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sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

Dez cuecas para a eternidade (Nilto Maciel)


Carlos sentou-se num banco de praça e abriu a sacola para conferir as cuecas compradas há pouco. Contou uma a uma. Ao largo, pessoas passavam apressadas. Nos demais bancos, homens sentados. Uns fumavam. Talvez filosofassem. Disseram-lhe ser o ato de fumar propício a filosofar. Não tanto os cigarros. O cachimbo se adequava mais aos filósofos. Nunca deixou de acreditar na existência de Deus e na imortalidade da alma. Crenças rasas, adquiridas ao longo da vida, desde menino, com a mãe, os padres, os professores. Casou-se na igreja com Gessilda do Espírito Santo. Nasceram-lhe três filhos. Não chegou a cursar faculdade, porém ingressou no serviço público e cedo passou a ganhar salário invejável. Adquiriu imóvel e nunca deixou de freqüentar a igreja e rezar diariamente. Sabia de cor diversas orações. Confessava-se regularmente, sempre contando ao padre os mesmos pecados: “desejei a mulher mais próxima, porém logo me arrependi; quase todas as atrizes do cinema e da televisão; pecado passageiro e idiota”.

Rapazes e meninos sujos andavam pela praça. Um deles aproximou-se de Carlos e logo se afastou. Sumiu na multidão. Carlos levantou-se do banco e se pôs a caminho do estacionamento. Numa das mãos conduzia a sacola com as cuecas. Um colega de trabalho dizia-se ateu e, vez por outra, tentava infundir-lhe suas idéias. Deus não existia. Para existir, deveria ser o único ente do Universo. Nada de homens, animais e vegetais. Porque uns devoram outros, uns necessitam de outros. Os da mesma espécie também se matam. Os homens, sobretudo. E nada, ninguém seria capaz de impor outra ordem. Se ninguém — Deus, por exemplo — pode ordenar o mundo, a vida, impedir o crime, o assassinato, a matança, então não há esse alguém.

Andando pela calçada, Carlos não percebeu a aproximação do rapaz que o havia mirado na praça. Chamava-se José, aparentava 18 anos de idade, vestia-se pobremente e vivia de pequenos roubos. Também acreditava na existência de Deus, porém quase nunca se lembrava dessa crença. Não freqüentava igreja, não sabia rezar e confessava seus pecados a Maria, sua companheira. Seria mãe em breve. Se fosse menino, o nome seria Fernando; menina, Fernanda. Nasceria negro ou negra, como os pais, porém não seria doméstica ou ladrão. Seria médica ou deputado.

Súbito, José arrancou da mão de Carlos a sacola e voltou-se, para fugir. No entanto, chocou-se com o corpanzil de outro pedestre. Desequilibrado, caiu. Assustado, Carlos quis fugir também, porém decidiu recuperar as cuecas. E pôs-se a pisotear e dar socos em José. Logo outros homens cercaram José e passaram a linchá-lo. Já havia muito sangue na calçada e José não reagia mais. Vendo isso, Carlos, de posse das cuecas e arfando feito animal caçado, retirou-se do local. Mais adiante entrou num bar e pediu água. Como demonstrasse cansaço e nervosismo, o homem do bar ofereceu-lhe cerveja. Nunca havia bebido, não fumava, não praticava qualquer vício. Achava abjetos os bêbados, suicidas os fumantes e pecadores os viciados. Gostava de futebol, torcia por grandes times, porém sem nenhum fanatismo. Votava sempre nos candidatos do centro, abominava os esquerdistas. Apesar disso, conhecia um marxista. Não um comunista, apenas o criador do cachorro Marx. Daí dizer-se marxista: amava Marx, o cão. Puro deboche.

Diante de Espírito Santo, demorou a contar o ocorrido. “Você bebeu?” Brigaram. Ele contou tudo, ou quase tudo. “O ladrão morreu?” Devia ter morrido. No dia seguinte, os jornais noticiaram o fato: José havia falecido. Seus agressores o mataram a pontapés, socos e pauladas, e depois encharcaram seu corpo de gasolina e álcool e atearam fogo. Maria virou mendiga e deu ao filho o nome de José. Teve outros filhos, porém José morreu antes de dois anos de idade. Carlos passou a beber muito. Alguns anos depois morreu de enfarte. Espírito Santo reza todo dia por sua alma, que subiu aos céus, segundo o padre, os filhos e ela mesma.

As dez cuecas — nunca usadas — também desceram à sepultura.
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Carta aberta a Gumercindo Carneiro (Aníbal Albuquerque)




Barra do Garças, 3 de dezembro de 1995

Compadre Guma

Faz tempo que não escrevo ao compadre. Quando o mês de dezembro chega e os primeiros cartões de Natal, enviados por amigos de longe, começam a lembrar antigas saudades, constatamos nosso débito em correspondência. Aproveito o domingo para ir saldando minha dívida com todos os lembrados e você é o primeiro.

Um motivo especial colocou o compadre no topo da lista. Passei a tarde de sábado lendo o livro que Nilto Maciel me enviou: Os Varões de Palma. Creio que a comadre Moema é de lá ou pelo menos os pais dela são daquela região. Da família Canindé. Pois o romance do amigo cearense, cinqüentão a partir deste ano, registra fatos daquele município, ao tempo do Intendente Felício do Rego, esposo invejado da cobiçada Perpétua.