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sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Amém (Belvedere Bruno)

















A cada filho que partia, ela dizia amém. O que pensaria acerca das mortes sucessivas? Nunca entendi o porquê de tanto amém. Nenhum pranto ou desespero. Só conformação. Rememoro a face de cada um que se foi, os túmulos, as flores, a perplexidade dos que ficaram.
Um véu negro sobre a cabeça, os améns sem lágrimas, o olhar impassível; e a entrega plena retratada tão-somente no desfiar de rosários.
O tempo passava e sua existência seguia numa sucessão de rotinas vazias. O único filho que lhe restara era o elo que a mantinha, mesmo que de forma frágil, ligada à vida.
Onde guardara a dor e as indagações reprimidas?
Quando o último filho partiu, tudo transcorreu da mesma forma. Apenas quis que a deixassem só após o sepultamento.
Naquele dia, foi como se o seu coração se partisse feito uma taça de cristal jogada ao chão, e cada estilhaço representasse as tristes e sempre represadas dores de sua vida.
Chegando em casa, sentou-se na cadeira da varanda e, olhando para o céu, esboçou um sorriso. Nas mãos, tinha o véu envolvendo cuidadosamente o rosário. O semblante parecia, enfim, pacificado.
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terça-feira, 25 de novembro de 2008

Lobisomem (Clauder Arcanjo)



Sete nós na camisa, às avessas. Na noite de lua cheia, sem pressa. No breu da noite, na encruzilhada das veredas, o uivo da transformação. Espojando-se na terra ainda quente, descorado que nem flor de jerimum. Na casa-grande, sob os lençóis molhados, Francisquinha, com o corpo trêmulo de vontade, sonha com o corpanzil peludo e com aquelas garras a rasgar as suas carnes frescas e libidinosas. À meia-noite, a tramela da janela ringiu, e uma jovem de branco rasgou o véu da escuridão da madrugada. Sendo saudada pela canzoada enfurecida. Era junho, e, nas capoeiras, o estralado de cipó falava da farra-coito, libações sanguíneas, do lobisomem com a mula-sem-cabeça. Enquanto isso, no quarto principal da casa-grande, ao pé da Virgem Maria, os pais de Francisquinha, transidos de medo, agradeciam aos céus pela proteção da única, e recatada, filha.
Clauder Arcanjo — Professor clauder@pedagogiadagestao.com.br
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sábado, 22 de novembro de 2008

O velho, a velha e o violino (Viegas Fernandes da Costa)



Hoje as lembranças estão confusas e as pernas se enroscam em um tango solitário. Escuto as notícias do dia ao longe, mantra de sangue onde mergulham meus olhos; as mãos, suspensas no ar, caçando suspiros perdidos no éter. Quero parir o poema dorido abortado nos lábios - poema suspiro! Encontro-o na placenta do mundo; ao fundo, as cordas desafinadas de um violino que um dia vi tocado numa praça em Curitiba: dedos rugosos esgravatando sons num tempo conhecidos por aqueles ouvidos setuagenários e que por hora reconhecem apenas o tilintar das pobres moedas ao prato. E a chuva lava meu dia.
Hoje procuro o verso urbano que aquela senhora pendura à sacada: o verbo grafado nos olhos que buscam ao cio. Quero subir as escadas, bater-lhe na porta; a estrada, no entanto, devolve-me à praça e ao violino desafinado e infestado de cupins: gargalha a boca de moles gengivas ao som dos gemidos do arco às cordas. Que toca, desejo saber? Inaudíveis sinfonias, reconhecidas apenas por si. E dança a velhinha a polca imaginária: rotas chinelas, gretados os pés. Carrega consigo tão alvos cabelos, tão pobre vestido, tão poucos desejos. Mira seu homem que toca contente, ternura e lembrança do amante de ontem. Para onde migrarão, depois, tão flácidos corpos? À cama de tábuas, ao estrado de palha?
Busco o alento nas pias batinas ou sob o hábito da freira que me sorri todas as manhãs: os olhos devassos, as mãos e o rosário. É tenra. Escuta minha pele, arranha minha alma; amor nervoso às sombras dos muros. Não é o caso, agora; é claro o dia e os muros, iluminados, refletem sombras passageiras e apressadas. A polca, meu deus! A polca, das pernas de canelas tão finas! Como dançam as pernas e os braços que abraçam o vazio! É praça, e há toda esta multidão de juízes que reconhece a loucura ao ritmo de palmas, balança a cabeça e abandona centavos. Pálida razão de multidão que pasta em nossas cidades.
Há sempre uma história e muitos destinos: violino encontrado na lata de lixo. Sim, e a lembrança das notas fluídas em som, por que não? Arco improvisado, cordas choradas; e a velhinha que chega curiosa, escuta e entende que o dia chegara: há amores tardios. Assim, três eram os destinos - o velho, a velha e o violino - estes que vejo em minhas lembranças confusas. Estão aqui, neste banco que buscam meus olhos, nestes pombos que ciscam o chão, ainda que praça vazia, ainda que mortos se vão. Estão aqui, as mesmas mãos carinhosas, de senhora, que domaram seu rosto magro, tomaram seu corpo ralo, ensinaram-lhe o amor. Por isso sorri o sorriso de velho maluco? Não, de velho feliz, suponho, que conheceu a quentura de dormir abraçado e do passado lembra apenas os muitos violinos que seus dedos já tocaram. Não o reconhecem os músicos da filarmônica por trás de toda aquela barba, por trás de todo aquele riso. Siso, esperam sempre os que de sério se supõem. Não o reconhecem, portanto, em toda aquela praça tão sua, naqueles trapos tão seus. Passam senis, com suas tubas e flautas, suas cordas e percussões, ensimesmados e murchos, olhos no palco buscando aplausos, no anonimato da razão e do conjunto da orquestra. “Quem vai lá - perguntam alguns - com os cabelos desgrenhados?” “O tocador de tuba” – respondem uns, “O que soa a flauta” – afirmam outros. “Quem está cá?” – indago. “O velho do violino e sua velha dançarina” – sabem todos. Estão identificados na identidade do desvario.
Este verso urbano que sempre vi dependurado à sacada, preso às esquinas, esparramado sob os semáforos, diluído nestas lembranças confusas; viu-o esta que ora dança, e soube tomá-lo. Não o velho que meus olhos enxergam, mas de antanho o músico, dos tempos da tez louçã da atraente mulher que era: primeira fileira, poltrona central, suspiros perdidos no palco, naqueles olhos que nunca a viram, nos nervos atentos à música, o corpo teso na cadeira. Como era bonito então! E bonito lhe parece agora, também, porém seu! Dança-lhe de dia, compartilham o pão, a pobreza e a cama, e o recebe, ela, em seu corpo, tais quais arco e violino seus dedos delicados.
Anseio este poema onde busco enternecer-me: choque no concreto. Anseio piegas de chorar baixinho e sentir o alento do sol. Procurava-no ela: o poema e o profeta que roubara seu futuro. Tomou-lhe neste presente que vejo passar, aleatório e espectral, pelas retinas da memória. É bonita esta história que nunca aprendi a contar, que nunca souberam entender: viam apenas a miséria das roupas, o encardido desta que deveria parecer respeitável barba, o desarranjo do som e a flacidez da sua senhora. Sua senhora, enfim! Era tudo que viam, porém - doença, demência e fome - , esta multidão apressada e aprisionada em sua significância de gado. No entanto, a honra do abandonar do dia quando se punham em marcha aos lares infaustas massas dispersadas nas calçadas – tão cansadas! Recolhia seu caixote e seu instrumento, ele; ela, recolhia seu homem ao peito, e caminhavam lentos para onde minhas vontades nunca me levaram: vaga alusão à tragicômica despedida chapliniana. Andar curvado e claudicante, o dele; de princesa altiva, o dela, que conduz um príncipe fatigado e seu violino sustentando sob o braço.
Hoje as lembranças estão confusas e as pernas se enroscam em um tango solitário! Fujo das notícias embebidas em linfa, dos versos de alcovas, dos prazeres em casta carne sob os muros. Tudo que procuro é o alento deste encontro na praça: o velho, a velha e o violino, que já não estão mais. Como também eu há tanto já não estava. Tantos rostos que passam por esta praça. A alguns pergunto para onde foram, mas ninguém nunca os vira. Àquela vendedora de bonés, sim, que também por aqui andava naqueles tempos, que tanto reclamava dos barulhos do violino que lhe afastavam a freguesia, pergunto sobre o casal e seu instrumento, mas apenas me olha com a surpresa e piedade com que se olha para um louco. Então nunca os houve? Nunca houve esta história daquela moça ainda jovem, tão bonita, que sozinha se sentava na platéia para o admirar amoroso do violinista já maduro? Nunca houve esta história do desencontro e do vazio por tantos anos, e da desrazão senil, o esquecimento, deste músico que certo dia mirou no lixo o velho instrumento carcomido, improvisou-lhe as cordas, e foi tocá-lo à praça, numa Curitiba que nunca conhecera? Nunca houve esta senhora de peles flácidas, vestido pobre, finas pernas, a encontrá-lo e reconhecer sob tanta barba e velhice o homem maduro que nunca deixara de amar? Nunca houve assim, tampouco, a polca ao som indefinível de uma sinfonia inteligível apenas aos ouvidos da sua imaginação? Então nunca sentiu nosso músico o calor da carne, as mãos e o prazer daquela sua bailarina? E o alento que este poema urbano – reescrito a cada novo dia, as mesmas roupas, o mesmo som, a mesma dança – me trazia? Também não houve este alento?
“Queria parir o poema dorido abortado nos lábios” – disse-o. Descobri-me este poema abandonado em meio à praça estranhamente vazia. Da sacada, aquela senhora me abana nudez e promessas. Quero subir as escadas, bater-lhe na porta; a estrada, no entanto, devolve-me à praça e ao violino desafinado e infestado de cupins, às moles gengivas, à polca imaginária da sua senhora. Toca para mim, dança para mim! E a chuva lava meu dia...

Blumenau, setembro de 2005.
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terça-feira, 18 de novembro de 2008

Praga à vista! (Nilze Costa e Silva)



Chegamos à deslumbrante cidade de Praga, conhecida como a Pérola do Oriente e terra natal do famoso escritor Franz Kafka, autor dos badalados livros que li ainda na adolescência: A Metamorfose, O Castelo, América, O Processo e tantos outros. Outra moeda, outra cultura, outra história, outros costumes e valores. 

domingo, 9 de novembro de 2008

Soneto do Eram (Jorge Tufic)



A moldura da infância eram pitangas
esquecidas das telas de Van Gogh.
As cercas eram poucas e distantes,
só meninos brincavam na paisagem.
Desses confins recortem-se os brinquedos
feitos a mão das sobras de meu tio,
construtor da cidade, mestre fino
cujas mãos eram bálsamo e verniz.
Manhãs e tardes vinham para o sono,
bichos falavam, bandolins ao longe
tinham letras, figuras, sentimento.
Deste passado há lendas e mistérios.
Guarda cada um de nós o que lhe cabe
saber das coisas que ninguém mais sabe.
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quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Bilac, um jornalista bom de briga (Adelto Gonçalves)



I
O poeta Olavo Bilac (1865-1918), a exemplo de outros parnasianos, foi condenado ao ostracismo depois que as idéias que redundaram na Semana de Arte Moderna de 1922, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, insufladas pelos ventos que vinham da Europa, afirmaram-se na sociedade brasileira. Seu nome passou mesmo por sinônimo de passadismo, formalismo, oficialismo e alienação. E seus versos tornaram-se alvo de chacotas, tal como a produção de outros poetas que, ao seu tempo, o tiveram como paradigma. De fato, os versos bilaqueanos, hoje, são velharias que só atraem estudiosos e um ou outro leitor interessado em conhecer a história da Literatura Brasileira.
Mas o que, geralmente, não se sabe é que, além de autor de versos grandiloqüentes e enxundiosos, o “príncipe dos poetas brasileiros” foi cronista de excepcionais qualidades. Basta ver que, a partir de março de 1897, foi quem teve a responsabilidade de substituir o genial Machado de Assis (1839-1908) nas páginas da Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro. E o fez com igual brilho, a tal ponto que muitas de suas crônicas parecem mesmo saídas da pena do bruxo do Cosme Velho.
Quem tiver dúvidas já pode compará-las sem ter de remexer papéis velhos nos arquivos, pois o professor Antonio Dimas, da Universidade de São Paulo, acaba de lançar Bilac, o jornalista em que reuniu em dois extensos volumes a maior parte das crônicas bilaqueanas saídas em jornais e revistas do final do século 19 e início do 20. Num terceiro volume, o de menor extensão, com prefácio do professor Alfredo Bosi, o organizador reuniu dez excepcionais ensaios em que mostra que o Bilac cronista pouco tinha do poeta indiferente às necessidades cotidianas, imagem que ficou por conta da revisão histórica comandada pelos modernistas.
Ainda que seus versos possam dar a falsa impressão de que viveria romanticamente nas nuvens, Bilac sempre usou a tribuna de que dispôs na imprensa para expor suas idéias (às vezes, equivocadas) e combater o que entendia que poderia representar entraves ao desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro, então capital da República, e do Brasil.
II
Lembra Dimas que seu objetivo não foi o de atribuir a Bilac múltiplas personalidades profissionais ou versatilidade inesgotável, aumentando-lhe a importância, mas mostrar outras facetas hoje praticamente desconhecidas de quem a história estigmatizara como poeta oficial tão-somente.
De fato, depois de começar a carreira como poeta parnasiano, Bilac como homem público terminaria seus dias como baluarte de causas cívicas de interesse nacional, como a defesa do serviço militar obrigatório, e defensor da reurbanização do Rio de Janeiro e da renovação de hábitos sociais e comportamentos políticos.
Chegou ao ponto, como empreendedor, de criar em Paris uma agência para a divulgação de produtos brasileiros na Europa. Nessa tarefa, aliás, teve a colaboração do médico e também poeta parnasiano Martins Fontes (1884-1937). Depois, magoado com acusações de que se teria valido de recursos públicos para essa tarefa, fechou as portas da agência e retornou ao Rio de Janeiro.
Solidário com seus pares, Bilac nunca deixou de defender o escritor como categoria profissional. Se hoje ainda é comum a existência de pequenos editores que escamoteiam números e adiam o quanto podem a prestação de contas, imaginem o que seria há mais de um século.
A essa época, era famoso no Rio de Janeiro o editor Baptiste Louis Garnier (1823-1893), ou apenas B.L.Garnier, não só pela qualidade dos autores que publicava, mas também porque teria explorado descaradamente escritores como Gonçalves Dias (1823-1864), José de Alencar (1829-1877), Casimiro de Abreu (1839-1860), Álvares de Azevedo (1831-1852) e Aluísio Azevedo (1857-1913), entre outros, a tal ponto que era mais conhecido como o Bom Ladrão Garnier.
Bilac não deixaria de assinalar que a outra editora famosa da época, a Laemmert, não ficava atrás na arte de esbulhar escritores. Estabelecidos no Rio de Janeiro, esses editores europeus, supostamente, passavam-se por beneméritos do ainda incipiente mercado editorial brasileiro.
Numa crônica publicada na revista A Bruxa, em janeiro de 1897, exumada por Dimas, Bilac lembrava que, se outros profissionais, como o sapateiro, o advogado, o médico e o alfaiate, dispunham de leis que lhes asseguravam a plena posse dos seus direitos, não havia sentido em que o escritor continuasse à mercê da vontade ilimitada do capitalista que adquirira, geralmente, por uma ninharia, o direito de publicar em primeira mão a sua produção intelectual, fazendo-o depois indefinidamente à revelia do autor.
Bilac sabia cobrar por seu trabalho para a imprensa à base de colaborações, tornando aquilo uma atividade profissional por quase duas décadas, que se não o tornaria rico, pelo menos servia para cobrir despesas mais prementes, a exemplo do que fizera décadas antes Camilo Castelo Branco (1825-1890) no Porto.
III
Observa o professor Dimas que, das muitas crônicas que Bilac deixou sobre o teatro, a grande maioria incide sobre aspectos práticos e não estéticos, lembrando que o cronista ia quase todos os anos a Paris, de onde trazia como referência o que via nos teatros franceses, cujas companhias, vez por outra, aportavam no Rio de Janeiro.
Homem prático, porém, Bilac sabia que, antes de exibir um teatro de primeiro mundo, o Brasil precisava de obras de infra-estrutura que o colocasse nos trilhos do desenvolvimento. E não exigia do incipiente teatro carioca o que vira no teatro francês. Antes, fazia sugestões para que melhorasse de nível. “Dir-me-ão os regeneradores que o povo da América do Norte, tendo a nossa idade, já tem teatro e autores. Mas o povo da América do Norte, por circunstâncias que não vêm agora ao caso, desenvolveu-se prodigiosamente e fabulosamente e, antes de ter teatro, teve indústria, teve comércio, teve administração, teve estradas de ferro, teve navegação, teve autonomia”, escreveu em crônica publicada na revista A Bruxa em 21/2/1896. Nesse texto, lembrava que ninguém pode querer que “o nosso pobre povo tenha teatro, antes de ter as outras cousas que está muito longe de ter e que, valha a verdade, são infinitamente mais necessárias que teatro”.
E não deixava de ter razão porque o centro do Rio de Janeiro desse tempo, antes da abertura da Avenida Central (hoje Rio Branco) e da demolição do Morro do Castelo, era uma cidade suja, cheia de trapiches, estaleiros, depósitos, pardieiros e tavernas suspeitas em que formigava “uma população macilenta e triste”, como observou o próprio cronista num texto de 23/6/1901 publicado na Gazeta de Notícias.
IV
Diz Dimas que, a par de sua poesia ao gosto da época e de sua oratória impecável, a extraordinária popularidade de Bilac talvez se explique também pela sua capacidade de embaralhar, com delicadeza, detalhes de sua vida pessoal com sua atividade pública e externa de jornalista, estabelecendo uma intimidade implícita com o leitor. Como prova, o professor reproduz trecho de uma crônica publicada na Gazeta de Notícias, de 16/2/1908:
Já lá se vão vinte anos… Nesse tempo, Zola era o autor da moda. Todos nós, rapazolas que começávamos a escrever, poetas incipientes, que já nos julgávamos gênios e prosadores bisonhos, que já nos considerávamos glórias nacionais -- todos nós tínhamos a mania do “naturalismo”, do “documento humano”, da “tranche de vie”. E, alta noite, enquanto os “burgueses ignóbeis”, dormiam -- saíamos a correr estalagens, baiúcas, alforjas. Às vezes, chegávamos ao extremo do disfarce espetaculoso: saíamos de casa, sem gravata, vestindo blusas de zuarte desbotado e fumando cachimbos que nos davam náuseas. Quase todas essas excursões, que eram verdadeiramente de pândega, mas que nós solenemente afirmávamos serem de severa documentação psicológica, iam acabar no Mercado, à hora em que os botes e as catraias chegavam, trazendo os peixes, as frutas, os legumes… Apanhávamos ali, muitas vezes, furiosas indigestões de documentos humanos e de ostras cruas! Mas a ilusão era magnífica: estávamos realizando e estudando praticamente as cenas do Ventre de Paris…
V
Nem sempre Bilac soube se desprender de seus preconceitos de classe, olhando para o resto do Brasil com a soberba de quem vivia no aristocrático bairro de Botafogo com os olhos voltados para o Atlântico e para a Europa. Talvez por isso não teve a clarividência para perceber no massacre perpetrado pelo Exército brasileiro contra famélicos camponeses do arraial de Canudos “o conflito entre a cultura oficial dominante e o messianismo sertanejo encarnado pela figura de Antônio Conselheiro”, como observa o professor Alfredo Bosi no prefácio. E fez coro com os jornalistas mal informados da época que viam nos jagunços de Canudos uma ameaça monarquista (?) à jovem República nascida de uma quartelada.
Bilac, aliás, foi sempre um poeta oficial, privando do convívio com presidentes da República, ministros e magnatas. Em troca, foi indicado várias vezes para representar oficialmente o Brasil em visitas a outras nações. No auge de seu prestígio, foi recebido em Lisboa em 1916 pelo presidente Bernardino Machado (1851-1944) e homenageado pela Academia das Ciências de Lisboa, tendo pronunciado conferência no Teatro da República e dado longas entrevistas aos jornais A Capital, O Século e A Opinião.
A essa época, era um nome conhecido em todo o mundo lusófono que já nada lembrava o jovem de 25 anos que, em 1890, atravessara pela primeira vez o Atlântico só para, apresentado por Eduardo Prado (1860-1901) e Domício da Gama (1862-1925), apertar a mão do grande Eça de Queirós (1845-1900) em sua “pequena casa do bairro dos Campos Elísios“ em Paris.

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BILAC, O JORNALISTA, de Antonio Dimas, Ensaios, Editora da Universidade Estadual de Campínas (Unicamp)/Editora da Universidade de São Paulo (Edusp)/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, 198 págs.; Crônicas, vol. 1, 899 págs.; vol.2, 573 págs. E-mail: vendas@editora.unicamp.br
__________________(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
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domingo, 2 de novembro de 2008

Ó meu Deus! (Ailton Maciel)




I
Ó meu Deus! Ó meu Deus! Destrói a noite.
Eu não suporto o seu cruel açoite
No vento a repicar!...
Eu quero a luz; a noite o ser destrói,
Sua algidez o corpo me corrói
De vício e de pesar!