Translate

sábado, 8 de março de 2014

Menino (Emanuel Medeiros Vieira)


 








Para Cida e Arnoldo
                           

“E por amor de ti, em guerra o tempo enfrento.
Quanto ele em ti suprime, é quanto te acrescento.” 
(Shakespeare)

                               

Aqui não estás (mas “sinto” a tua presença imanente).
Não vi o primeiro dente, os cabelos aparecendo
mas estás aqui, no lado esquerdo do peito
teu sorriso inunda a casa
sempre restará a memória,
e parece tão pouco
não esqueço  do teu sorriso,
menino,
da tua  imensa ternura            
apenas um ser – e sempre um ser
Apenas?
Colho uma pitanga no meio destes verdes – percebo que esse amor
vai à eternidade, e no exato momento desta escrita, alguns  
pássaros estão cantando.
É cedo.
Ou é muito tarde – sempre
Amo-te menino – nada deterá esse amor.
Nele não existe oblívio – estaremos juntos: para sempre.

/////

                                                                        

quinta-feira, 6 de março de 2014

Dois capitulinhos (Nilto Maciel)





Confúcio Galvez lembrava um galo: penas coloridas e esvoaçantes, bico afiado, esporões de aço, andar de príncipe britânico, voz de cantor de ópera. No entanto, não pensava em homem, não bicava ninguém, não esporava nem o vento, não morava em castelo e mal sabia “Touradas em Madri”. Arriscava umas frases: “Eu fui às touradas em Madri e quase não volto mais aqui”. Desafinava; riam dele. E cresceu assim, com ares de ave e chão de estrelas. Sempre de bico aberto: “Minha vida era um palco iluminado”. Andava pelo morro, subia e descia ladeiras, de olho nas cabrochas com latas d’água na cabeça, “Sobe o morro e não se cansa, lá vai Maria”. Experimentou rabiscar letras e rimas. As melodias, noites mel dormidas. Talvez doces, quem sabe azedas. Também sambou, desengonçado feito mamulengo. Viajou a Recife e encontrou o povo a pular nas ruas. Diante do frevo, extasiou-se: queixo caído, vestimenta de lorde, pés em transe. As meninas pareciam franguinhas ao sol do meio-dia. Misturou-se aos dançantes e se abrigou à sombra do homem da meia-noite e dos mil e um bonecos de pano. Entre passos e pulos, terminou grudado a certa pintassilga. Passado o carnaval, buscou outras mulatas, cavalgou mulas sem cabeça pelos sertões de Minas, perdeu-se em labirintos, maravilhou-se à frente da dança frenética dos bilros do Ceará e se fatigou de tanto vadiar. Então se casou com Camilinha Petres. E tiveram muitos filhos.

E assim se encerra esta história colorida. Porém, se inicia outra. A tragédia. Pois o tal Confúcio Galvez resolveu mudar de vida, ao se sentir relegado aos cantos da própria casa. Por todos os lados, televisões, computadores, celulares, viagens de Camilinha (tornada Camilona e gorda). Confúcio procurou as penas coloridas e nada encontrou, a não ser uma peruca dourada. E foi embora pra Pasárgada. Tempos depois, aborrecido de sonhar, voltou às ruas da infância e da juventude.

Em outro fevereiro, se enfeitou de urubu e conheceu Dalva de Oliveira, senhora alegre, mas nem tanto.  E lhe contou num dia o equivalente a cem anos de solidão. Casara-se com fulano, blablablá; passara a infância na serra da Meruoca, blebleblé; nascera filha, bliblibli; o fulano vivia com sicranas e beltranas, bloblobló; beberam umas cervejas, blublublu. O bicho velho se recordou, então, dos tempos de terreiro cheio de galinhas e franguinhas e quis ser galo de novo. No dia seguinte, reparou bem a filha de Dalva, grávida de alguns meses. Conversaram e cantaram durante noventa dias e noventa noites, até nascer linda menina. E, alguns anos depois (para encurtar o blablebli), ocorreu o capítulo trágico da vida de Confúcio. Blo-blu.

Fortaleza, 4 de fevereiro de 2014.     

/////