Naquele
pequeno e poeirento vilarejo de Cafarnaum, na Galileia, uma mulher não
conseguia pegar no sono. Isso vinha se repetindo com muita freqüência,
ultimamente. Ouviam-se, ao longe, latidos de cães que guardavam os poucos
pertences de seus donos vendilhões. Era, de certa forma, um conforto saber que
havia algum ser vivente compartilhando aquela indesejável insônia. Com ela,
agora cada vez mais intenso, o medo de que algo de ruim pudesse acontecer com
seu companheiro que, ultimamente, vinha intensificando suas pregações por toda
região da árida Galileia. Havia outros profetas de olhares sanguinários e
gestos violentos que profetizavam vários acontecimentos, enfatizando o fim do
mundo, para breve. Não sabiam, ou fingiam desconhecer, que o final deste mundo
era tão distante e obscuro quanto o seu início. Eram muitos profetas. Ela temia
todos que tinham na mulher a fonte de todos os males do mundo. Também estes
pregadores faziam tudo às avessas do que pregavam. Seu companheiro se
diferenciava dos demais, em vários aspectos. Um deles era que amava as
mulheres. Não trazia ódio no olhar, falava com brandura, gostava de estar
rodeado por elas. Tratava-as de igual para igual. Talvez essa fosse uma das
razões do grande número de seguidores. E isso a preocupava. Estava perdendo seu
homem para muitas pessoas. Tentara, por inúmeras vezes, dissuadi-lo de querer
mudar o mundo, de querer modificar as pessoas já tão habituadas e conformadas
com seu modo de vida. Era inútil, ela sabia, pois a cada dia ele se
entusiasmava com a ideia do perdão, de dar a outra face para o inimigo bater. Que
ideia mais improcedente era aquela, principalmente se o inimigo fosse um romano
que há tanto os subjugava. Entre latidos e rumores de animais na vizinhança,
seus pensamentos se alternavam, nem sempre de uma maneira ordenada.
Ocorriam-lhe cenas de violências das crucificações que ultimamente se
multiplicavam, dos impostos que cresciam desmesuradamente, dos desmandos
irrefreáveis dos governadores e tantas outras desventuras. No mundo das
crianças que dormiam ao lado, o sentimento de saudade ainda não se instalara
como dor. O real era facilmente substituído pelos sonhos. Talvez, por isso, a
vida para eles fosse mais suportável. Ainda não traziam nos rostos as marcas
das dores e ela se compadecia de todas as crianças. O mundo também não lhes
seria benevolente, como não fora para ela.
A saudade se engrandecia naquelas noites de latidos e uivos. Será que um
dia os homens deixarão essa busca frenética pelo dinheiro? Quando deixarão de
querer para si o que é dos outros? Será que um dia cessaria a arrogância dos exércitos
poderosos contra indefesos e frágeis aldeões? Quando o povo deixará de crer que
o poder desses imperadores sanguinários veio através de um poder divino? Será
que ele não teria se deixado levar, mesmo por compaixão, por uma daquelas que o
seguiam? Elas queriam também ser amadas neste mundo. Por que não parar de
pensar por uns minutos sequer e dormir como requer a noite? Como em outras
noites, não conseguiu dormir. Acordou cansada, vestiu-se apressada e levou as
crianças consigo. Não pararia, até chegar ao seu companheiro e rogar para que
ele voltasse para casa. Ali na sua casa, ele não seria traído, todos o amavam,
mesmo achando estranho seu modo de ser. Ela calaria a ouvi-lo, enquanto ele
acariciaria suas longas madeixas e à noite dormiriam em paz. Longe daqueles que
procuravam um pai para seguir e, entre outras benesses do amor, aquela maldita
insônia desapareceria para sempre. E caminhava firme à procura daquele nômade
pregador.
Bsb,
13.13.13
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