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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Sertão de todos nós (Pedro Salgueiro*)

Jornal O POVO (10.11.2010)



Fui, sou e serei, para sempre, apenas um sertanejo exilado no litoral. Nada aqui me diz respeito, por aqui tudo é transitório, passageiro... Apenas espero a triste hora do alegre regresso. Aos trinta, por puro esnobismo, comprei gaiola na última linha do oceano. Cuidadosamente de costas pro mar, pra que toda manhã pudesse desdenhar meu asco de pequeno-burguês físico mas nunca mental. De lá pra cá andejo em linha reta rumo aos Inhamuns. Aos quarenta atravessei a fronteira imaginária da 13 de Maio, linha simbólica de todas as Fortalezas. Em sentido contrário aos tolos, tontos suburbanos mentais. Meu voo é de avoante ferida, com tiro de chumbo nas c’roas do rio Acaraú, nas quebradas do Riacho do Gado, por trás da Barra da Oiticica, de lado da Caconha de todos os loucos. Pois em cada quarto de qualquer família pulula um doidinho de testa quadrada, encarnado de sangue da abelha Capuchu... Enquanto o Diabo, rosianamente, redemoinha no terreiro. Gracianamente seco, corre meu sangue pelas veredas pedreguentas do Carão. Do outro braço, o direito, o sangue das tristes Oliveiras, dos tontos bons da Curimatã, do Jumentão da Maravilha. Apenas quando se estende pelas estradas do Canindé, as palavras vão escasseando, até quase sumirem da voz. Água evaporando na língua morna de todos os nós. De marejado apenas os olhos, único órgão úmido do sertanejo que volta. Sou filho, pelos dois lados, da primeira geração que saiu do campo, que desbravou a cidadezinha no pé da Serra das Matas. Não sou filho de matuto urbano, mas de matuto dos matos, de pés rachados na urina do lajedo quente. Meu pássaro é o Camiranga de beira de caminho, comedor de Cassaco e Tejubina de grota. Meu ouvido é de rabeca triste cantada por cego em final de feira. Minha casinha é branca, de parede grossa, quase na sombra de uma Jurema imaginária. Mesmo longe de nosso chão, formamos confrarias de quase surdos-mudos. Apenas olhamos para o nascente a perscrutar chuva. E quando ela vier, é certo que vem, virá sempre, um dia. Já nos encontrará de mãos trêmulas e mala pronta.

* Pedro Salgueiro é cearense de Tamboril. Publicou O Peso do Morto (1995), O Espantalho (1996), Brincar com Armas (2000), Dos Valores do Inimigo (2005) e Inimigos (2007), todos de contos; além de Fortaleza Voadora (2007), de crônicas.
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quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Vazio (Ronaldo Monte)

Já disseram antes de mim, mas é como estivesse dizendo pela primeira vez: na medida em que envelhecemos, o mundo vai ficando cada vez mais vazio. Cada morte de um amigo nos deixa uma parte do mundo em escombros, como a explosão de um obus. Hoje, meu mundo ficou mais vazio. Mais um pedaço de sua construção ficou em ruínas. Morreu Luís Martinho Maia. Maia será lembrado por muitos pelo mestre que formou gerações de psicanalistas na Paraíba. Será lembrado por muitos dos que beberam de sua sabedoria nas salas de aula do Departamento de Psicologia da UFPB. Mas só os que provaram da sua amizade poderão avaliar o verdadeiro sentido da sua perda. Cada um, certamente, se lembrará com carinho de um ou muitos momentos de intimidade com o Maia. Eu tenho muitos momentos desses gravados na memória. Um deles, porém, me volta sempre à lembrança, como a maior oferta de cuidado que se possa receber de um amigo. Eu e Glória tínhamos perdido um filho com três anos e meio de idade. Foram muitos os amigos que cuidaram de nós nesse momento de franco desespero. Mas foi o Maia que fez por nós o que a dor nos impedia de fazer. Ele estava em nossa casa e acompanhou todo o nosso esforço em acalmar e botar para dormir o nosso filho mais novo. Então, ele tomou o menino nos braços, foi com ele para a calçada e lá ficou até que o nosso filho parou de chorar e dormiu. É esta lembrança que me enche os olhos de lágrimas agora, em que tento escrever esta homenagem ao amigo morto. É esta lembrança que torna o meu mundo menos vazio, mesmo com o desaparecimento do amigo. E será esta lembrança que me salvará todas as vezes em que eu me sentir vazio de amigos.
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