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sábado, 21 de novembro de 2009

Carlos Emílio e as órbitas celestes (Nilto Maciel)

(Nilto, Carlos e Edson Cruz, num restaurante em Fortaleza)

Havia mais de dez anos eu tentava escrever contos. Não sabia a quem mostrá-los. Meus irmãos Ailton e Edinardo – bons leitores – não faziam restrições a meus escritos. Coisa de irmãos. Eu fazia. Ensaiava outras peças. Parecia-me muito difícil aquela tarefa. Depois de centenas de tentativas, selecionei os melhores. Apenas quatorze. O restante virou lixo. Pronto o livro, Itinerário, onde apresentá-lo ao público? Nas livrarias – aconselharam-me. Não, os livreiros não aceitariam expor um livrinho pobre, quarenta páginas, de autor desconhecido. Conversei com o dono de um bar, no térreo do edifício onde eu trabalhava, nas proximidades do riacho Pajeú. O que é lançamento? Não sei também, mas quero lançar meu livro no seu bar. Garanto boa despesa, cerveja e tira-gosto. E assim se deu, num sábado, meio-dia, de 1974.

No fim da festa, todos bêbados, diversos exemplares vendidos, apareceu-me uma figura estranha, cabeluda, roupas frouxas, livro debaixo do braço. Quem é? Uma escritora inglesa. Deixe-me ver: Mrs. Dalloway. Folhei o volume. Em inglês? Sim; você não lê inglês? Não respondi, encabulado. Nunca leu Virginia Woolf? Mudei de assunto. E assim conheci o jovem Carlos Emílio.

A partir daquele dia, iniciou-se nossa amizade. Ele me mostrava (ou lia) seus contos enormes, pedia opinião (não aceitava ser contrariado; só admitia elogios). Andava, para cima e para baixo, com seus manuscritos, seus contos mais novos, que lia com eloquência, onde quer que encontrasse um amigo ou um ouvinte: no saguão do cinema, no ponto de ônibus, num bar, numa esquina. Esses maus entendedores fugiam dele, mal o viam. Meia palavra do menino representava uma eternidade. Alguns desistiam do filme, outros pegavam ônibus errados, espavoridos. Diversos bares de Fortaleza se fecharam, aos poucos. Pois, se neles se sentava o futuro escritor, logo se esvaziavam. Eu não fugia dele, porque, embora obrigado a ouvir suas leituras demoradas, terminava ganhando um bom livro. Assim conheci Faulkner, Joyce, Proust e tantos outros.

Ele não lia apenas os próprios escritos. Lia também seus autores favoritos. Abria um ensebado The Sound and the Fury e se punha a ler: “In the midst of the voices and the hands Ben sat, rapt in his sweet blue gaze. Dilsey sat bolt upright beside, crying rigidly and quietly in the annealment and the blood of the remembered Lamb”. E parecia saber de cor uns e outros. Pois muitas vezes baixava a mão com a papelada ou o livro e continuava a falar. Olhos nos olhos, os lábios quase a tocar a face do ouvinte, como se quisesse se unir ao outro, penetrá-lo, possuí-lo. E respingava de saliva o rosto à sua frente, com seu hálito bom de criança sadia.

Percebida, logo no primeiro dia, minha indigência intelectual, não passava dia sem me emprestar ou presentear livros. Conhecia todo mundo: escritores jovens e velhos, jornalistas, artistas plásticos, músicos, compositores, atores. Apresentou-me todos os grandes nomes da literatura brasileira e estrangeira. Andava sempre com uma novidade debaixo do braço: em inglês, francês, italiano, espanhol. Falava-me de escritores europeus, ibero-americanos e brasileiros que eu não conhecia nem pelo nome. Você precisa ler D. H. Laurence. Sim. Cortázar. Claro. Lucio Cardoso. Perfeitamente. E ele mos apresentava e eu os lia. E conversávamos. Precisamos sacudir a literatura do Ceará. Como? Uma revista literária.

Carlos Emílio é o verdadeiro criador de O Saco. Organizou as primeiras reuniões de escritores, em 1975, com o objetivo de se fazer algo novo no Ceará. Escreveu e publicou em jornal a “chamada geral”, convite público a todos os que se dedicavam às artes. Marcou encontros em sua casa (de seus pais). Deu as diretrizes da publicação, embora eu me opusesse a quase todas elas. Convenceu Raposo e Jackson a participarem do empreendimento. Viajou por todo o Brasil à cata de reportagens, entrevistas, colaborações.

É um romântico, embora saiba tudo o que acontece aqui, ali, nos confins do mundo de ontem, hoje e amanhã. Muita gente não o leva a sério, por não ser um cidadão comum, não ser casado com mulher, não ter filhos, não frequentar igrejas e estádios, não cortar cabelo em cabeleireiro, não andar bem vestido. Às vezes parece mendigo; outras vezes, louco. Não cumpre horários e compromissos. Pode almoçar à meia-noite, tomar café-da-manhã no meio da tarde. Comparece às reuniões após seu encerramento. Telefona a amigos, de madrugada, para ler contos quilométricos. E acha tudo normal. Tão romântico é que dois de seus sonhos mais parecem alucinações: a volta dos suplementos literários em todos os grandes jornais brasileiros e a contratação de escritores para cargos públicos. Os periódicos fariam a publicação semanal (ou diária) de contos, poemas, romances. Para ele, os donos dos jornais só têm a ganhar com isso. Digo-lhe que literatura não interessa a esses empresários, leitores de jornais não querem saber de literatura, etc. Ele olha para mim, perplexo, horrorizado, como se eu fosse um inimigo dele. No outro sonho, os governos deveriam dar aos escritores emprego público. Com bons salários, para que os escritores não precisassem mendigar empregos em empresas privadas. Nada de assinar ponto, nada de chefe. Só uma mesa, o tempo inteiro para ler e escrever. Digo-lhe que isto é imoral, ilegal e impossível. Ele fala dos mecenas. E me chama de realista. Em duplo sentido: amigo do rei e ...

Fortaleza, setembro de2009.
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segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Poemas de Inocêncio de Melo Filho

(Inocêncio de Melo Filho)


Ofício


Perco-me entre palavras


E sílabas inquietas.


Quando volto a mim


Sinto-me abatido.


Tu me chamas, fecho o livro,


Nego-te os ouvidos...






Sólio


Este trono de merda é só meu


Trono fétido por natureza,


Se é que tem natureza o objeto de sua constituição...


É nele que faço minhas leituras


É nele que busco palavras


É nele que busco poemas


É nele que cago e mijo.


Este trono de merda é só meu


Não o divido com ninguém


Comprei-o com meu próprio dinheiro


Finquei-o à terra usando minhas forças


Trono plebeu!


Trono fétido!


Trono verde indivisível...






Defesa


Eu sou inofensivo, senhores,


Trago enigmas fatigados nas mãos


E fartos cabelos brancos na cabeça.


Minhas pálpebras estão exaustas


E o meu olhar nega-se a contemplar


Esse mundo caduco.


Este céu que nos cobre causa-me tédio.


Mas ainda há palavras em minha boca, posso feri-los


Posso jogá-las no vácuo ou aprisioná-las


Entre as unhas.


Senhores, sou inofensivo,


Verbalizar sentimentos não significa


Um ataque,


Concretiza o medo que se faz defesa.






Insulto


Que fique na tua boca


O meu hálito fétido


Como resposta


Aos teus insultos...

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quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Os primeiros escritos de Nilto Maciel (Henrique Marques-Samyn)



A verve experimentalista de Nilto Maciel confirma-se através da leitura do primeiro volume de seus Contos reunidos (Bestiário, 2009), que reúne os textos publicados nos livros Itinerário (1974/1990), Tempos de mula preta (1981/2000) e Punhalzinho cravado de ódio (1986). Autor prolífico e multifacetado, entre os méritos de Nilto está uma incansável disposição para repensar sua própria produção literária, algo que já pode ser percebido nesses primeiros textos – entre os quais merecem destaque o forte “Punhalzinho cravado de ódio”, o patético “Detalhes interessantes da vida de Umzim” e o bem urdido “Tadeu e a mariposa”.

Extraindo seus motivos de temas históricos, regionalistas ou fantásticos – não sendo incomum a mescla de elementos oriundos desses diversos campos –, Nilto Maciel é o tipo de escritor que resiste a rótulos e a categorizações. Transparece nesse pluralismo um pendor fundamentalmente comprometido com o próprio exercício da escrita: é esse um autor para quem a criação literária é uma forma de organizar e questionar o real – conquanto esse termo, no vocabulário do autor cearense, seja de difícil definição.

Reunindo os primórdios da obra de uma importante figura das letras brasileiras contemporâneas – sobretudo por sua atitude democrática, justamente destacada pela prefaciadora Liana Aragão, que por longos anos materializou-se na revista Literatura – , Contos reunidos de Nilto Maciel vem, em boa hora, ocupar um espaço de valor em nossas estantes: aquele lugar destinado às obras dos que, além de criadores, são também fomentadores da cultura brasileira.
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terça-feira, 10 de novembro de 2009

E o boi não lambe (Batista de Lima)



Gerôncio chegou vestido de treva ao armazém. No fundo do salão escuro o negro Sabiá jazia inerte e acorrentado ao pilão deitado. Verificou que o negro estava vivo mesmo depois de tanto apanhar para confessar o roubo.

Foram várias patacas desaparecidas do baú da casa grande no domingo de páscoa. Mas o negro carregador de água já confessara tudo. Só não soube dizer aonde guardara o tesouro.

No curral ao lado o touro “surubim” já escavava o chão com os chifres, após dia e meio sem comer e sem beber e passaria mais um naquele estorrico. Era preciso muita fome para enfrentar o negro. Era preciso exemplar o negro na frente dos outros.

Dia seguinte lá pelas onze o negro foi levado e amarrado nu ao mourão no centro do curral ensolarado. Seu corpo foi untado de manteiga da terra e o touro solto de suas amarras. Era um touro de mais de trezentos quilos esfomeado e sedento, sentindo o cheiro da manteiga que escorria com o suor do negro amarrado ao tronco.

O touro se aproximou, cheirou o corpo do negro, amanteigado, e deu a primeira lambida na barriga úmida. Foi o suficiente para que se ouvisse o grito do condenado e o filete de sangue escuro escorrer pelas pernas. Assim o touro quanto mais lambia a manteiga com o sangue mais parecia enfurecido com tanta fome e sede. Em pouco tempo estava o coitado em carne viva, tentando livrar-se daquela língua lâmina.

Aos poucos ia perdendo todo o sangue e a força do grito, e pendia entregue à dor, desfalecido e exangue. Os outros negros do outro lado da cerca se benziam de olhos marejados.

Na porteira do curral o patrão recebeu o delegado que chegava, avisando ter encontrado o tesouro nas mãos de um meirinho que já estava preso na cidade.
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domingo, 8 de novembro de 2009

Notas poéticas: Três martes, de Davino Ribeiro de Sena (Henrique Marques Samyn)



Havendo estreado na poesia na década de 90 com Castelos de Areia, obra premiada na 5ª Bienal Nestlé de Literatura, Davino Ribeiro de Sena já mereceria algum destaque no ambiente poético contemporâneo por aliar, em sua obra, a preocupação formal à busca do lirismo, ambos comumente relegados pela maior parte dos que atualmente se aventuram pela vereda da poesia – que confundem, geralmente, forma com formalismo e lirismo com pieguice. Distante de ambos os vícios, Davino entrega-se a um labor construtivista sem deixar de dar ouvidos à sua matéria lírica, logrando, não poucas vezes, alcançar resultados notáveis.

Três martes, sua obra mais recente (7Letras, 2004), parte de uma proposta artística tão interessante quanto curiosa: em uma espécie de fantasia semântica, tenciona o poeta versar sobre Marte enquanto planeta e enquanto ente mitológico, desvelando um terceiro Marte que seria produto dos dois primeiros. Davino pretende, por esta via, realizar uma reflexão sobre a alteridade; no entanto, sendo esta alteridade tão enigmática, a meditação acaba sendo não sobre o outro, mas sobre si mesmo e o que o cerca – o mundo, a vida, a História, a experiência humana. O terceiro Marte torna-se, enfim, um espelho.

O longo poema segue uma estrutura fixa, com estâncias de doze versos de medidas variáveis, somando ao final mais de dois mil versos. Todavia, é nesta extensão que está sua fragilidade. Coexistem, no poema, momentos de possante força lírica – veja-se, por exemplo, a descrição do “planeta frio”: “Nenhuma sombra, nada / que recorde a vida / no horizonte monótono / quebrado pelas dunas / de areia avermelhada / e pensar monossilábico (...)” – e momentos em que o ímpeto criativo perde o fôlego, tangenciando o prosaísmo, o que resulta em versos que pouco se afastam do trivial – “Um dia seremos lúcidos / mais do que lúdicos. / Misterioso não é o anjo / mas o homem com o banjo.”. É quando a dimensão contingente – construtiva e intelectiva – sobrepuja a dimensão lírica, esta a verdadeiramente essencial.

Davino destaca-se em meio à esterilidade lírica patente na poesia surgida nas últimas décadas justamente por ser um poeta que tem grande familiaridade com suas fontes de inspiração (o que, aliás, rendeu belíssimas obras em seu livro anterior, Vidro e Ferro, de 1999). Ainda que tais fontes se façam presentes, aqui e ali, em Três martes, o que compromete a inteireza do livro são precisamente os momentos em que a razão se faz excessiva, esvaziando o verso de seu substrato lírico. Davino procurou desvelar um terceiro Marte em meio à tensão entre o Marte-planetário e o Marte-mitológico; poderíamos pensar, analogamente, em uma tensão entre o Davino-lírico e o Davino-construtivista. É quando o último não excede o primeiro, quando ambos se harmonizam, que vemos despontar, verdadeiramente, o Davino-poeta.
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quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Batista de Lima e a arte de seduzir (Nilto Maciel)

(Nilto, Aíla Sampaio e Batista de Lima, na UNIFOR,Fortaleza, Ceará)



Meu irmão Edinardo cursava Letras na UFC, desde 1970. Falava-me dos professores e dos colegas. Porque sabia do meu interesse por Literatura. Mostrava-me livros, cadernos e trabalhos escolares. Um dia, me apresentou o colega Batista de Lima. “Ah, você também escreve? Já conhece o Clube dos Poetas?” Num sábado, tomei umas cachaças, peguei o ônibus na Bezerra de Menezes, desci na Praça José de Alencar e, sorrateiramente, me encaminhei para a Casa de Juvenal Galeno, onde se realizavam os encontros dos jovens poetas. E lá estava Batista, risonho, empertigado, bem vestido, solícito. Fez-me travar conhecimento com Carneiro Portela e outros. Não sei se (ou de quê) me aborreci. Não voltei mais à casa e, durante muito tempo, perdi o contato com Batista. Meu irmão fez concurso para a Caixa, foi convocado para assumir o emprego em Salvador e abandonou o curso. Surgiu O Saco, Batista reapareceu, perguntou por Edinardo. Pouco tempo depois, em 1979, meu irmão faleceu, em acidente automobilístico. Batista concluiu suas letras, tornou-se professor e, em 1977, publicou o primeiro livro, Miranças.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Cem anos de ficção brasileira (Adelto Gonçalves)



Houve um tempo, lá nos inícios da década de 70, em que contista bom no Brasil só podia ser mineiro. É claro que ainda há bons contistas nascidos em Minas Gerais, mas de uns tempos para cá o que se vê são grandes críticas mineiras, quase todas professoras militantes nas grandes universidades do Estado. Correndo o risco de imperdoáveis omissões, pode-se lembrar, assim de uma enfiada, os nomes de Letícia Malard, Melânia Silva de Aguiar, Maria Nazareth Soares Fonseca e Maria Angélica Guimarães Lopes, sem falar de historiadoras como Júnia Ferreira Furtado, Carla Maria Junho Anastásia, Eliana de Freitas Dutra e Adriana Romeiro.

Dessas, apenas Maria Angélica Guimarães Lopes fez carreira no magistério longe das montanhas de Minas Gerais, tendo se transferido para os Estados Unidos há várias décadas. Hoje, é professora de Literatura Brasileira da Universidade da Carolina do Sul, mas já passou pela Universidade de Pittsburgh e pela Universidade do Sul da Califórnia. É também editora da seção “O Conto Brasileiro” para o Handbook of Latin American Studies, a bibliografia bienal da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos.

Durante todo esse tempo, escreveu ensaios e resenhas de livros de autores brasileiros, quase sempre restrita à contística, gênero a que se dedicou, espalhando seus escritos por numerosas revistas universitárias norte-americanas que se dedicam às letras ibero-americanas, o que inclui as brasileiras. O curioso é que não tenha nunca se preocupado em reunir esses trabalhos num volume, pelo menos até a publicação de Coreografia do Desejo: Cem Anos de Ficção Brasileira (São Paulo, Ateliê Editorial, 2001), que saiu só nove depois de um apelo feito pelo escritor Manoel Lobato (1925), responsável pelo texto que cobre as orelhas do livro.

Quem já teve um livro recenseado pela professora Maria Angélica Guimarães Lopes, como este articulista1 , sabe que se trata de uma crítica de rara erudição, que constrói frases poéticas em meio a análises sofisticadas e sempre baseadas em autores de grande reconhecimento mundial, mas que, dificilmente, comparecem nas recensões que costumamos ler por aqui. Naturalmente, os largos anos de convivência no meio universitário norte-americano abriram-lhe outros horizontes, colocando-a em contato com os mais diversos ensaístas e ficcionistas das línguas inglesa e francesa. Por isso, fez vários trabalhos de Literatura Comparada, opondo autores brasileiros a seus pares de línguas inglesa e francesa, sempre com notável perícia interpretativa, como aponta o professor Fábio Lucas na apresentação.

Alguns desses trabalhos estão em Coreografia do Desejo. Um deles é o mais extenso e significativo dos 14 textos reunidos neste volume, “Estátuas esculpidas pelo tempo: imagética como caracterização em Quincas Borba e The Portrait of a Lady”, em que a mestra faz raras e percucientes comparações entre Machado de Assis (1839-1908) e Henry James (1846-1916), examinando tropos de teor metafórico usados na caracterização das principais personagens de dois romances contemporâneos de inegável valor.

Ambos tratam da influência da riqueza e posição social nas relações sentimentais dos protagonistas. Como se sabe, tanto o carioca como o novaiorquino eram admiradores do francês Honoré de Balzac (1799-1850), que foi quem levou mais longe esse tipo de caracterização.

Outro estudo, “O Banquete da Vida: Quincas Borba e O Nababo”, confronta o romance machadiano com aquele de Alphonse Daudet (1840-1897), a partir da temática da amizade traída pelo interesse, tendo como pano de fundo o império brasileiro e o francês. Em sua análise, a professora, além de ressaltar o parentesco entre as duas obras, procura mostrar o valor e a permanência do romance brasileiro em comparação com o francês.

De fato, hoje, como observa a crítica, Le Nabab, “apesar de sua pujança e sinceridade”, é pouco lido, tendo virado “peça de museu”, enquanto Quincas Borba, mais de um século de sua publicação, continua a suscitar estudos de críticos brasileiros e estrangeiros, sem contar que, freqüentemente, faz parte de listas de livros de leitura obrigatória para acesso a cursos de graduação.

Na mesma senda do comparativismo, Maria Angélica aproxima Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade (1890-1954), de João Ternura, de Aníbal Machado (1894-1964), “verdadeiros filhos do Modernismo, que contribuíram para trazer a pujança necessária à prosa brasileira”. A rigor, os dois livros são contemporâneos, embora o de Oswald de Andrade tenha sido publicado em 1924 e o de Aníbal Machado em 1965. É que a parte inicial de João Ternura é de 1926-1932, tendo ficado na gaveta por mais de três décadas.

Coreografia do Desejo oferece ainda a oportunidade ao leitor moderno de conhecer duas autoras brasileiras que estão esquecidas e reduzidas a poucas linhas em obras de referência e de consulta obrigatória. Uma delas é Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), que foi mulher do escritor Filinto de Almeida (1857-1945), que, nascido no Porto, veio para o Brasil com 10 anos de idade e chegou à Academia Brasileira de Letras como um de seus fundadores. Filha de pais portugueses cultos (a mãe foi música e o pai médico e educador), Júlia de Almeida escreveu romances em que a temática era a família burguesa do Segundo Império e da Primeira República.

Embora seja acusada por José Carlos Garbuglio no Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira, de Massaud Moisés (org.), de carecer de “maior penetração psicológica para criar obra significativa”, é vista sob outro ângulo por Maria Angélica, que nela reconhece “perícia em manipular elementos literários com os quais entretece fios ideológicos, conservando a harmonia e incisão próprios de um romance realista bem realizado”. Seus romances A Família Medeiros e Correio na Roça, diz a professora, atestam a seriedade com a qual a autora se preocupou com a instrução feminina, única alternativa que via para a mulher fugir da submissão ao mundo masculino.

Já Carmen Dolores, pseudônimo de Emília Moncorvo Bandeira de Melo (1852-1911), destacou-se mais como jornalista, lutando igualmente pela educação feminina, pelas oportunidades de trabalho remunerado para a mulher e, principalmente, pelo divórcio, embora não tenha sido entusiasta do voto feminino nem da incorporação da mulher à política.

O título do livro Coreografia do Desejo, que abarca um século de ficção brasileira, incluindo ainda autores modernos como Clarice Lispector (1925-1977), Oswaldo França Júnior (1936-1989), Manoel Lobato e Frei Betto (1944), vem do ensaio que autora escreveu para A Dama do Bar Nevada, conto de coletânea homônima de Sérgio Faraco (1940) publicada em 1987. Nesse texto, Faraco, um dos melhores contistas brasileiros da atualidade, a estória começa com um encontro casual em que uma mulher idosa muito maquilada e de trajes chamativos oferece a um jovem pobre e faminto, num bar do centro de Porto Alegre, os seus serviços mais íntimos, além de uma substanciosa remuneração, tudo dentro de uma conversa educada, regada a xícaras de chá.

Para a autora, o diálogo entre a velha senhora sequiosa por reencontrar o fogo da juventude e o rapaz “é também uma dança, coreografada pelo mais forte — a dama: mais velha, mais astuta e mais rica. É ela quem conduz o parceiro em direção aparentemente ignota e perigosa”. Basta uma observação como esta para se ter uma idéia da alta qualidade do trabalho analítico de Maria Angélica Guimarães Lopes.
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A COREOGRAFIA DO DESEJO: CEM ANOS DE FICÇÃO BRASILEIRA, de Maria Angélica Guimarães Lopes. São Paulo: Ateliê Editorial, 232 pp., 2001. www.atelie.com.br
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* Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
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