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sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Shoppings: templos de consumo e de desejo (Emanuel Medeiros Vieira)



Shoppings: templos de consumo e de desejo (E muitas perguntas)

Em memória do poeta Juan Gelman*


Os shoppings são a antiga Ágora grega – o coração da cidade.
Globalização? Da indiferença?
Cabeças decapitadas, império do tráfico.
Um menino me indaga; “O mal está vencendo?”
Olho fixamente nos seus olhos: “Está”.
Consolo-o: “Mas não será para sempre.”
Sociedade do espetáculo, e o templo é de consumo – não para orar.
O que significa isso tudo?
“Rolezinhos” – transgressão?
Desejo do tênis de marca?
Ou de proclamar: “também existimos”. Grito contra a exclusão, voz dos que não têm voz – a periferia berrando? Não sei. Sei que a baixar o cacete não resolverá. A medida de valor ainda é o dinheiro, a cor da pele.
Sem as posses dos meninos ricos – os vícios são iguais?
Desigualdade? Sim. Viramos apenas consumidores. Não cidadãos.
(Não almejo o panfleto.)
E só tenho perguntas.
Fim de tudo? De sonhos, ilusões, projetos? Ou não é nada disso.
Um universo dessacralizado – sem fé.
Crack, crime, medo – HORROR –, e lagostas para a governadora.
“O presente. O presente é tudo o que tens como tua possessão. Como Jacó fez com o anjo: retém-no até que ele te abençoe”.
(John Greenleaf Whittier.)
Que tempos!
Queria escrever no epitáfio: sem glória, mas com ternura.)

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*Morreu no México, em 14 de janeiro de 2014, o poeta e jornalista argentino Juan Gelman. Durante a ditadura militar argentina (1976-1983), Gelman teve o seu filho (Marcelo) assassinado. Sua nora, Maria Cláudia, foi sequestrada enquanto estava grávida e levada ao Uruguai pela “Operação Condor”. Nesse país, deu à luz e desapareceu. A filha do casal (Macarena) foi entregue a um policial uruguaio e só teve a identidade revelada em 2000. Grande parte da vida deste grande poeta e humanista foi dedicada (com comovente paixão e intensidade) a esclarecer o que havia ocorrido (com sua família e com o seu país), naqueles tempos tão sinistros e sombrios. 

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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Sereia do Báltico (Flávio R. Kothe)














Ela era loira, lembro, era alta e esbelta,
tinha os olhos azuis e um sorriso letal,
convidou-me à praia de Warnemuende,
na beira do Báltico, na boca do Warnow.

Já era outono, já era finado o bom verão,
andamos pela areia deserta, mão na mão,
à esquerda o mar, à direita as dunas altas
coroadas de capins e abetos de cascas alvas.

Ao longe o navio que ia para a Dinamarca
apitou, já saudoso de onde partia à tarde;
os nossos pés deixavam na areia pegadas
já prontas para serem pelo mar apagadas.

Com um sorriso maroto nos olhos e lábios
tu me puxaste para um abrigo entre galhos
e troncos que jaziam lá nas brancas areias,
tu me beijaste e atraíste como fazem sereias.

Mas eras mais que sereia, mais que donzela,
tinhas a plenitude da mulher que se sabe bela
e que gosta de ser amada por quem ela gosta:
nos amamos como se houvesse em nós aposta.

Eu tive de seguir o meu caminho de exilado,
tu tiveste de cuidar do teu emprego e passado:
hoje és um raio de luz que me deu o Báltico,
recuerdo e adiós, e nem disso sequer saberás.


 
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