Um dia, em plena lua-de-mel, ela amanheceu de cara fechada para o marido. Durante o café só abriu a boca para o leite. Nem biscoito quis. Não sentia fome. Indisposta. Ele insistia, ela recusava. Ele amável, ela áspera. Não, não se tratava apenas de inapetência. Falasse a verdade, deixasse de mistérios.
E ela contou o sonho horrível. Flagrava o marido com outra, no maior amor. E ainda riam da cara dela.
Ele riu, gargalhou. Que tolice acreditar em sonho! A mulher mais parecia criança. Pessoa de mentalidade atrasada.
Durante o almoço, ela conversou muito e comeu como nunca. Quis até biscoito na sobremesa.
À noite, quase não dormiram. Sonhos, só os de sempre: ela e ele. E acordaram amáveis, apetitosos, cheios de disposição, sem um só mistério nos lábios.
Passada a lua-de-mel, o sonho horrível se repetiu. E ela de novo amuada, a xícara de leite diante dos olhos mudos. Mistérios, mentiras, discussão.
Ele gargalhou, se engasgou, quase vomitou. Não concebia ter casado com mulher tão tola. Se fosse analfabeta, uma pobre camponesa, uma vassala medieval, dava-lhe até razão.
Ela chorou, não quis mais sequer o leite. O marido não a compreendia. Se soubesse quem ele era, não teria casado.
Compadecido, ele deixou de rir, pediu desculpas. Ela não tinha culpa de sonhar infidelidades. Sonho nenhum. Estudiosos, psicanalistas, Freud, Jung, fulano e sicrano, ninguém ainda conseguira revelar o misterioso mundo do sonho. Talvez coubesse a ele, o marido, a glória dessa revelação. Se ela, a esposa, tivesse mais confiança nele, contasse tudo, todos os sonhos. Futuros e passados.
Quando menina, sonhava brigas, safadezas, castigos. Acordava com raiva da irmã, nojo do coleguinha, ódio da mãe.
Cresceu e nada mudava. Vivia brigando, discutindo, arranjando inimizades. Chamavam-na de menina problemática. Doida até.
Depois da confissão, viveram em paz por dias e meses seguidos. Toda manhã ela contava sonhos para ele. Riam, pacíficos, civilizados e apetitosos. Ele, porém, nunca contava sonho nenhum. Não sonhava ou não se lembrava dos sonhos.
Numa dessas manhãs, ela acordou de cara fechada para ele. De biscoito nem queria saber. Derramou o leite. Patife, bandido, safado! Ele também se exaltava. Maluca, sonhadora, problemática!
Mesa posta: xícaras, copos, pratos, garfos, facas — tudo luzidio, intacto, perfeito. Como num sonho de fartura e felicidade. Ela empunhou uma faca pontuda. Ele arregalou os olhos. Ela continuou a xingar. Não suportava mais tanta infidelidade. Traidor, adúltero, marido perverso!
A faca reluzia na mão trêmula. Havia ódio nos olhos dela. Não sentia fome? De jeito nenhum. Nem para um biscoitinho? Não, muito indisposta. Ele insistia, ela recusava. Falasse a verdade, deixasse de mistérios.
Flagrara o marido com outra, no maior amor. E ainda riram da cara dela.
Ele riu, gargalhou. Que tolice acreditar em sonho! Não concebia ter casado com mulher tão tola.
Ela empurrava a cadeira para trás, furiosa, faca em punho. Bandido, traidor, safado! O leite transformava-se em sangue. Não podia haver amor onde havia traição.
Sonho desfeito.
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