolução”.

Mestre em Literatura Brasileira, por sua obra mas também por diploma universitário, reconhecido pelo público e por notáveis de nossa literatura (é impressionante a sua fortuna crítica, constituída por um Carlos Drummond de Andrade, um José Américo de Almeida, um Antônio Olavo Pereira, um Hélio Pólvora, um Wilson Martins, um Assis Brasil, um José Edson Gomes, um Manoel Lobato, um Modesto Gomes e muitos outros), Alaor Barbosa, com esse romance Memórias do nego-dado Bertolino d’Abadia extrai do regional de Imbaúbas poderoso facho de universalidade, um clarão da melhor literatura da América Latina. E eleva o vôo decisivo que o vai levando bem longe, muito longe, depois de, realizando a profecia de José Edson Gomes, “terminar por explodir neste Brasil imenso e quase cego”.


* José Leão Filho, jornalista e escritor, falecido em 2004.
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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Vietnã (E o “desfolhante laranja”)

Emanuel Medeiros Vieira


Ah, Porto Alegre, anos 60. Conversávamos na Praça da Matriz: eu, Flávio, Alberto, Edgar, Aydos, Paulo, Sá Brito e outros. O que fazer? Havia a ditadura, cassetetes, mimeógrafo, apostilas. E a notícia de que Glauber e outros artistas haviam sido presos no Rio por protestarem contra a Guerra do Vietnã. Era preciso fazer alguma coisa. Sabíamos o que o Império estava fazendo. Não, mais uma vez não era possível ficar calado, como se nada estivesse acontecendo lá longe, sim, bem longe, do outro lado do mundo. (A luta continuou depois, já na década de 70, em São Paulo e Florianópolis.) A guerra terminou. Acordo assinado em 1975. Mas ela guerra não acaba com o armistício: ficam as sequelas, as viúvas, as muletas, os órfãos, as cidades destruídas. Éramos poucos? Sim. Mas parecíamos muitos. Queríamos mudar o mundo. A gente já escrevia para jornais do centro acadêmico, da faculdade de Direito, de Filosofia. Os verbos eram “ampliar”, “engajar”. Ou: “nossa força é a nossa união, não passarão, polícia também é povo.” (Hoje, quem ler, talvez sorria.) Iríamos “fundar a utopia.” Líamos tudo. Queríamos saber, conhecer, viajar. A livraria do Arnaldo e do Brutus (“Coletânea), no coração da cidade, era ponto de encontro. E vendia a crediário. Andávamos quase sempre “duros”. A livraria, o centro acadêmico, a Praça da Matriz, o “Mateus”, o “Rian”, as casas dos amigos, as repúblicas, os restaurantes universitários, os cines-clube eram os locais agregadores. E havia o Vietnam, para quebrar a nossa cabeça. A turma tem hoje, aproximadamente, 60 anos, 60 e poucos. Enternecer sem perder a dureza... A vida pode ter colocado espaço, distâncias. Vários amigos já estão encantados, tentando decifrar os enigmas da eternidade. Não, não estamos em 1967. Estamos em 2010. Trinta e cinco anos depois do final da guerra e da maior derrota militar dos EUA, os efeitos da dioxina usada no desfolhante laranja continuam a afetar regiões que compreendem áreas do Vietnã, do Laos e do Camboja. Os resíduos se entranharam na terra e nas sementes das plantas , e as pessoas que as consumiram e consomem, transmitiram e transmitem seus efeitos aos descendentes. 35 anos depois! Crianças sem olhos, sem braços, sem ouvidos, como revela Mauro Santayana. Recém-nascidos com os órgãos genitais na face.

Escreve ele: “São milhares de seres humanos e, enquanto viverem e continuarem a nascer, representam o libelo mais ácido contra os piores terroristas: os senhores estadunidenses da guerra.” A história do desfolhante laranja começou na Segunda Guerra Mundial, quando os encarregados das armas químicas sugeriram seu emprego maciço sobre os arrozais japoneses. Mas maiores empresas químicas do EUA, estimuladas pelo Pentágono – tendo à frente a Monsanto (não esqueçamos este nome) e a Dow Chemical passaram a pesquisar os efeitos do agente laranja contra os seres vivos, não só os da deformação genética, como também os da indução ao câncer. Em 1960 passaram a produzir para a guerra. Em 1961, o glorificado presidente Kennedy autorizou o uso do produto no Vietnã. Naquele país, além das crianças deformadas a incidência do câncer no útero é 30 vezes maior do que no resto da Ásia. Os acordos de Genebra proíbem rigorosamente o uso de armas químicas nas batalhas. A morte pode ser um processo técnico lucrativo, observa Mauro. “Não lhes importa a possibilidade de que os transgênicos venham a matar os consumidores ou a condenar as almas das crianças a habitar coros deformados nas próximas gerações. O que importa é o preço das ações, os dividendos aos acionistas, e a elevada remuneração de seus quadros executivos”, arremata.

Porto Alegre. Rapazes de 20 anos. Os inseguros amores, os esperançosos amores. Contos, poesias, curtas-metragens. Meu barro é mnemônico: não esqueço. Eu me lembro: Vietnã. Talvez, o exemplo que conhecemos de maior bravura e de maior coragem de uma gente. Tal luta vale mais que mil teses que falem em autodeterminação dos povos.

(Queria dedicar esta memória a todos os amigos que estiveram juntos naquele “campo de sonhos”, nos anos de Porto Alegre – cidade, também florida, das faculdades tão agitadas, do Guaíba do pôr-do-sol, das ladeiras, do “Rian”, do Cine Rex, do Quintana, do Gastal, do Appel, do Gerd e de tantos outros que, generosamente, nos ensinaram o valor da amizade, do pluralismo e da democracia (sim, que vá o lugar-comum necessário) como valor universal.
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