O
homem é o que ele inventa de si mesmo. O fato é real apenas enquanto acontece e
extingue-se no instante seguinte. Ou necessita ser reinventado inúmeras vezes,
tanto que a sua essência torna-se a própria mudança. Não há maneira de
colocá-lo diante dele mesmo, exigindo-se que se reconheça. Ele terá a impressão
de se enxergar ali, naquele lugar, naquelas roupas. Na fotografia, reconhecerá
a si mesmo, suspeitando de que alguém lhe forjou o passado. Tudo que antes era reconhecidamente
dele, noutro instante, desgarra-se. E todo um mundo em que anteriormente se
tocava, desmancha-se. O passado é um fantasma evocado pelo memorialista. Toda a
sua carne é feita de gaze fina, e a sua voz é melancólica como o canto do
urutau. O memorialista (re) força a confissão do fantasma para resgatar o
passado e tudo o que ouve é a própria voz costurando os vãos do cômodo.
Quintal dos Dias, de Nilto Maciel,
escrito como um móbile, pode ser lido como a exorcização de si mesmo através da
rememoração de sua própria trajetória. A memória é uma matéria informe e os
fatos, quanto mais distantes, mais irreais. Mesmo na esfera pessoal, os tempos
confundem-se: passado e presente agem simultâneos. E a mãe morta pode estar na
cozinha, preparando o assado para o almoço domingueiro, ou aquele tio pode
estar buzinando no portão para o passeio vespertino no verão pela cidade, em
seu carro velho. As memórias, os dilemas e toda educação sentimental e
literária exposta em uma linguagem cerrada, perfurante e comovente. E,
sobretudo, serena. A evocação não é de um espírito turbulento, ou com vontade
de um acerto de contas. O balanço não tem como saldo final determinado
resultado. Tudo está reunido e desmembrado. Estranhamente. Ternamente. O
narrador cáustico fustiga de impropérios os falsos amantes da literatura; em
seu furor inquisitorial, aponta o dedo para os vendilhões do templo, cai
vencido pelo cinismo e pela mediocridade do mercado. Depois da queda, o
consolo: o tempo. O único remédio para todas as inquietações e destemperos.
Escrevi
uma pequena nota, apesar da peroração do autor de Quintal dos Dias, em que perguntava, com interesse de resposta, às
grandes editoras do país, qual, dentre elas, iria ao Ceará, inquirir a Nilto
Maciel sobre seus alfarrábios. E, após intenso interrogatório, arrancá-los dele
e publicá-los. A resposta ainda não veio. Certamente um dia, virá. Cedo ou
tarde para nós ou para eles. Teremos como testemunhas apenas as estrelas ou
talvez nem elas. Se nenhum de nós mais
estiver por aqui, procurem-nos pelas mangueiras dos longínquos quintais, nas
sacadas repletas de luz, onde nossos rostos translúcidos trarão o tom de cada
manhã e onde nosso corpo estará espalhado pelo que ainda é o dia.
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