1. O Jogo Verbal
Em seus mais recentes livros, Nilto Maciel tem se revelado um explorador irrequieto do estilo na prosa de ficção, justificando-se o interesse da crítica por algumas dessas bem sucedidas experiências. Partindo de consciente domínio do instrumental lingüístico, observa-se que esse procedimento vem se realizando dentro de um jogo verbal em que, usando os componentes da linguagem tal como estes se organizam no sistema expressivo convencional, subitamente o escritor rompe com esse eruditismo vernacular, definindo-se por arranjos estilísticos efetivamente representativos da sintaxe coloquial, em consonância com as variantes culturais dos seres projetados no espaço da ficção.
Portanto, ora manipulando a prosa bem comportada, obediente às lições dos clássicos da língua portuguesa, ora reproduzindo o estilo brasileiro e lhe enfatizando as cambiantes dialetais, é assim que Nilto Maciel se apresenta em Os Varões de Palma, em mais um passo ascendente na área da longa ficção. Para desenvolver a escritura artística estereotipada, dobrando-lhe a sisudez castilhiana com impregnantes diásporas estilísticas, duas conquistas se fariam necessárias: o conhecimento metódico da sintaxe literária e a noção de ritmo e cromatismo sonoro. E esses recursos aparecem em situações múltiplas nos textos anteriores do ficcionista e poeta Nilto Maciel.
Para estabelecer esse contraste entre o uso sistemático da linguagem e a prática de expedientes inovadores da escritura artística, já não se precisa recorrer às lições de um Gustave Flaubert e dos irmãos Edmond e Jules de Goncourt, como teria feito Oliveira Paiva. Entretanto, não se pode ignorar que a técnica para obter esses impactos sugestivos e plásticos se consolidou na prosa de ficção desses três escritores franceses1, recebendo significativos acréscimos nos romances de mar e floresta do norte-americano James Fenimore Cooper, em que Harold C. Martin conseguiu identificar múltiplos pés iâmbicos e anapésticos e colisões mais intensas a gerarem vibrações rítmicas em cláusulas predominantemente simples.2
Em dois ensaios, que presumo integralmente vistos por menos de vinte leitores e hajam motivado a curiosidade de pouco mais de cinqüenta manuseadores de primeiras páginas3, detive-me longamente na apreciação desses procedimentos formais renovadores do estilo na prosa de ficção, concluindo amargamente pela inutilidade do esforço. Com exceção de generosa referência ao método aplicado4 e de um comentário estimulador5, mais nenhum crítico deste país se arriscou a invocar em seus livros tais subsídios à chamada “estética de recepção". Daí a certeza de que, insistindo em analisar esses mesmos aspectos na prosa de Nilto Maciel, estaria contribuindo para reduzir o número de consumidores de Os Varões de Palma.
Nesta experiência de ficção, Nilto Maciel também desperta o interesse pela questão do ponto-de-vista ou processo de condução da narrativa. Igualmente frustrado na análise desse recurso técnico e ofendido pelo silêncio aniquilador, ainda assim, se tivesse que discorrer em torno da voz do protagonista-narrador ou observador em Os Varões de Palma, insistiria na mesma tecla, reproduzindo o que ficou escrito em A Estrutura Desmontada sobre Machado de Assis, William Faulkner, Francisco Ayala, Samuel Beckett, Malcolm Lowry e Alain Robbe-Grillet. Em acréscimo, alinharia algumas das colocações feitas por Stephen Ullmann a respeito da construção ficcional de Novembro, de Flaubert (1842), porque, tal como nessa novela marcada pelas antecipações formais, em Os Varões de Palma o narrador é também o "chief protagonist" na história6.
A confirmação do bipartite view no desenvolvimento da narrativa se dá logo no cap. I. Fracionado em dois segmentos, no primeiro, estruturado em linguagem impessoal, a voz dominante é a do protagonista-observador a descrever a cena da comemoração do aniversário de dona Perpétua. No segundo, ao serem adotadas as formas pessoais "disseram-me" e “de minha parte", ocorre o envolvimento do expectador, que se transforma em protagonista-narrador, recurso praticado por um Flaubert, mas certamente com espanto dos seus contemporâneos. Em 1925, na Tragicomédia de un hombre sin espiritu, Francisco Ayala chegou a usar três modalidades de ponto-de-vista, o tripartite view, considerando-se o bipartite view de Nilto Maciel um bom avanço em montagem ficcional.
No andamento de sua narrativa, Nilto Maciel suscita, de imediato, duas indagações: uma envolvendo o espaço (situação geográfica de Palma) e outra se relacionando com o tempo em que a ação fora testemunhada pelo protagonista-observador ou participada pelo protagonista-narrador. Na justificativa preambular do argumento do "Tema del traidor y del heroe", Jorge Luís Borges deixava abonada essa técnica de urdidura ficcional, com as situações de espaço e tempo figuradas enigmaticamente, ao escrever:
"La acción transcurre en un país oprimido y tenaz - Polonia, Irlanda, la república de Venecia, algún estado sudamericano o balcánico... Ha transcurrido, mejor dicho, pues aunque el narrador es contemporáneo, la historia referida por el ocurrió al promediar o al empezar el siglo XIX. Digamos (para comodidad narrativa) - Irlanda; digamos - 1824”.7
Na análise desse mesmo conto, Robert Scholes não somente admitia como regra esse procedimento técnico na prosa de ficção, como adiantava algumas observações relacionadas com a perspectiva e linguagem do ponto-de-vista (narrator’s viewpoint). E acrescentava que, apesar de sua brevidade, essa história consistia de enredos ou separadas linhas de ação, em que o mesmo narrador, que poderia chamar-se Borges (assim grifado para distinguí-lo do autor Borges) se confundia com o protagonista Ryan, o homem a quem havia sido imposta a tarefa de escrever uma biografia.8
Sendo múltiplos e dispersos os fragmentos existenciais que o ficcionista se propõe remontar, organizando a linguagem de modo que, reconstituindo situações incidentais ou situando-se como personagem do próprio contexto narrativo, termine por gerar a ilusão de realidade, do fato acontecido, haverá de convir-se que essa atribuição foi cabalmente exercida por Nilto Maciel em Os Varões de Palma. E assim, tem-se de reconhecer que esse poder de criar ou recriar impressões, de forjar intrigas ou relações humanas, de envolver o leitor no curso da linha de ação artificiosamente armada ou reproduzida, vem se revelando uma das características mais acentuadas desse produtor de ficção.
No cap. II, cuja seqüência enfoca uma das caminhadas madrugadoras do coroinha Raimundinho, na fabulação dos incidentes motivados por esse singular habitante de Palma os semantemas “a intendente" e "a intendência" podem ser tomados como marcos temporais, situando o acontecimento num cronológico "canto de galo" anterior a 1921. É que intendente era a "designação dada, até pouco depois de 1920, aos chefes do poder executivo municipal, hoje chamados prefeitos."9 E, efetivamente, a figura do intendente deixava de existir no Estado do Ceará ao ser promulgada a sua Constituição de 4 de novembro de 1921, definindo seu artigo 86: "São órgãos da administração municipal: 1o. - a Câmara como corporação deliberativa; 2o. - o Prefeito, como chefe do executivo".10
Incorporando à sua ficção remotas e fragmentárias notícias da "guerra dos bárbaros" ou elevando à condição de personagens os remanescentes das tribos jenipapo, canindé e paiacu, populares habitantes de Palma, Nilto Maciel vagueia pelo filão épico que mais contribuiu para a perpetuidade de José de Alencar, e o que é importante, sem absolutamente nada lhe tomar de empréstimo. Em fluxos que vão atemporalmente se integrando ao eixo da narrativa, põe o ficcionista o velho Jacinto a falar das lutas de sua nação jenipapo contra os regimentos dos paulistas, carregando de heroísmo as memórias do contador de lendas. E tudo fantasia, porque, na realidade, para assegurarem a posse de imensas conquistas sesmariais convertidas em monstruosos latifúndios, os paulistas é que mandaram contingentes nativos inteiros "para a terra-dos-pés-juntos”.
O ficcionista parece haver se inspirado no Apocalipse para urdir os incidente que simultaneamente se desenrolam no interior da igreja (o sacerdote dizendo a missa) e, contrastando com o ato religioso, a presença de “uma égua lá fora", adorada como o bezerro de ouro de Arão. Tal como definiu um enciclopedista11, essa versão apocalíptica se dá com revelações, simbolismo, misticismo, concepções obscuras, mas tudo impregnado de muita poesia. Diante das atitudes iconoclastas e libertinas dos homens a dez metros de Deus, o "padre Inácio suspirou tão fundo que duas ou três velas se apagaram, uma galheta cheia de vinho virou, as páginas do missal se agitaram e o barrete levitou, para permanecer, entre sua calvície e os anjos do teto, por uma eternidade".
O fotógrafo Félix da Penha, que manejando seu equipamento de trabalho eternizara esse histórico dia de Palma, e segurando a bíblia "prenunciou o fim dos tempos da raça humana", realmente aludia ao Apocalipse, a rilhar os dentes e a bater fotos da "divina égua, bendita potranca, fêmea misericordiosa, jumenta celeste", ante a reprovação do padre Inácio, a gritar: "isto é pecado!" Ver-se-á, logo adiante, que no episódio da égua estava o embrião da estratégia de um levante. E tudo contado em estilo picaresco, como nesta revelação: "Entusiasmado com a descoberta de Joaquim, o ideólogo e estrategista Jacinto desenvolveu a teoria da credulidade troiana, daí em diante posta em prática por inúmeros capitães vitoriosos, como consta dos anais das guerras".
A flexibilidade do processo narrativo e o uso adequado do instrumental lingüístico fazem de Os Varões de Palma mais uma experiência afortunada de Nilto Maciel. Só pelo visto, deu para conferir que seu estilo é mesmo de prosa de ficção, investindo-se as palavras, semantemas ou significantes da condição necessária para atribuir credibilidade às suas invenções de realidade. Diante dessa consistência expressiva, será difícil admitir que Palma não tenha existido, que os episódios novelescamente reconstituídos não aconteceram e que as personagens integrantes dessa sociedade de estrutura simbólica não hajam sido tipos humanos dentro das devidas proporções existenciais. Ao acreditar na veracidade das tramas que se operam nesse mundo arquitetado e indefinidamente reconstruído por essa casta de fabuladores, o leitor estará plenificando tudo isso e dando por aceita a verdade da ficção.
Bibliografia:
1) - ULLMANN, Stephen. Style in the French Novel. Oxford, Basil Blackwell. 1964, p. 94 e segs.
2) - MARTIN, Harold. Style in Prose Fiction. New York, Columbia University Press, 1967, p. 118-119.
3) - NASCIMENTO, F.S. - A Estrutura Desmontada. Fortaleza, IUC, 1972 e Três Momentos da Ficção Menor. Secretaria de Cultura, 1981.
4) - MONTEIRO, José Lemos. O Compromisso Literário de Eduardo Campos. Fortaleza, Secretaria de Cultura, 1981, p. 51.
5) - LUCAS, Fábio. F.S. Nascimento (e) A Estrutura Desmontada. In Colóquio, N.º. 12. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1973, p. 102.
6) - ULLMANN, Stephen. Op. cit, p. 101.
7) - BORGES, Jorge Luís. “Tema del Traidor y del Heroe”. In Ficciones. Madrid, Alianza Editorial, 1972, p. 141.
8) - SCHOLES, Robert. Elements of Fiction. New York/London, Oxford University Press, 1968, p. 27 e 84.
9) - HOLLANDA, Aurélio Buarque de. Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1969, p. 680.
10) - PINTO, Guilherme de Sousa. Anuário Estatístico do Ceará (para 1925). Fortaleza, Tipografia Moderna, 1929, p. 12.
11) - SEGUIER, Jayme de. Novo Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro. Porto, Lello & Irmão, 1947, p. 1276.
(Prefácio de Os Varões de Palma)
2. A Arte Narrativa
Com o advento da revista cultural O Saco em abril de 1976, reconhecidamente o mais audacioso projeto editorial da época no Ceará, a jovem intelectualidade da terra ganhava o espaço gráfico reclamado para o exercício de sua criatividade, fazendo literatura e desenvolvendo suas aptidões artísticas. Comandado por Manoel Raposo, Jackson Sampaio, Carlos Emílio Correia Lima e Nilto Maciel, o empreendimento tornou-se responsável pela afirmação de poetas, ficcionistas e ensaístas hoje com acesso aos suplementos literários e demais publicações de âmbito nacional, o que autoriza dizer que O Saco fez em sua meteórica existência o que outros órgãos do gênero não têm conseguido realizar em dezenas de anos.
Tendo aparecido em 1974 com um Itinerário de breves narrativas, Nilto Maciel já revelava certas inquietações formais nos textos inseridos em O Saco, configurando-se tais procedimentos estilísticos nas produções “Avisserger Megatnoc” (contagem regressiva) e “Detalhes interessantes da vida de Umzim”. Em 1980, submetendo-se ao “Concurso Livreiro Edésio”, promovido pela Livraria Alaor, Nilto Maciel ficava entre os mais votados da competição literária, obtendo o segundo lugar para “A odisséia de Carlos Mago”, ordem mantida na antologia 10 Contistas Cearenses (Fortaleza, 1981). No mesmo ano de 1981, a Secretaria de Cultura e Desporto do Estado editava Tempos de Mula Preta, premiando um talento da nova geração cearense em plena ascensão criadora.
Contos, cenas do cotidiano, crônicas e outras modalidades de experimentação da escritura artística, eis o inventariado em Tempos de Mula Preta. Na diversidade das 28 narrativas, projeções existenciais e invenções poemáticas ficava a certeza de que Nilto Maciel buscava uma característica pessoal de contar. E era justamente isso que estava prestes a se realizar. Com a publicação de A Guerra da Donzela (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1982), o ficcionista assumia a linguagem procurada, exercendo-a nessa novela com os atributos formais e plásticos inerentes à modernidade da prosa de ficção. Numa análise pródiga de achados, o crítico e também novelista José Lemos Monteiro ressaltava todas essas singularidades, concordando com a evolução técnica do seu prefaciado.
A partir de A Guerra da Donzela, Nilto Maciel se incorporaria definitivamente a uma restritíssima companhia de artífices da escritura literária, fazendo uso do estilo fracionado, mecanismo formal empregado com êxito por uma minoria de ficcionistas. O que escrevi sobre Durval Aires em A Estrutura Desmontada (cap. “Peculiaridades da sintaxe fracionada”), aplicaria hoje ao seu discurso narrativo, embora ainda reconhecendo o novelista de Barra da Solidão e Os Amigos do Governador mais preciso no corte da frase. Mas para Nilto Maciel um confronto dessa natureza, seja com Durval Aires ou com o Oswald de Andrade das Memórias Sentimentais de João Miramar, não deixa de ser altamente positivo e honroso.
De Tempos de Mula Preta (1981) para Punhalzinho Cravado de Ódio (Fortaleza, Secretaria de Cultura e Desporto, 1986), o avanço do contista ficou bem evidenciado, tanto na manipulação da linguagem, como no tratamento ficcional dado aos episódios reproduzidos. Não constitui função do crítico exigir que o poeta, teatrólogo ou ficcionista escreva desta ou daquela maneira, competindo-lhe tão-somente ajuizar os aspectos estruturais ou estilísticos que lhe pareçam mais significativos ou menos relevantes. E é gratificante afirmar que a lição se aplica a qualquer uma das 24 narrativas que integram a coletânea em apreciação, vendo-se predominarem os elementos de modernidade da fala sobre as matrizes filológicas que o ensino gramatical conseguia infundir, especialmente nos bons alunos da escola média.
No conto “A Arca”, por exemplo, nota-se uma incidência mínima de preciosismos verbais. Só o estritamente necessário para neutralizar a abundância de construções paratássicas ou coordenadas, e estas por vezes fragmentadas. Já em “A Desilusão de Jonathan Swift”, a linguagem se limita aos mecanismos da ficção tradicional, verificando-se um excesso de tempo objetivo no desenrolar da fabulação. Em “A Lenda de um Reizinho”, as reflexões exóticas não chegam a edificar-se em conto, parecendo intenção do autor ficar aquém do deslinde, onde os ingredientes reveladores da condição humana encerram nuanças, medidas e valores atinentes com a realidade contingente. Explorando a sua visão cósmica, Nilto Maciel escreveria ainda “Apocalipse”, “Mimo”, “O Fogo e a Luz”, “O Manuscrito de Yellah”, “O Oráculo”, “Santo Yan” e “Teoria da Desfiadura”.
Em “Assim seja”, da onisciência do narrador tinha-se a montagem de cenas da vida de Hélio Figueira, ascendentes e descendentes, e da mulher Selenita, reafirmando-se a tendência de Nilto Maciel para a síntese verbal quando na manipulação do conto. No distraimento deste gênero, vê-se o escritor modificar o tratamento lingüístico, detendo-se em reportagens imaginárias como “Esses abraçadores da morte”, em que desenvolve sua espirituosidade relatando a idéia fixa do zoólogo João Formiga Filho em torno da gênese e do comportamento dos tamanduás. Em sua pesquisa bibliográfica, Nilto Maciel cita nomes e obras de famosos cientistas estrangeiros que se ocuparam da fauna nacional, valendo aqui referir um deles, J. E. Walppoeus, autor de uma Geografia Física do Brasil (Rio, Tip. de Lauzinger & Filhos, 1884), a que também recorro em meu Quadrilátero da Seca (inédito).
Sem a estrutura do conto moderno, tendendo mais para o cenário do romance of the forest linguisticamente sofisticado por Guimarães Rosa, a narrativa “Gesta do Jaburu” está definida no próprio título. Realmente uma gesta, de interesse sociológico, em que o autor reproduz sentimentos e hábitos guerreiros do coronelismo sertanejo. Desse ambiente de saga, Nilto Maciel transfere seu enfoque para outros episódios da condição humana, e seguem-se os contos “Insensatez”, “Moisés e o mundo”, “O grande jantar”, “O pecado genial do dr. Ípsilon”, “O problema fundamental da existência” e “O sonho do meliante Guimarães”, todos de agradável leitura.
Em "Punhalzinho cravado de ódio", finalmente, o narrador assume função parecida com a do camera-man, seguindo os passos, detendo-se em contornos físicos e captando gestos indicadores de reações psíquicas da personagem. A seqüência móvel, que se desenrola no tempo presente, se enquadra no que em seu livro The Nature of Narrative Robert Scholes classificou de eye-witness (olhar do espectador), processo pelo qual se gravam as formas concretas e se registram os procedimentos anímicos que as circunstâncias determinam. Dessa projeção instantânea, visualizável e sensorialmente perceptível, o narrador estabelece o retorno ao passado, transição em que fica definido o tipo de relacionamento de Anazinha com os moleques do Pirambu, suas predileções ocupacionais e seus ódios armazenados. A cena do punhalzinho acontece numa atmosfera mágica, sem nenhuma concessão explícita.
Da leitura deste recente livro de Nilto Maciel fica a impressão de que a sua versatilidade atende a um jogo calculado na elaboração da matéria fictiva ou contingencial. Isso leva a admitir que sua inquietação criadora persistirá, resultando em futuras coletâneas de narrativas marcadas pela força do seu talento e pela instrumentalidade de sua linguagem. Há poucos dias uma veneranda personalidade acadêmica local dizia não acreditar em literatura jovem. E justamente pela fé que deposito nos escritores novos, no prefácio de 10 Contistas Cearenses animava-os a prosseguirem suas experiências na área da curta ficção, até que algumas de minhas observações críticas viessem a ser redargüidas pela própria qualidade dos textos que chegassem a produzir. E, dentre esses moços, estavam Airton Monte, Nilto Maciel e Nilze Costa e Silva, hoje realizando uma obra literária cheia de ousadias formais e plenamente engajada na realidade do seu tempo.
(Suplemento Literário Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, 25/4/1987)
3. Os Guerreiros Utópicos
Em sua mais recente novela – Os Guerreiros de Monte-Mor, Nilto Maciel renega os modelos da ficção histórica tradicional, estabelecendo a modernidade estrutural através da montagem de cenas atemporais. Na descontinuidade cronológica, o cair de folhas do calendário deixaria de ser um movimento diacrônico, seqüenciado –, dias, meses, anos e décadas –, para se converter num tempo livre, em que a ação se projeta em flashes reconstituídos pelo narrador.
O cenário é de saga, aí se rememorando lendas, combates utópicos e proezas imaginárias das nações jenipapo, canindé e quixelô. O herói das primeiras cenas, o menino João da Silva Cardoso, emerge como ativista dos "sonhos estrambólicos" de Antônio, o pai, a declará-lo "nascido para guerras e descobertas". A personagem se acha consistentemente tipificada, lembrando em suas danações "geniais" a impulsividade desconcertante enfatizada pelos mestres do picaresco. Conhecidas as facetas mais estapafúrdias de Joãozinho, a voz do narrador se transfere, retroativamente, para os intentos visionários do feitor de sesmaria e capitão de regimento Antônio da Silva Cardoso.
Para reproduzir simbolicamente a saga dos remanescentes nativos do Canindé, dos sesmeiros, jesuítas e capuchinhos que se introduziram nessas paragens do Ceará colonial, Nilto Maciel teve, obviamente, que folhear o melhor da bibliografia relacionada com esse período histórico, vigiando-se para não realizar a mera descrição dos fatos da época. E, efetivamente, o estilo de ficção, dinâmico e gerador da ilusão de vida e de conflitos existenciais, é que se verifica predominar nas páginas de Os Guerreiros de Monte-Mor.
O agregado rural, com pequena lavoura de subsistência em terra de sesmeiro especulador, é revivido por Antônio da Silva Cardoso, que, em sua arrogância belicosa, aspira desencadear a guerra mais esperada e prolongada: a da reconquista do território invadido e assenhoreado pelos homens brancos. Para isso, "fazia tenção de arregimentar não sabia quantos terços de caboclos, cafuçus, sararás. Quem quisesse inchar nas apregatas e tocar fogo no reino". Na afoiteza imaginária do capitão Antônio da Silva Cardoso, "a luta ia recomeçar, com o mesmo espírito dos antigos, para vingar os mortos à traição, retomar as terras e expulsar os lordaças".
O linguajar atribuído ao descendente da nação jenipapo exprime fidedignamente a lexicografia fluente no período enfocado por Nilto Maciel, quando o poder armado desempenhava as suas funções através dos terços e regimentos, e as autoridades urbanas eram chamadas de alcaides e almotacés. Fiel aos seus impulsos revolucionários, Antônio "não aceitava ser instruído para soldado de padres e portugueses. Havia de ser ainda um guerreiro. Na sua cabeça vagava o sonho de expulsar padres, sesmeiros, soldados, todos os estrangeiros. Voltar à vida livre da mata, ser índio como os antigos, perdido no meio daquela serra verde".
O tempo muda em Os Guerreiros de Monte-Mor com a figura de Joãozinho a reascender ao plano central da narrativa. Mas, embora considerado herdeiro das fantásticas idéias do capitão Antônio da Silva Cardoso, sua individualidade é que predomina, a anunciar a revolução nativista, a falar de um exército invencível e de uma infantaria voadora de morcegos. A esse quadro de rebeldias imaginárias, não faltariam ingredientes ideológicos mais fortes, evocando-se as lições da Inconfidência Mineira e da Revolução Francesa.
A saga visionariamente arregimentada por Antônio da Silva Cardoso prosseguiria em estado de guerra no vociferar de João, que transferiria a Pedro a missão de restabelecer o domínio das etnias originárias. Seria o rei do venturoso país dos jenipapos, criado sob o signo da aventura, com poderes de herói, e já inspirado nos anseios nacionalistas da Confederação do Equador.
Com a prosa absorvente de Os Guerreiros de Monte-Mor, Nilto Maciel assinala mais um triunfo como ficcionista, reproduzindo com bastante força criativa a saga dos remanescentes indígenas do Ceará. Seus heróis quixotescos se mostram bem caracterizados, igualmente convencendo as guerras imaginárias urdidas contra a dominação portuguesa e as ambições da classe sesmarial. A novelística histórica ganha, assim, mais uma significativa contribuição, com lampejos de modernidade, não obstante a contemporaneidade de suas personagens com os tipos alencarinos de Iracema e O Sertanejo.
(Revista Literatura n.º 1, Brasília, janeiro de 1992)
(Reunidos, os três estudos foram publicados no livro Apologia de Augusto dos Anjos e Outros Estudos, UFC, Fortaleza, 1990, págs. 177/186)
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