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terça-feira, 26 de agosto de 2008

"Não me sinto acadêmico, sempre fui marginal".


(Entrevista concedida por Nilto Maciel a Cissa de Oliveira)

Cissa de Oliveira – Consta na sua bibliografia que o seu primeiro livro foi publicado em 1974. Você se descobriu escritor por volta dessa época ou já escrevia muito antes de 1974?
Nilto Maciel – Leio desde menino e desde adolescente passei a imitar os escritores. Claro que nada daqueles escritos valia alguma coisa. Na verdade, o que sobrou (joguei quase tudo no lixo) foi um conjunto de 14 contos curtos que publiquei em 74 sob o título "Itinerário", depois reescrito e republicado.

CO – Nilto, qual é, na sua opinião, o papel do escritor na evolução da linguagem?
NM – Cissa, está nos livros: tudo existe por necessidade. Nada se cria para ser inutilidade. Mesmo aquilo que alguns (ou a maioria) abominam. Vejamos as drogas orgânicas: como viver sem elas? No mundo todo, o álcool é usado diariamente. A linguagem também se cria ou se recria continuamente, por necessidade de comunicação.

CO – Dizem que a mesma droga pode ser veneno ou remédio, dependendo da dose. Quanto à “química literária”, a sua, por exemplo, que é viciadora (gostou do palavreado?) – é sim... - é passível de ser aprendida ou somente apreendida? Será que os novos escritores aprendem a escrever, e isto seria algo mais relacionado com a prática e a leitura ou o talento é o que conta?
NM – Aprendemos sempre, se quisermos. Para apreender, no entanto, é preciso mais do que vontade. Existe uma faculdade do escritor no Rio Grande do Sul. Não sei como funciona. Acredito que todo bom aluno (aplicado, como se dizia) pode aprender a escrever bem. Claro que a escola (os professores) contará com a prática da escrita e a leitura. Sem isso, impossível escrever. Não sei se sem talento (ou dom, seja lá qual for o nome) seja possível alguém se tornar um bom escritor. Acho que não. Muita imaginação, curiosidade, ousadia, tudo isso é necessário. Essencial, direi.

CO – A cidade de Palma. Quando você criou um carnaval por lá (Carnavalha) foi para dizer algo que teria deixado de expressar em “Os Varões de Palma”? O que há de especial com esta cidade?
NM – Nem sei como surgiu a idéia do romance. Creio que tenha bebido um bocado de cerveja, nos dias de carnaval de 1997 ou logo após. Fiz um balanço: escrevi um romance que remonta aos tempos coloniais (Os Guerreiros de Monte-mor), outros que relembram os primeiros anos do século XX, um que conta 1964 em Palma. Faltava um romance de hoje. Palma seria a Baturité de minha infância e de antes dela. Tudo imaginado, é claro, porque não faço pesquisas para escrever. Minto: faço pesquisas, sim, leio muito, li muito sobre índios, História do Brasil, do Ceará, de Baturité, folclore, estudos sociológicos, etc.

CO – Ainda sobre Carnavalha: O Carnaval foi escolhido como tema por ser um pano de fundo ideal, onde pessoas e fatos se transmutam com mais naturalidade, permissividade, tolerância?
NM – Não, não pensei nisso. Como disse na resposta anterior, a cerveja me fez pensar num romance em pleno carnaval.

CO – “A cerveja me fez pensar num romance em pleno carnaval”. Pois bem, eu soube de escritores que se acostumaram a escrever poemas somente a partir de citações de outros poetas; e há aqueles que só escrevem se for com o uso do computador, e outros que o fazem até durante o transporte diário. Qual é a sua metodologia para escrever? Há algum pré-requisito? A inspiração é essencial ou você começa e depois deixa que a coisa vá acontecendo?
NM – Meus primeiros escritos saíram em folhas de papel ou cadernos. Só recentemente passei a escrever diretamente na tela do computador. Coisa de dez anos. A idéia surge a qualquer hora e em qualquer lugar: vendo televisão, ouvindo música, dirigindo carro, trabalhando, etc. Então anoto a idéia e passo a desenvolvê-la em pensamento. Não deixo "a coisa acontecer ou ir acontecendo". Fico ruminando por horas e dias aquela idéia. E vou anotando tudo. Às vezes nem consigo dormir direito, a noite toda "pensando" naquilo. Chego a escrever, a elaborar o conto durante o sono. Decoro as frases, refaço-as mentalmente. No outro dia tenho tudo decorado e copio. Só então (pronto o conto) passo à fase de lapidação: cortes, acréscimos, troca de vocábulos, nomes de personagens, etc.

CO – E já que falamos em computador, você acha que o livro impresso ainda será substituído pelos livros eletrônicos? Dentre os seus livros impressos,
quantas e quais obras já estão editadas digitalmente?
NM – Sim, um dia os livros de papel serão substituídos pelos livros eletrônicos. Já existe isso em escolas. Nos tribunais os autos estão desaparecendo. Tudo no computador. Todos os meus livros estão em disquetes, cds, sites e blogs.

CO – Então, diante da eminência do fim do livro impresso, não seria lógico que as editoras abrissem mais espaço e condições para a publicação de novos autores, sob o risco de desaparecerem?
NM – Não sei o que pensam os editores sobre isto. Certamente pensam em ganhar muito dinheiro, antes do fim da era do livro impresso. Porque depois pensarão em ganhar dinheiro noutros quintais.

CO – Eu notei que você é um autor que tem sido bem estudado e imagino que isto traga bastante satisfação. Dentre esses estudos existe algum que tenha um significado especial pra você?
NM – É verdade, muitos têm escrito artigos sobre minha obra. Alguns são amigos e, portanto, o fizeram por amizade. Outros são apenas conhecidos. E há ainda os que nunca vi ou com eles conversei. Todos os artigos são agradáveis. Mas posso mencionar dois como importantes para mim: o prefácio de José Lemos Monteiro para o romance A Guerra da Donzela e um estudo de F. S. Nascimento (F.S. Nascimento reuniu os três estudos num só e publicou em livro, “Apologia de Augusto dos Anjos e outros estudos” – Universidade Federal
o Ceará/Casa de José de Alencar, Fortaleza, Ceará, 1990).

CO – O que você fez em termos de política e em que períodos? O que escreveu neste meio tempo?
NM – Fiz-me socialista aos 15 anos de idade, mais ou menos. Depois de ter decorado a missa em latim e de lido todas as orações da Igreja Católica, passei a ler os hereges. Li muitos filósofos. E assim me fui tornando ateu ou seja lá o que for. Logo me fiz leitor dos semanários de esquerda: A Liga (de Francisco Julião, das Ligas Camponesas), A Classe Operária, Novos Rumos (PCB) e outros. Lia também revistas e livros de esquerda. Em 63/64 participei de um grupo de bairro (meus irmãos e uns amigos) chamado LACISA - Liga de Ação Contra a Injustiça Social e Administrativa, desfeita com o golpe. Retornei à luta em 67, no CESC - Centro dos Estudantes Secundaristas do Ceará - então sob o controle de um grupo chamado Quarta Internacional Trotskista ou Partido Operário Revolucionário Trotskista. Com a intensificação da repressão e o início da luta armada (guerrilha urbana e rural), voltei-me de novo para os estudos e a literatura.

CO – Poesia. Além de um livro de poemas, "Navegador", de 1996, e algumas participações em antologias deste gênero, você não tem publicações em poesia, apesar de ser um autor de vários livros de conto e romances. Como o autor Nilto Maciel enxerga a poesia que se produz hoje no Brasil?
NM – Li muita poesia. Os principais poetas. Hoje leio pouco. Não conheço os novos poetas. Há anos não escrevo poemas. Os bons poetas de hoje, para mim, são aqueles que li há trinta, vinte, dez anos, como Francisco Carvalho, Ferreira Gullar.

CO – O que você está escrevendo atualmente? Você escreve mais de um livro numa mesma época?
NM – De vez em quando escrevo um conto. Aqui e ali, um artigo, um prefácio, a pedido. Romance não pretendo mais escrever. Quando escrevia romances, dedicava meu tempo todo somente a eles. Os contos não são programados. Vão surgindo, vou anotando.

CO – Nilto, se você tivesse que escolher dentre as suas obras uma que melhor representasse todo o seu trajeto literário, qual delas seria?
NM – Talvez "A guerra da donzela".

CO – Você acredita que o hábito da leitura poderia ser afetado pela diversidade de atividades que se pode ter hoje em termos de diversão ou o público que gosta de leitura é diferenciado neste sentido?
NM – No passado (que não conhecemos), num tempo sem rádio, sem televisão, sem computador, sem cinema, quem gostava de arte lia e freqüentava teatro. Hoje, diante de tantas opções de diversão, as pessoas se afastam dos livros. Na verdade, os leitores são uma minoria. Sempre foram. Mas o leitor não troca livro por televisão.

CO – O ambiente onde se escreve tem muita influência sobre o que se escreve? Como é isto pra você?
NM – O ambiente influi muito no momento da criação literária. Prefiro escrever em silêncio, na solidão, com muitos livros por perto (dicionários, principalmente), com saúde, lúcido, tudo limpo e arrumado. Uma só pessoa no ambiente atrapalha. Insetos atrapalham. Ruídos atrapalham.

CO – Nilto, o seu artigo “A respeito da Revista O Saco” no Portal de Arte e Literatura Cronópios (http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=3318), de 12.06.08, é um verdadeiro histórico que delineia as batalhas e também o sucesso desta antiga revista literária. Você, que foi um dos fundadores e fazia parte do conselho editorial, a que atribuiria o marcante sucesso da revista em tão pouco tempo (menos de um ano de edição)?
NM – Aquele momento - 1976 - se mostrava propício ao surgimento de novas propostas editoriais. Além disso, éramos muito ativos, combatentes, decididos, jovens. Porém, não fosse Manuel Coelho Raposo, a revista não teria surgido e existido.

CO – Por que a edição da Revista O Saco acabou, mesmo num momento de muito sucesso e prestígio literário, inclusive no exterior? Foi falta de alguma espécie de apoio? De que tipo?
NM – A revista acabou porque tudo acaba. Não, estou filosofando. Acabou porque houve pressão da distribuidora: ou aumentávamos a tiragem ou o contrato chegaria ao fim. Como não tínhamos muito dinheiro, não foi possível aumentar a tiragem. Por outro lado, Raposo deve ter se sentido cansado. Naquele tempo não queríamos apoio estatal (vivíamos sob a ditadura).

CO – Por que a revista recebeu este nome? Sempre cabia mais um (escritor) ou é porque ali, na medida em que ligados pela literatura, todos eram farinha do mesmo saco?
NM – Não, todos não eram farinha do mesmo saco. Publicávamos antigos e novos, cearenses e sulistas, moderninhos e tradicionalistas. O importante era o valor literário. O nome veio do formato: um envelope amarelo (tipo saco) como capa.

CO – Você edita deste 1991 a revista Literatura, portanto, há um bom espaço de tempo. Algum dos seus colegas escritores fundadores da antiga Revista O Saco trabalha com você neste novo (maneira de dizer) veículo literário?
NM – Na verdade, 17 anos. Todos os amigos que fiz desde o início dos anos 1970, de todo o Brasil, continuaram amigos e colaboradores. Alguns nunca cheguei a ver. Outros vi uma vez na vida. Mas nada disso impede a amizade. Literatura é uma revista feita por amigos. Citarei apenas alguns, por economia de espaço: Enéas Athanázio (de Santa Catarina), Francisco Miguel de Moura (do Piauí), Batista de Lima (do Ceará). São os mais antigos. Surgiram outros, é claro. E sempre surgirão, porque na família dos escritores há brigas, desavenças, invejas, ciúmes, mas todos se amam.

CO – Fale um pouco sobre a Revista Literatura. Tem alguma espécie de patrocínio para a edição, distribuição, etc, como acontecia com a revista O Saco? A periodicidade de publicação da mesma mudou desde o começo ou sempre foi semestral? Passado o tempo, quais foram e quais são as suas expectativas para esta revista?
NM – A grande diferença entre O Saco e Literatura está exatamente no patrocínio. Aquela contava com anúncios comerciais; esta vive da colaboração de seus fundadores, basicamente. Não tem anúncios, não recebe patrocínio oficial ou empresarial. A distribuição é dirigida a bibliotecas, entidades culturais, jornalistas da área cultural, escritores, etc. A periodicidade tem se mantido na semestralidade, com muito esforço de todos nós. Já pensei em dar fim à revista. Estou cansado. Muita chateação. Muita gente querendo publicar e poucos querendo ajudar.

CO – Revista O Saco, revista Literatura, Caos Portátil. A sensação que eu tenho é a de que no Ceará existe uma preocupação suficientemente forte para driblar as dificuldades e a inércia em termos de publicação, abrindo cada vez mais espaços para os autores. Existe mais algum periódico literário editado atualmente no Ceará além da Literatura e Caos Portátil?
NM – Batista de Lima escreveu um artigo sobre este assunto: é grande a tradição de periódicos literários no Ceará, desde o século XIX. Talvez a explicação esteja no abandono a que somos relegados pelas editoras do Sudeste. Entretanto, não somos apenas os cearenses estes esquecidos.

CO – Aí está uma resposta (literária) bastante construtiva, em perfeita consonância com os tempos da internet onde “fronteira” é palavra que não existe. Falando nisto, em quais principais endereços eletrônicos (sites, blogues, etc.) se podem encontrar alguns dos seus escritos?
NM – É verdade, com a Internet acabaram-se as fronteiras. As pessoas nem querem saber onde você mora, se o vêem num site ou num blog. Tenho conhecido escritores de todo o Brasil (o que já acontecia, porque sempre fui um buscador de amizades e novidades). Meus poemas, contos, romances, artigos estão nos seguintes endereços (e noutros):
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com/ http://niltomaciel.blog.uol.com.br/ http://contosbrasileiros.blogspot.com/. http://www.cronopios.com.br/ http://www.secrel.com.br/jpoesia; http://www.verdestrigos.org/; http://www.bestiario.com.br/; http://www.germinaliteratura.com.br/ http://www.antoniomiranda.com.br/ http://www.revistavagalume.com/. http://www.conexaomaringa.com/. http://www.literaturafantastica.pro.br/

CO – Por causa do trabalho você morou em Brasília por mais de vinte anos e depois voltou para o Ceará. Em Brasília não tinha disso não?
NM – Em Brasília tem também um pouco de Ceará, de Nordeste, como em São Paulo e Rio de Janeiro. Entretanto, lá eu me sentia em exílio. Muita saudade da gente, dos costumes, da cultura cearenses.

CO – O escritor Nilto Maciel se delineia nestas respostas, mas e o Nilto pessoa, o que me diz dele? Fale um pouco sobre a sua família, e da sua relação com eles.
NM – Tenho quatro filhas: Fernanda Carenina, Menita Flaviana, Nioche Valentina e Aretusa Luanda. Meus quatro amores. Meus pais já faleceram. Meus primeiros amores. Restam-me duas irmãs. Segundos amores. Falo com elas todo dia, por telefone, porque moram fora do Ceará, as filhas e uma irmã.

CO – É sabido que, paralelo à carreira profissional, surgiu e cresceu o escritor Nilto Maciel, exemplo que se vê entre vários escritores bem reconhecidos. Será que “viver de literatura” é tão prazeroso quanto exercê-la pelo simples fato de gostar de escrever?
NM – Não se vive de Literatura, no Brasil. A maioria dos escritores (creio que no mundo todo) escreve por prazer, por vaidade, por isso, por aquilo, e não porque ganha dinheiro com ela. Alguns de meus livros foram editados por editoras de porte médio, em edições pequenas. Ou por editoras oficiais (secretarias de cultura). O maior prazer está, no entanto, em escrever, criar. Sinto-me entediado quando não estou escrevendo. Quando a centelha surge, a alegria vem junta. Nesse momento tudo desaparece diante de mim. Entro em transe. Tudo o mais ao meu redor deixa de existir: até a música de Chopin. Se alguém me visitar nesse momento, certamente não será recebido com cortesia. Se alguém me telefonar, não atenderei o chamado. Passo o resto da noite a pensar e fazer anotações. Não consigo dormir direito. Sonho com o conto em processo de criação. Às vezes escrevo (mentalmente) dormindo. No outro dia tenho tudo decorado e é só copiar.

CO – E então, Nilto, quais são as novidades em termos de lançamentos literários? Algum projeto em especial?
NM – Caríssima amiga Cissa, como só paramos quando morremos, eu também continuo escrevendo e publicando. Só espero não continuar escrevendo depois de morto. Mas quero continuar publicando, isto é, sendo publicado. Além da antologia “Capitu mandou flores” (Geração Editorial, SP) organizada por Rinaldo de Fernandes, deve ser publicado em breve o ensaio sobre o conto cearense. Pretendo publicar até outubro o n° 35 da revista Literatura. E no começo do ano vindouro mais uma coleção de contos: Urbi et orbi, contos curtos, escritos há alguns anos.

CO – O que significa “Urbi et orbi” (é relacionado à cidade?) Os contos seriam relacionados ao cotidiano citadino?
NM – "Urbi et orbi" é o título de um dos contos. São contos curtos, de personagens históricos, mas nem sempre urbanos. Como se sabe, a expressão latina e católica "urbi et orbi" quer dizer "À Urbe (= Roma) e ao mundo".

CO – Nilto, uma das coisas mais poéticas que eu li ultimamente não estava num poema, mas num comentário que você escreveu em “Livros do Brasil”*. Ali você escreve sobre a “rica indústria do livro no Brasil” e que ela atuaria em três principais frentes: 1) do livro didático; 2) do livro das grandes, médias e pequenas editoras; e 3) a do livro do autor ou micro-editora de autor. Com relação ao último tipo (3), eu pergunto: Na sua opinião, que coisa é esta que faz um escritor passar por cima de tantos obstáculos para publicar?
* (11.10.05 no seu blogue
http://niltomaciel.blog.uol.com.br/arch2005-10-09_2005-10-15.html).

NM – Como se sabe, as editoras só publicam estrangeiros (santo de casa não faz milagre) e alguns brasileiros. De preferência, jornalistas, cronistas de grandes jornais, "famosos" (como dizem por aí), porque são garantia de venda dos livros. Ou seja, o investimento do editor dá bom resultado. O resto (a literatura propriamente dita) fica de fora do mercado. Sendo assim, os escritores se vêem forçados a pagar as pequenas edições de seus livros. Vendem dez, vinte exemplares na noite de lançamento (para parentes e amigos) e o resto da tiragem vai para casa. Parece coisa de louco, de criança, de visionário, de poeta, não é? Alguns, depois de mortos, virarão celebridades no meio acadêmico (como o cearense Oliveira Paiva) e seus livros serão editados por grandes editoras, que não pagarão direitos autorais a ninguém (deviam pagar a um fundo de cultura).

CO – Ainda em “Livros do Brasil” você diz que os livros da terceira frente, os “do autor”, terminariam, felizmente, nas mãos dos melhores leitores e pesquisadores. Isto é uma alusão de que estes livros não seriam apenas “achados”, mas procurados? Como é isto?
NM – Em prosseguimento à resposta anterior: alguns não se tornarão logo celebridades nacionais (Moreira Campos, por exemplo), mas terão o reconhecimento de críticos e leitores mais exigentes, e seus livros (tornados raridades) serão procurados em sebos.

CO – Você diz também que foi para este tipo de livro que nasceu a Revista Literatura. Isto me diz da sua preocupação em levar ao público grande parte do que se produz em termos literários no Brasil, mas que fica no escuro. Você acredita que se mais escritores se unissem para mostrar não apenas as suas obras, mas também as dos demais, as editoras poderiam rever a questão do domínio em relação ao mercado editorial?
NM – Nós escritores brasileiros temos o dever de divulgar uns aos outros. A Revista Literatura nasceu para isto. Nunca publiquei figuras do baralho midiático. Nem eles precisam disso. Nem sequer sabem da minha existência ou da revista. Não importa. Se os editores vão mudar, não sei. Talvez não mudem nunca.

CO – Você é membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste/Ceará, que edita a Revista Urupema. Também é membro da Academia de Letras do Brasil, em Brasília. Fora isto, é um autor reconhecido, preservando as diferenças de categorias literárias, um Ariano Suassuna do Ceará. Vocês são amigos? Quem são os seus pares mais próximos em termos de convivência?
NM – Sim, sou membro de duas academias, convidado que fui para integrar-me a elas. Muito a contragosto, porque não me sinto acadêmico. Sempre fui marginal. Não tenho editores, não estou na mídia, não tenho amigos influentes, etc. Longe de mim ser um Ariano Suassuna. Ele está muitos degraus acima. Estou no patamar mais baixo. Mas não tenho inveja de ninguém. E desejo muito sucesso para todos. Como a João Ubaldo Ribeiro, que acaba de ganhar o importante Prêmio Camões. Louvor a ele, que merece todos os prêmios. Conheço um bocado de gente pelo Brasil a fora. A maioria só por carta, telefone, internet. Em Fortaleza me relaciono muito bem com todos os escritores, sejam mais velhos, como Francisco Carvalho, um dos maiores poetas do Brasil, sejam mais jovens, como Tércia Montenegro, belíssima contista.

CO – Eu fiquei impressionada com a quantidade de livros e citações envolvidas no seu estudo "Panorama do Conto Cearense". Você fez este longo estudo por achar que os registros anteriores eram poucos, dispersos, incompletos, para atualizar ou o que?
NM – Eu conhecia dois estudos excelentes sobre o conto cearense, de Braga Montenegro e de Sânzio de Azevedo. Além de artigos e resenhas diversas. Nenhum livro, porém, dedicado exclusivamente ao conto cearense. Este foi o motivo que me levou a pesquisar e escrever o "Panorama". Nenhuma pretensão de melhorar nada. Porque não se pode melhorar o que é melhor. Braga é (faleceu há alguns anos) um dos mais profundos estudiosos da literatura cearense, brasileira e universal no Ceará. Sânzio é doutor em Letras, pesquisador sério e dedicado. Sabe tudo e mais alguma coisa de Literatura Cearense. E também de Parnasianismo. Estou muito longe deles. Sou um aprendiz.

CO – Nilto, o que você gostaria de nos dizer que eu não perguntei?
NM – Acho que não há mais nada a dizer. Ainda bem que você não fez perguntas indiscretas. Se tivesse feito, eu não as responderia. Não gosto de falar de mim, de meus defeitos, de meus pecados. Por isso não escrevo mais diários. Minhas memórias estão em meus contos e romances. Estou neles. Um pouco, é claro.

CO – Digamos que eu não goste de ser (muito) indiscreta (risos), e que eu procurei não seguir alguns vieses na nossa conversa por ter intuído que você teria se aprofundado neles se assim o quisesse.
Muito obrigada, Nilto, tanto por nos presentear com a sua maravilhosa “química literária” quanto por se permitir delinear um pouco mais através desta entrevista.

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Nilto Maciel (Baturité, 1945) é um dos fundadores de O Saco. Publicou as seguintes coleções de contos: Itinerário, 1.ª ed. 1974, 2.ª ed. 1990, João Scortecci Editora, São Paulo, SP; Tempos de Mula Preta, 1.ª ed. 1981, Secretaria da Cultura do Ceará; 2.ª ed. 2000, Papel Virtual Editora, Rio de Janeiro, RJ; Punhalzinho Cravado de Ódio, 1986, Secretaria da Cultura do Ceará.; As Insolentes Patas do Cão, 1991, João Scortecci Editora, São Paulo, SP; Babel, 1997, Editora Códice, Brasília; Pescoço de Girafa na Poeira, 1999, Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, Brasília; e A Leste da Morte A Leste da Morte, 2006, Editora Bestiário, Porto Alegre, RS. Tem novelas, romances e poemas em livros. Pertenceu ao Grupo Siriará. Editor, desde 1991, em Brasília, da revista Literatura. Em 2003 a transferiu para Fortaleza. Suas narrativas mereceram artigos e ensaios de alguns comentaristas e críticos cearenses, como F. S. Nascimento, Sânzio de Azevedo, Dimas Macedo, Batista de Lima, Francisco Carvalho, Caio Porfírio Carneiro, Carlos Augusto Viana, e também de outros Estados, como Foed Castro Chamma, Tanussi Cardoso, Francisco Miguel de Moura, Ronaldo Cagiano e Astrid Cabral. Tem contos traduzidos para o espanhol, o italiano e o esperanto. Ganhou alguns prêmios também no gênero conto. E-mail: niltomaciel@uol.com.br

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Cissa de Oliveira é o pseudônimo literário de Maria Sileuda Moreira de Oliveira que é cearense e moradora em Campinas – SP. É bióloga, doutora em Genética e Biologia Molecular e atua na área da Saúde e da Educação. A autora, que se dedica à escrita desde o ano de 2000, foi premiada com a publicação do seu livro de crônicas “A pontinha das páginas” (2007) no concurso “Prêmios Literários Cidade de Manaus”. Além de possuir livros de poesias, crônicas e infantis registrados na Biblioteca Nacional (inéditos) a autora participou de oito antologias no Brasil e no exterior, a mais recente, “Dez Rostos da Poesia Lusófona”, lançamento na 20ª. Bienal Internacional do Livro em São Paulo, 2008.

(Agosto de 2008)
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quinta-feira, 21 de agosto de 2008

O ativista (Marcelo Spalding)



A crônica de uma pequena cidade do interior do estado precursor da liberdade conta que há remotos tempos vivera ali um certo ativista, o primeiro do gênero que se tem notícias. E último. Ocorre que a cidade era conhecida de norte a sul do país como a cidade onde o ar era mais fresco, digamos assim. Programas de rádionovela repetiam piadas, vizinhos tripudiavam e a fama cresceu à revelia de seus honrados cidadãos e apavorados governantes. Tudo isso explicava o ilustre doutor Simão Brutamontes, ativista da moral e dos bons costumes contratado especialmente para reestabelecer a ordem na pequena cidade. – A saúde da alma é a ocupação mais digna de um médico, bradou Simão enquanto olhava suas cartas em busca de uma rainha.
– E a honradez da cidade é a ocupação mais digna de um homem público, exultou Crispim, o vereador, sem notar que o doutor baixava uma canastra quase completa. – Alto lá, doutor, este cinco não é de paus, preste atenção, protestou o boticário, atento ao jogo e às moedas sobre a mesa.
– Queres que eu te dê um de paus, Simãozino?, ironizou Soares, o vendeiro.
– Ora essa, estás me confundindo?
Riram todos, riu o vereador, riu o boticário, riu o vendeiro e riu o doutor. Riram e coçaram as barbas espessas, afinal desde que Simão chegara na cidade todos faziam questão de cultivar barba, bigode e os mais radicais sequer usavam perfume ou desodorante. Mas naquela tarde a partida não terminou, Simão era chamado com urgência no gabinete do prefeito. O ativista entrou sem pedir licença, cumprimentou o prefeito com um aperto de mão forte porém rápido e acomodou-se numa bela poltrona. O outro contou uma longa história sobre a formação da cidade, a importância da educação européia para as primeiras gerações, a pujança cultural e econômica dos anos idos para finalmente confessar que vira seu filho ao telefone – e de risinhos – com um amigo.
– Mas se foi por pouco tempo isso é normal, tentou contemporizar Simão.
– Por duas horas.
O doutor jogou-se para trás na poltrona, suspirou, coçou a barba e ensaiou uma longa explanação sobre ciência, moral e sexualidade, sobre a importância de mantermos os jovens longe das más companhias, evitando assim uma “deturpação formativa irreversível”. Encerrou o discurso suando e exalando um cheiro ruim o suficiente para que o prefeito abrisse as janelas. Voltando à sua cadeira, perguntou:
– O que então o senhor sugere, Doutor Simão?
– Sugiro a ampliação imediata da Casa Rosa, digo, da Casa Verde a fim de tratarmos também os doentes potenciais, aqueles que ainda não praticaram algum ato de, bem, o senhor sabe, mas estão em vias de praticá-lo.
A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez apareciam verdes na pequena cidade. Verdade que antes a casa tinha as paredes rosas e as janelas verdes, em homenagem a certa escola de samba, mas os cidadãos começaram a chamar a casa de Casa Rosinha, ao invés de Casa Rosada, como pretendia o prefeito, e foi decidido pintar as paredes de branco e adotar oficialmente o nome de Casa Verde. Se primeiro na Casa foram trancados homens que dormiam com outros homens, mulheres que dormiam com outras mulheres e casais que dormiam com outros casais – a maioria denunciados por vizinhas do andar de baixo –, a partir da nova demanda do prefeito qualquer homem com brincos nas duas orelhas, sobrancelhas aparadas ou unhas feitas corria sério risco de ser alienado. Também meninas de cabelo curto e corpo musculoso, senhoras com voz grossa e porte avantajado ou mulheres de quarenta anos ou mais reconhecidamente belas e solteiras eram invariavelmente levadas à Casa e submetidas a rigoroso tratamento científico. Ao cabo de cinco meses estavam alojadas umas cento e oitenta pessoas na Casa; mas Simão Brutamontes não afrouxava, ia de rua em rua, de casa em casa, espreitando, interrogando, estudando; e quando colhia um enfermo, levava-o (ou levava-a) com a mesma alegria que outrora os arrebanhava às dúzias.
Considerava seu trabalho concluído quando foi ao gabinete da prefeitura novamente. Entrou no gabinete sem pedir licença, pôs os pés em cima do sofá e o prefeito, sem esperar a pergunta, disse:
– Não adiantou. Ontem foram três horas. Três horas de conversinha com outro homem, sabe o que é isso?, os dois balançaram a cabeça, coçaram a barba, e o prefeito continuou: – Pelo menos eu descobri quem estava do outro lado da linha.
Foi duro ouvir aquele nome. O doutor tossiu, pediu para o prefeito repetir e, quando não restava dúvidas sobre o dono da voz grossa do outro lado da linha, prometeu uma providência para aquele mesmo dia. Ou aquela mesma noite, quando se encontraria para a habitual rodada de canastra a dinheiro.
– Soares, olha que porcaria de jogada! Não sei por que insiste em vir jogar se não ganhas nunca, desafiou Simão.
– Ora, meu doutor, venho pela companhia dos amigos, é claro.
Não restava dúvida. O ativista apenas esperou a partida terminar para comunicar ao seu amigo Soares que teria de encaminhá-lo a Casa Verde. Discutiram e em meio a briga o vereador sai com essa:
– Não, não nego que falei com o filho do prefeito ontem à noite. Mas pode escrever, doutor, amanhã e depois de amanhã e depois de depois de amanhã outros vão ligar para ele e o senhor terá que trancar todos os homens da cidade naquela casa porque não há melhor papo que o filho do prefeito.
Simão não dormiu direito aquela noite nem as duas próximas. Instalara uma escuta na casa do prefeito e de fato sempre havia uma voz diferente conversando com seu filho, e pela manhã lá estava o doutor na casa dos donos das vozes para levá-los à Casa Verde. Deduziu que havia outras conversinhas deste feitio pela cidade e que elas logo se tornariam uma ameaça a decência, pulando do telefone para a cama, o que obrigou Simão a quintuplicar a capacidade de seu empreendimento.
Um caso em especial chocou a cidade e aumentou muitíssimo a importância do ativista. Cansado de monitorar as conversas do filho do prefeito, Doutor Simão achou por bem prender o próprio jovem, talvez fosse ele o culpado pelas recaídas masculinas. Chegou à hora do café na casa do prefeito, expôs seus motivos e pediu que o jovem o acompanhasse. Até aí tudo corria bem, o rapaz reagiu como se esperasse por aquilo, mas a primeira dama mal terminou de ouvir o diagnóstico do doutor e partiu para cima dele com as mãos cerradas, fazendo ecoar sua voz rouca e chorar seu marido, a esta altura encolhido numa poltrona.
– Não teve jeito, meu amigo, contou o ativista para o boticário no dia seguinte, quando vi tamanha inversão de papéis fui obrigado a levar a família toda para a Casa. Onde já se viu ela querer briga e ele chorar como criança?
A notícia da alienação do prefeito, sua esposa e seu filho apenas aumentaram a fama do doutor na pequena cidade. Seu telefone tocava sem parar com denúncia de irmãos contra irmãos, filhas contra pais, esposas contra maridos, colegas contra colegas, alunos contra professoras. E não bastasse o número assombroso de alienados, Simão era diariamente abordado por senhoras iradas dispostas a soqueá-lo em plena rua e senhores sensíveis chorando pelos seus filhos, pelos seus netos, pelas suas esposas ou pelos seus alunos. Naturalmente o doutor considerou aquilo muito estranho e aos poucos estes também tiveram de ser alienados. O boticário porque chorava a ausência do vereador, o vice-prefeito porque sentia falta do prefeito, a esposa deste porque lamentava o afastamento da primeira dama. Em pouco mais de meio ano, quatro quintos da cidade estava dentro da Casa.
Se o alvoroço dos internos era grande, a aflição do egrégio Simão Brutamontes é definida pelos cronistas da pequena cidade como uma das mais medonhas tempestades morais que têm desabado sobre o homem. Mas as tempestades só aterram os fracos; os fortes enrijam-se contra elas e fitam o trovão. Simão pensava em toda sua ciência e seu empreendimento enquanto embaralhava as cartas para uma partida sem apostas, sem conversas, sem companheiros. Olhou para os lados e sentiu falta da atenção do vendeiro, do sorriso fácil do vereador, da desconfiança do boticário. Lembrou do prefeito que confiara nele a sorte de tão proeminente cidade. E sentiu uma idéia que surgia encabulada sob seus sólidos preceitos morais.
Na manhã seguinte, para espanto geral, decretou que os internos da Casa Verde iam todos ser postos na rua.
– Todos?
– Todos.
– É impossível; alguns, sim, mas todos...
– Todos.
Por um dia a cidade voltou a sua rotina normal, à exceção do ativista que abria e fechava livros em busca de uma resposta. Passou o dia nessa pesquisa incessante até ser interrompido pelo boticário, pelo vendeiro e pelo vereador.
– Voltas ao carteado hoje, doutor?
A vontade era largar livros e estudos e abraçar demoradamente um por um dos amigos, talvez beijar-lhes a face, confessar a estima. Mas o ilustre ativista, com os olhos acessos da convicção científica, trancou os ouvidos, brandamente repeliu o trio e fechou-se para sempre no interior da Casa Verde, entregando-se ao estudo e à cura de si mesmo.
Outubro de 2006
(Publicado na Revista Arquipélago, do IEL/RS)

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Marcelo Spalding é formado em jornalismo e mestrando em Literatura Brasileira na UFRGS, vice-presidente da Associação Gaúcha de Escritores, editor do website Veredas, autor dos livros infanto-juvenis 'As cinco pontas de uma estrela' e 'Vencer em Ilhas Tortas', membro do grupo Casa Verde, colunista do Digestivo Cultural e participante de algumas antologias de contos. Profissionalmente dirige a msmidia.com, empresa de informática e comunicação há 5 anos no mercado. Em 2000 lança o livro As Cinco Pontas de uma Estrela, então com 17 anos.
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