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sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Ano novo (Tânia Du Bois)




Comemorar a despedida do ano velho, a chegada do ano novo e o transformar em renovação, significa ter disposição para enredar-se nas palavras, para ir além do encontro com os amigos e os familiares, porque as palavras representam os sonhos e fazem a magia da noite.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Feliz solstício (Manuel Soares Bulcão Neto)




"No lado de cima do Equador, o solstício de inverno é o dia com a noite mais longa do ano"

Natal é festa de confraternização cristã. Embora agnóstico, não sou bitolado: valorizo algumas tradições sociais, de modo que, quando convidado para uma ceia natalina, compareço. Da última vez, porém, na casa de um amigo, tive aborrecimentos. Pois, logo que cheguei, um dos presentes – católico praticante e litigante – abordou-me: "Ei você! O que veio comemorar aqui?". Enquanto a empadinha descia arestosa, respostei: "O solstício de inverno do hemisfério norte". O sujeito fez cara de desentendido. Então, expliquei sucintamente.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Os bichos, a palha (Ronaldo Monte)



Não importa se é mito, não importa se é fato. Crente ou descrente, nenhum membro da cultura ocidental pode ficar alheio à figura do Cristo. Principalmente às imagens estabelecidas como o princípio e o fim da sua vida terrena. Dispensemos, por hora, a imagem da solidão e do sofrimento do Calvário. Vamos ficar com a imagem da origem, aquela cena simples do menino deitado na palha, velado pelos bichos, sob os olhos dos pais. Não precisamos de nenhum recurso à divindade para compreender o que tal cena nos quer dizer. Ali está representado, ao mesmo tempo, todo o desamparo humano e as possibilidades da sua reparação.

A marca do humano é o desamparo. Somos lançados prematuramente no mundo, antes que tenhamos alcançado o nível de desenvolvimento suficiente para fazer o que qualquer mamífero consegue: erguer-se sobre as patas e buscar o peito da mãe. Deixado às suas próprias custas, o ser humano não vinga. Para isto estão ali o pai e a mãe do menino. Para fazer por ele o que o seu desvalimento não permite. Mas o que representam, então, a manjedoura e sua palha, os animais e seu silêncio? Cada um de nós pode tentar sua própria interpretação. Para mim, a pobreza do cenário serve para dizer que não se precisa de muito para estar no mundo. Para o frio da noite do deserto, está ali o calor da palha. Para as tentações do poder dos homens, ali está a humildade dos bichos.

O menino vai crescer, vai deixar seus pais, vai correr o mundo pregando uma mensagem até hoje incompreendida. E quanto mais longe estiver deste cenário de origem, quanto mais certeza tiver da sua divindade, mais perto estará da imagem final da solidão e do sofrimento. Por isso, a cada ano, devemos nos lembrar que para sermos solidários em nosso desamparo de humanos, precisamos guardar em nós o calor da palha, a humildade dos bichos.

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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A estrela azul do Natal* (Horácio Dídimo)

Renovação


Quando vejo a estrela azul
Começa tudo de novo:
O Menino no presépio,
Deus no meio do seu povo.




E no meio desse povo
Estamos eu e você;
Quando vejo a estrela azul
Aumenta meu bem-querer.




Quando vejo a estrela azul
Passam anjos e pastores,
Passam reis nos seus andores.

Quando vejo a estrela azul
Rezo, canto, danço e louvo:
Começa tudo de novo.






Revelação


Quando vejo a estrela azul
Brilhando por um instante
Descanso em águas tranquilas
E em pastagens verdejantes


Minha alma se fortalece,
Minha vida se transforma,
Uma mesa é preparada
E meu cálice transborda.

Quando vejo a estrela azul
Em todo seu esplendor
Sei que tudo vai mudar,

Sei que tudo já mudou,
Que o Senhor é meu pastor
E nada me faltará.




* Sonetos "Renovação" e "Revelação" (cf. Salmo 23/22), música de Mauro Augusto, do livro A Estrela Azul e o Almofariz. Fortaleza: UFC, Casa de José de Alencar, 1998, p. 29-30.
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quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O Rumor e a Concha (Dias da Silva)

(Poeta Dimas Macedo)


É de Byron esta compreensão: “para um homem tornar-se poeta, é preciso que esteja apaixonado ou desgraçado.” Ele se dizia ser as duas coisas juntas. Dimas Macedo é um apaixonado (desgraçado? Com certeza, não no sentido que, em geral, se empresta ao termo) pela Poesia. Que sabe falar a linguagem artística. Que tem a fala poética, distinta da habitual por expressar-se em imagens especiais. É que faz da poesia uma espécie de filosofia, de atitude e de constante maior em sua vida.

Deparo Paulo Leminsk com esta idéia: “Cada vez que a linguagem se volta sobre si mesma para produzir prazer – não apenas conteúdo e significados –, neste momento temos poesia.” Assim, tem-se poesia nas páginas de O Rumor e a Concha (Fortaleza, Edições Poetaria, 2009), de Dimas Macedo. Poesia transcendência, com o imaterial vencendo o material. Poesia transbordamento espontâneo de sentimentos poderosos.

E S. Y. Agmon vem aqui para dizer que, “Se não vale a pena ler um livro duas vezes, não é preciso nem lê-lo uma única.” Ora, amigo leitor, digo-lhe que já reli – e reler é fazer redescobertas – O Rumor e a Concha e valeu a pena pelo encantamento de sua incessante novidade.

É verdade: nem há procurar e o leitor já encontra, às claras, palpável, na maioria dos versos, premente novidade de páginas rigorosamente marcadas pelo domínio da síntese e da economia lingüística, pelas conquistas poéticas. Neste livro, o Poeta chega bem mais alto: até a conquistas filosóficas e de densidade humana à flor da pele, em versos curtos e rápidos, diga-se, versos faísca, versos relâmpago. É uma poesia dosada de sensualidade, cheia de corpo (o signo “corpo” vem às páginas por 28 vezes) e de pele. É o império da voz do corpo e da voz do sensual que é de todo mundo, da voz da alma, de voz de gente.

Quem disse isto – adianto-lhe o nome: Ernest Hemingway – fê-lo acertadamente: “O escritor que para de observar está acabado.” Em relação ao poeta, cabe dizer-se: o poeta que para de emocionar-se e emocionar está no fim. O verso de Dimas Macedo deixa emoção na gente e a gente no estado estético.

Além disso, tem-se o poeta do vir-a-ser, isto é, sempre no caminho do aperfeiçoar-se e melhorar. Dimas Macedo não está acabado. Nunca: feito escafandrista, está mergulhado no existencial, em observação contínua dos sentimentos e dores mais profundos do ser humano. Confirma-o O Rumor e a Concha: é uma poesia para melhor. Para mais poesia. Para máquina mais perfeita de produzir emoção.

É, tudo isso é O Rumor e a Concha. Até no título há mais poesia. Mais música. E mais mistério. É verdade: o rumor da concha lembra mistério e grandeza. O Autor tem esta compreensão: “(...) pois ser poeta/ é ouvir um trovão/ a cada milésimo de segundo.” É o tempo para sua pulsação materializar-se no verso. Poucos versos, em O Rumor e a Concha, se concebem em 10 sílabas poéticas. A maioria se distribui entre duas e sete. Assim, tem-se uma poesia síntese, pelas tantas e bem postas elipses verbais e mentais. Emoção, sentimentos, sonhos e música (e significados) concentram-se em poucos signos linguísticos. São versos rápidos com densa carga emocional e significativo-indireta.

Os tercetos (32) – estrofes de três versos – lembram haicais, o que fazem também os quartetos, bastando, para tanto, a eliminação de um dos versos. O haicai tem, por excelência, a forma breve, e as formas breves atraem o olho do leitor que vai aos versos como a algo que não vai aborrecê-lo.

Roland Barthes escreveu: “O terceto do haicai exerce sobre nós uma fascinação – não pela métrica mas por seu tamanho, sua tenuidade, isto é, metonimicamente pela aeração com que ele gratifica o espaço do discurso.”

A poesia de Dimas Macedo deixa no leitor essa fascinação pela síntese e rapidez do verso e o leva à reeleitura pela condensação da emoção. Cada verso é um todo de palavras que se renovam parecendo nunca ouvidas. O Poeta reconhece que “dizer de antemão é destruir; nomear cedo demais é atrair a má sorte”. Daí por que sua poesia é mais para ser sentida e ouvida. Dimas Macedo faz-se mestre na arte de reduzir à essência o que leva o leitor ao prazer de estar emocionado.

Digo Dimas Macedo o poeta da infância, da infância feliz que é de todo mundo. Mas não há infância em O Rumor e a Concha, senão estados e sentimentos outros, também de todo mundo: o sorriso é de todo mundo. O corpo (sensual) é de todo mundo. O amor viceja em todo mundo. Beijar é de todo mundo.

Entretanto, o Poeta não pode fugir à própria dimensão de preocupado com o outro. Com a dor do outro. Com a dor existencial. Dir-se-ia que não está em paz enquanto houver dor ao lado: “(...) e sinto as dores do mundo/ como se fosse adivinho.” É verdade, Dimas Macedo tempera a vida com sentimentos de preocupação e de solidariedade ao ser humano.

Em O Rumor e a Concha, o Poeta varre as lembranças infantis. Em contrapartida, refugia-se em corpo e pele, em assumida crença na força sensual.

O Rumor e a Concha é um livro só de poesia: é sem prefácio e nada nas dobras, mas cheio de tudo. Ouça-lhe os rumores: eles levam você ao prazer estético e à emoção.

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Revista Escrita

Wladyr Náder*, um dos principais responsáveis pelo chamado boom da literatura brasileira na década de 1970, quando esteve à frente da revista Escrita**, já perdeu patrimônio pessoal para alimentar o sonho de abrir espaço para os novos... Foi assim naquela época (entre 1976 e 1988, com interrupções) e... continua assim até hoje... Agora, ele está à frente da versão eletrônica da revista Escrita... Convido você a visitá-la, divulgá-la, colaborar com ela...


* Wladyr Náder é daquelas pessoas que em qualquer país já teria sido homenageado com uma estátua pública, em vida, pelos serviços prestados à cultura nacional, e que, infelizmente, no Brasil, não é devidamente valorizado...

** Quem quiser conhecer um pouco mais o que foi a Escrita, em sua fase impressa, pode consultar o link abaixo, onde, na série "Revistas Literárias da Década de 1970", dediquei quatro artigos a descrever o conteúdo da revista.

Abraços a todos do
luiz ruffato
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segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Bilhete de Chico Lopes*

(Escritor Chico Lopes)



Caro Nilto:


Obrigado por me citar lá entre teus amigos no “Literatura sem Fronteiras”. E também, logo abaixo, tem um quadro meu, o do curiango em fim de tarde mineira, ilustrando um poema do Dubois. Fiquei contente que minhas imagens estejam andando por aí... Quanto à satisfação tua, entendo-a completamente. Mas "realização" é um conceito infeliz, visto que realizado é impossível ser, pois que, como ser humano, estamos sempre incompletos, por fazer, e Nietszche bem dizia que "atingir um ideal é superá-lo". Realização, grosso modo, é Paraíso, e Paraíso não existe e, toda vez que ele existiu, fomos expulsos dele, para não morrermos de tédio e improvisarmos nossa própria versão da humanidade, metade eufórica, metade agônica, sempre, desgraçada e apaixonadamente. Somos os que vão ao Inferno à procura de Luz mesmo, como dizia o sábio Lupiscínio. Agora, você é dos contistas mais saborosos deste país, digo e repito. Mistura dor e humor com muita graça e perícia.

Abraços

Chico Lopes



*Chico Lopes, escritor de Poços de Caldas cuja carreira nacional de contista vem crescendo dia após dia, experimenta agora um novo território – o internacional, saindo em Lisboa numa antologia de contos que reúne contistas brasileiros e portugueses. O livro chama-se SÓ AGORA VEJO CRESCER EM MIM AS MÃOS DO MEU PAI e sairá pela editora Pasárgada. O título traz um trecho de um poema do poeta Iacyr Anderson Freitas, de Juiz de Fora, a partir do qual o editor, Ozias Filho, propôs a escritores brasileiros e portugueses o desafio de escreverem um conto de cerca de cinco páginas. Chico Lopes aceitou com prazer o desafio, visto que uma constante de sua obra da contista e novelista é a relação de um filho pequeno ou adolescente com um pai problemático, ausente espiritual ou fisicamente. Isso já lhe rendeu contos como “A fresta” em “Nó de sombras” e “Belmiro agoniza” em “Dobras da noite“, entre outros.

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Homem realizado ou satisfeito? (Nilto Maciel)

(Nilto – o primeiro, sentado, à esquerda – nos jardins da Reitoria da Universidade Federal do Ceará, ao lado de Jorge Tufic e Soares Feitosa, sentados, e, em pé, Airton Monte – o primeiro, à direita – e outros escritores)



Acordei satisfeitíssimo. E pensei: o que é um homem realizado? Segundo o Dicionário Houaiss, “realizado” é adjetivo da categoria “regionalismo”, no Brasil, e significa “que conseguiu atingir seu(s) objetivo(s), cumprir sua(s) meta(s)”. Portanto, realizado e satisfeito são sinônimos. Não para mim, neste momento. Explico: Todo dia ouço a velha pergunta idiota feita às crianças: o que você quer ser quando crescer? Os meninos respondem logo: jogador de futebol. As meninas não titubeiam: modelo. Meio século atrás, alguns de meus amiguinhos se encabulavam e demoravam a responder. Outros se empertigavam, sorriam e atiravam besteiras: vou ser maquinista de trem; quero ter um caminhão Chevrolet bem bonito; se não for padre, serve o Banco do Brasil; se a Igreja ou a casa do dinheiro não me quiserem, serei general do exército de salvação nacional. Ninguém queria ser Bach ou Alberto Nepomuceno, Cervantes ou Alencar, Van Gogh ou Antônio Bandeira.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Larva (Pedro Du Bois)

(Quadro de Chico Lopes)


A larva
lavra o caminho: geográfico
histórico
musical


a larva cresce
em acuidades: corpo
formado
ao exemplo
diminuto
do tormento




no espaço ocupado
outro corpo se debate
em números: a larva
recolhe o conceito
universal do uso
do espaço.






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sábado, 18 de dezembro de 2010

Pra não morrer com o sangue dentro (Alaor Barbosa*)

(Alaor Barbosa)

Dia 9 de dezembro que vem vou receber o Troféu Goyazes, da Academia Goiana de Letras, por minha obra de romancista. Honrosíssima premiação, que vem me causando, desde que dela fui comunicado por Miguel Jorge, generoso autor da proposta, um imenso bem moral. Como disse, de modo lapidar, o grande Machado de Assis: “Esta é a glória que fica, eleva, honra e consola”.

A vida tem sido, em considerável aspecto, generosa para comigo. Premiações importantes, elogios autorizados e homenagens consistentes em honrosas eleições para entidades de escritores, além da participação em cinco antologias de contos feitas por autores muito competentes, me proporcionaram um certo e benfazejo reconhecimento do meu trabalho literário, iniciado há mais de cinqüenta anos. Trabalho que se pode dizer não ser pouco numeroso: no campo da ficção, quatro livros de contos, mais um inédito, e cinco romances (um deles em processo de editoração), mais três em elaboração.

Apesar do bom acolhimento recebido por minha obra literária, sou obrigado, contudo, a confessar que sofro forte ressentimento, mágoa mesmo, de verificar que meus livros não são lidos por mais gente do que a muito pouca, assim me parece, que já leu algum ou alguns deles. Em outras palavras: me dói ver a escassa penetração dos meus livros entre os leitores de literatura existentes no Brasil. Esses leitores, sabemos todos, são proporcionalmente muito poucos. Aqui em Goiás, por exemplo, segundo me informou um editor, eles eram, em 1999, seiscentos - em uma população bem superior a quatro milhões. Percentagem insignificante. E é bem possível e mesmo provável que esse número de seiscentos leitores tenha diminuído. Em onze anos, a televisão (na sua maior parte) com a sua extensa programação deseducativa e alienante, as drogas entorpecentes cada vez mais difundidas e o futebol convertido em ópio do povo, em conjugação com outros fatores, tiveram bastante tempo e espaço para atuar e produzir terríveis efeitos destrutivos contra a indefesa coletividade brasileira. Também a maciça propaganda comercial deve ter atingido o seu objetivo de convencer muito mais gente de que – triunfante filosofia estúpida! - ser feliz é comprar bons automóveis e beber chope ou cerveja de sexta-feira a domingo. Parece mesmo que o número de livrarias vem diminuindo no Brasil – nas capitais, pois o interior do País (talvez com exceção do de São Paulo, o que paradoxalmente não logrou livrar esse estado de ser um dos campeões brasileiros do crime) tem sido sempre um tristíssimo deserto de livros. (Nas cidades goianas, afora a nossa Capital, não existe uma só livraria.) Mas não ignoro que, apesar de tudo, tem livro que consegue ser comprado e presumivelmente lido, mesmo nos dias atuais, em tiragens consideráveis. Esclareço que esse fato não me excita nenhuma inveja ¬– sentimento que jamais me acometeu: sempre gosto de ver que existe escritor que consegue escapar da contingência e regra da escassez geral de aceitação e difusão. Mas é claro que fico decepcionado de ver que meus livros, escritos e reescritos dezenas de vezes com extenuador esforço e severíssima atenção, todos bem recebidos por importantes escritores e críticos literários (José Edson Gomes, Modesto Gomes, Antônio Olavo Pereira, Brasigóis Felício, Nilza Diniz Silva, Zilda Diniz Fontes, Gilberto Mendonça Teles, Ney Teles de Paula, Carlos Drummond de Andrade, Italino Peruffo, Hélio Pólvora, Juscelino Kubitschek de Oliveira, Guido Heleno, A. G. Ramos Jubé, José Mendonça Teles, José Liberato Povoa, Antônio Possidônio Sampaio, Euclides Marques de Andrade, Dalila Teles Veras, Bernardo Élis, Jerônimo Geraldo de Queiroz, Ivair Lima, Mário Ribeiro Martins, Gabriel Nascente, Wilson Martins, Ronaldo Cagiano, Nelly Novaes Coelho, Manoel Lobato, Manoel Hygino dos Santos, José Leão de Souza Filho, Adelto Gonçalves, José Maria e Silva, Fernando Py, Paulo Dantas, Dario Abranches Viotti, João Carlos Taveira, Antônio Olinto, Enéas Athanázio, Euler Belém, Geraldo Coelho Vaz, Alan Vigiano, Cyl Galindo, Danilo Gomes, Ricardo Lísias, Maurício Melo Júnior, Nelson Hoffman, Licínio Leal Barbosa, Joanyr de Oliveira, Elizabeth Caldeira de Brito, Iram Saraiva, Anderson Braga Horta, Kori Bolívia e vários outros), ocupam posição de marginalidade dentro do nosso mundo literário. Não são acolhidos por este poderoso e incontrastável deus do mundo capitalista que é o Mercado. Que deus tremendo! Um Moloch que a tudo avassala, tudo domina, tudo promove ou anula de acordo com inescrutáveis segredos e métodos. Diante desse moderno deus onipotente, eu, que ainda por cima aborreço os deuses, me deparo inerme e incapaz de desafiá-lo e vencê-lo. Sou um autor meio clandestino ou secreto no panorama do mercado livreiro. Um “outsider”. Me sinto injustiçado. Mas penso que este é, a esta altura, um problema sem remédio. Por isso mesmo não espero nem mesmo alguma reparação da posteridade – consoladora ilusão de muitos escritores que se julgam incompreendidos ou insuficientemente aceitos pelos seus contemporâneos. Penso que o mais provável é que a posteridade sancione e homologue o que sucedeu ao autor em vida e até mesmo recrudesça no pouco interesse ou na indiferença, negando-lhe o pouco êxito que acaso o afligiu enquanto vivo e terminando por sepultá-lo em perpétuo esquecimento inexorável. O Tempo é inclemente. Ainda bem que eu, felizmente, estou um tanto salvo desse mau destino graças à solidariedade de numerosos colegas escritores que me acolheram para sempre em várias academias. A relativa imortalidade acadêmica, essa eu desfruto. (Notem que estou escrevendo com inconformismo, mas também com saudável bom-humor.)

Sei - porém isso não me consola - que não estou sozinho nesta situação de precariedade e difícil solidão no mercado. Sem falar de amigos e conhecidos meus, tenho observado que mesmo os autores tradicionalmente consagrados da literatura do mundo são pouco lidos. É duro notar que Dante Alighieri, Cervantes, Tolstoi, Balzac, Stendhal, Herman Melville, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, o meu particularmente estimado William Saroyan e dezenas e centenas de autores que admiro estão cada vez mais abandonados. Ao menos no Brasil. Os escritores brasileiros também vão sendo alcançados pela ação negativa do descaso em cooperação com a inapelável destrutividade do Tempo. Quase ninguém mais lê os contos - não reeditados – de Mário de Andrade, de Alcântara Machado, de Simões Lopes Neto, do nosso goiano Hugo de Carvalho Ramos, do talentosíssimo Bernardo Élis, do admirável Carmo Bernardes. Ou os romances de Aloísio Azevedo e Afrânio Peixoto e mesmo de Graciliano Ramos. (Estou citando a título meramente exemplificativo. Esta lista eu a poderia espichar para uma centena de nomes.) Ultimamente tenho adquirido, pela internet, em sebos providenciais, dezenas de livros bons da literatura brasileira que se acham, há mais de quarenta, cinqüenta anos, esquecidos. Nunca ouço ou vejo falar que algum editor pensa em reeditá-los.

Esta é a situação, receio, que me aguarda para depois que eu morrer.

Não estou dizendo tudo isto com o propósito secreto de, provocando dó ou bondosa solidariedade, conquistar os leitores que ainda não granjeei. Faço este desabafo – que também é um protesto - por duas razões principais. A primeira é que considero uma atitude falsa e uma besteira inútil um escritor esconder as suas dificuldades de se ver editado e lido posando de bem-sucedido - na vida e na carreira. Esse ingênuo comportamento tático me lembra aquele “Poema em linha reta” que Fernando Pessoa atribuiu ao seu heterônimo Álvaro de Campos: Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. Ora, eu num sou campeão de nada. Só tenho conseguido editar meus livros, desde que comecei a procurar editor (aos 18 anos de idade, em 1958) porque todo homem, por mais rejeitado que seja, sempre acaba conseguindo arranjar um amigo que com ele se solidariza e sempre alcança conquistar uma mulher que lhe dá carinho, consolo, conforto moral. Ainda bem que a vida é assim. Eu tenho tido a sorte de topar, ao longo da minha vida, com editores inteligentes e devotados que me editaram e editam por gostarem dos meus livros; mas são editores tão desprotegidos na vida, na condição de editores, quanto eu na qualidade de escritor: editores idealistas, que publicam livros por puro e exemplar amor à literatura. Cito um deles: Taylor Oriente, ao fundar, em 1967, a sua editora, em Goiânia, me disse que o fazia com a intenção precípua de editar livros meus; e enquanto sua editora existiu, cumpriu sua palavra, editando os cinco livros que lhe apresentei. E mais não editou porque mais não lhe levei. Editor poderoso - empresário bem estabelecido - me ignora. Muitos anos atrás uma editora grande do Rio me devolveu, sem abrir o pacote, os originais de um livro que eu lhe mandara. Casos assim acontecem numerosos a bem dizer todo dia. Por isto e por outras razões raramente tenho batido à porta das editoras poderosas. Falta de confiança na boa e suficiente qualidade literária dos meus livros? Não, absolutamente não. Confiança e uma saudável e justa pretensão não me faltam. Há um ano e pouco uma editora importante, a Dom Quixote, dizem que a mais prestigiosa de Portugal, editou um romance meu, Eu, Peter Porfírio, o maioral. Mas isso aconteceu porque esse livro foi escolhido dentro de um concurso literário internacional com mais de quatrocentos participantes. Sem esse concurso, não me ocorreria nunca a idéia de tentar fazer chegar livro meu à mesa dos editores da Dom Quixote.

Uma segunda razão deste desabafo/protesto é o propósito de me conservar digno de um elogio que meu pai me fez, não diretamente a mim, há muitos anos – em 1963. Ao saber que eu vencera uma certa dificuldade no Rio, meu pai (soube eu depois) declarou satisfeito a alguns amigos, em Morrinhos: “O Alaor não morre com o sangue dentro”. De fato, sempre que devo fazê-lo, tenho exercido o meu direito/dever de espernear – o folclórico “jus sperneandi”. Isso faz bem à saúde.


*Alaor Barbosa, jornalista e advogado, é autor do volume Contos e novelas reunidos e dos romances Vozes e silêncios em Imbaúbas: a morte de Cornélio Tabajara; Memórias do nego-dado Bertolino d’Abadia; Belinha: uma lenda; Eu, Peter Porfírio, o maioral; e, a sair, Vasto mundo.
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sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Vinho, Vi e Perdi...* (Raymundo Netto)



Tempos há, amargando homérico pileque, lancei-me ao cálice da abstemia. Dia desses, por sua vez, diante da convocação de amigas a pactuar música e poesia regadas ao tinto e seco, hesitei, e após atrapalhada engenharia de sacar rolhas, libertamos os deuses embotelhados, e os tomei à boca rósea e cristalina, parcimonioso, enquanto eles, ao contrário, tomaram-me por inteiro num único gole, mais ligeiramente do que língua de camelô. A noite, do que me lembram, fora linda, mas na manhã seguinte aportei em casa, sol lumioso, indo-me bêbado pela escadaria piramidesca, notoriamente trôpega também, dando-me os braços e corrimões, ao sentir-me o estômago querendo lamber os pés.

Na ébria ilusão de que molhando-me passaria o mal-estado, entrei no box do chuveiro, e, acho, apaguei! Horas mal dormidas e irrecuperáveis, já as sabia... No repente, acordei com água lá pelo pescoço e apavorei-me. Como poderia isto acontecido? Tentei abrir a porta do box e sair, mas pesou-me a lembrança da reprimenda: “Você não consegue tomar banho sem molhar o banheiro?” Ora, se com um pinguinho aqui e acolá era aquele deusnosacuda, que dirá se eu banhasse a casa inteira com aquele aguaceiro? Não, ou me sairia com um plano B ou, juro, morreria ali, afogado como um peixe.

Assim, prendi a respiração, mergulhei e descobri que a culpa de tudo aquilo fora de alguém — provavelmente as crianças em seus intermináveis banhos — que fechou a tampa do ralo. Ah, se eu escapasse daquilo... Destampei-o, imediatamente, e a água escoou, como seria de se esperar, pela tubulação. Entretanto, por inexperiência, nunca passara por tal situação, esqueci de me afastar e fui colhido num redemoinho gorgolejante d’água que me arrastou cano abaixo.

Por que não nadei? Meu amigo, nunca aprendi a nadar. Aliás, também nunca aprendi a beber, dirigir, assobiar, fazer bola de chiclete e andar de bicicleta, restando-me hoje apenas escrever, coisa que alguns afirmam, também não sei, e têm lá as suas razões...

No aperto sifonado, desacordava, quando passou-me às vistas um filme, assim mesmo como dizem, um curta decepcionante, quase apenas um trailer, e em preto e branco. Confusas imagens de meus inúmeros mundos obsoletos arrancados do peito pela desembaraçada capacidade de desprendimento e de inconclusão. A música gritava “Tempo, tempo, tempo, tempo, que sejas ainda mais vivo no som do meu estribilho”... e eu a respondia: pois que esta vida me venha bem devagar até restar-me apenas de tal tempo o seu ponteiro final.

Daí, súbito, despertei sentado à superfície de um box vazio de um tudo, exceto de um molambo pálido e nu, cuja alma pejada de inocentes pecados era banhada pelas córridas águas purificadoras gritando-lhe à meia mente a certeza de sua existência: errar, errar, errar e persistir no erro até que este, puro e besta, seja a única coisa mais certa deste mundo...


(*) baseado em Veni, vidi, vici (em português: "Vim, vi, venci"), frase do general romano Júlio César, em mensagem ao Senado após vitória na Batalha de Zela.


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Raymundo Netto que desconfia de tudo, mas acredita em qualquer coisa. Contato: raymundo.netto@uol.com.br Blogue AlmanaCULTURA: http://raymundo-netto.blogspot.com
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quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Natal (Emanuel Medeiros Vieira)


Naqueles natais


não havia peru defumado,


o irmão matava o bicho e tomava um gole de cana,


papai pegava “barba-de-velho” para fazer o presépio,


missa do galo, bonecas de pano, jogo de botão, bolinhas de gude.




Não, não é um poema sentimental.


Talvez nem seja um poema.


Almejava um texto satírico


(Ou estóico.)


Queria desdramatizar as obsessões:


não temos qualquer controle sobre o nosso destino, o futuro chegou depressa demais,


o livre arbítrio é sempre limitado.


Não, não me chamo Raimundo,


não gosto do gerúndio,


tudo já foi escrito sobre o natal.


Chega de chorumela!




Incorporo Clarice como uma entidade mediúnica:


A linguagem é o meu esforço humano.


Por destino tenho que ir buscar.


Por destino volto com as mãos vazias.




Mas quem quer saber “realmente” de literatura?


Os que a amam fundamente precisarão criar uma seita de iniciados?


(Não, não falo dos cadernos dois, da grande mídia, do autor ser valorizado apenas pelo selo da editora que o publica, das panelinhas, das feiras literárias, dos “prêmios” combinados previamente, da compulsão em aparecer e ficar famoso.


Isso é notoriedade, não literatura – vaidade vã.)




Shoppings cheios – como as novas catedrais do consumo,


pacotes, gente estressada:


tudo parece um inferno com ar condicionado.


“Uma festa”, dizem: é preciso acreditar,


Todos serão gentis, e depois esquecerão a ternura até o próximo natal, e a indústria precisa se renovar – o dinheiro, sempre ele.


As mães, como os garotos, querem celulares de última geração e eletroeletrônicos da moda.


Acabaram-se as vendinhas de antigamente.


Em troca: o sexo banalizado, a morte estúpida de todos os dias no noticiário,


Tudo descartável: gente, bolsas, jóias,


O namoro é para uma noite, “a fila precisa andar”, proclamam.


Será esta a noção de um novo inferno, e ainda não percebemos?


Custamos tanto a entender!


Não é só a política que ficou irrelevante: também a própria existência humana.


(“Fazes um discurso”, adverte um promotor interno.


Fico quieto e ele arremata: “Dás voz a um novo moralismo”.)


O nobre representante do Ministério Público diz que “isso é nostalgia”.


Talvez seja apenas busca de plenitude.


Repito: plenitude – não perfeição.




Não era shopping, eram as lojinhas perto do mercado na ilha,


naquele 24 de dezembro tão remoto ganhei um sapato,


e para a minha felicidade maior, anos depois, uma bicicleta Monark, aro 28.


Mudou o natal?


Rezávamos em frente ao presépio, e juntos íamos à missa do galo.


Mudei eu?


(Todos perguntam.)


Mudamos todos.


Sim, fomos ficando velhos, outros morreram no meio do caminho.


De algum lugar bem fundo, pergunto por “eles”.


Não, há muito já não estão aqui.


Morreram pais, morreram mães, morreram irmãs, morreram amigos.


Por onde anda o Jarbas, que fazia uma supimpa garopa ensopada?


Onde estão Símon, Ênio, Aristeu, Rosana, Adolfo, Motta, Alberto, Thiaguinho, Ivan, Ronaldo?


E os outros – tantos?


Desapareceram da terra – só isso –, e nunca mais.


É o que chamam de morte.


Alguma entidade maior me fez depositário da memória da tribo.


Às vezes, tento renunciar à obrigação, mas a imposição é irrevogável,


até chegar a minha vez, quando – quem sabe –, outro pegará o bastão.


O passado escorre úmido,


contamina o presente,


ambos enlaçados, o futuro está ali na esquina,


e o fim do mundo é depois de amanhã.




São 18 horas, “Ave Maria”,


Tento congelar o tempo – cristalizá-lo, para ele ficar sempre comigo,


converter esse precioso instante em sempre,


além de mim, além da vida, até o pó que serei.


Anoitece.


Me lembro de um piano numa tarde calma, de um subúrbio, de um pão quentinho, de uma cadeira de balanço, de um fogão de lenha, de uma tainha frita, de uma estação de trem, de um pé de amora, e também do mar – sempre ele.


O que é o tempo?


“O que é o tempo?


Se ninguém me perguntar, eu sei;


Se quiser explicá-lo, já não sei”, socorre-me Santo Agostinho (354-430).


Chamo Freud (1856-1939):


O delírio é uma tentativa de cura do sujeito frente à catástrofe subjetiva, uma nova maneira de se vincular à realidade perdida.


O que tem isso a ver com o natal?


Tudo.


E nada.


O que é tempo?


(Tento me consolar pela redundância.)


Parodiando tantos que me antecederam:


o que foi já não é,


o rio não é o mesmo,


o menino talvez esteja naquela pele enrugada,


mas isso é apenas um álibi compensatório,


que a coisificação do mundo já não contempla.


Menino na pele enrugada?


Pássaro noturno?


(Meras imagens desgastadas, inútil lirismo crepuscular?)


Fomos ficando para trás:


sou um dos últimos sobreviventes de uma raça em extinção:


a dos humanistas epistolares.




Mas também saberei rir nessa outra ceia, tantos anos depois,


com as pessoas amadas,


pois é preciso saber rir e não se dar muita importância.


Brindaremos


à vida, sim, à vida.


mesmo que a morte nos contemple naquela janela – ela sempre tem mais tempo.


O rio?


Segue o seu curso.




(Salvador, dezembro de 2010)
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quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Poetas e prosadores (1)

Nilto Maciel



Para encerrar o ciclo de comentários a livros em 2010, contei com seis obras: duas da paranaense Bárbara Lia, duas do mineiro Ádlei Duarte de Carvalho e duas coletâneas: numa, o mesmo Ádlei junto com Cláudio B. Carlos e Cleber Pacheco; noutra, Elaine Pauvolid, Marcio Carvalho, Márcio Catunda, Ricardo Alfaya e Tanussi Cardoso.

Semear (Ádlei Carvalho)




Agora


É o tempo de sonhar.


Depois


É preparar a terra,


Semear com zelo


O que foi sonhado,


Celebrar o sol,


Bendizer a chuva,


Acalentar o enredo


Da gestação.




Conquista


É a alegria do plantio,


Embora a incerteza


Da colheita.

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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Oh! Portugal (Inocêncio de Melo Filho)

(Brasileiro teria sido morto em Portugal por urinar na rua.)


A vida finda


Mas a urina ainda escorre


Pelas ruas portuguesas


E seu odor chegará às narinas lusas


Clamando por justiça.


O mijo Brasileiro corre


Escorre para o vosso mar


Para avolumar as dores


Que tu bem conheces


Oh! Portugal...






P. S. Estou fazendo minha justiça com um irmão brasileiro.
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Cartomante (Simone Pessoa)

simoneps@fortalnet.com.br



Tenho uma amiga que não passa sem consultar a cartomante. Visita a vidente toda vez que está com algum dilema ou precisa tomar decisão importante em sua vida. E como sempre acontece, ela fica satisfeitíssima. A cartomante adivinha tudo o que está acontecendo com minha amiga e ainda prevê seu futuro. Entusiasta, minha amiga não se cansa de decantar os poderes sobrenaturais da vidente. E, na esperança de me cooptar como cliente da extraordinária guru, me conta detalhes de suas consultas.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A obra poética de Iacyr Anderson Freitas

Nilto Maciel


(Iacyr Anderson Freitas)

Conheço a poesia de Iacyr Anderson Freitas desde os seus princípios, em 1982, ano de publicação de Verso e palavra. Um dos melhores poetas brasileiros surgidos no final do século XX. Recentemente, recebi dele quatro volumes: Quaradouro (São Paulo : Nankin; Juiz de Fora,MG: Funalfa, 2007); Primeiras letras (Nankin; Juiz de Fora, MG: Funalfa, 2007); Viavária (São Paulo: Nankin; Juiz de Fora,MG: Funalfa, 2010), os três com o mesmo formato gráfico; e Terra além mar (“Impresso no mês de Abril de dois mil e cinco”, em Portugal, “mantida a ortografia do Português do Brasil”). Os dois primeiros, mais A Soleira e o Século, formam a “tríade” de sua obra poética reunida.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Os homens e os outros (Cunha de Leiradella)

1
Todos os anos, em dezembro, a serra cobre-se de neve. E, depois da neve, vem o vento. Um vento frio, cortante, que assobia pelos barrancos e pelas fragas, e congela as águas das poças e dos ribeiros. O gelo faísca nas pedras e nos galhos nus dos carvalhos, e a resina dos pinheiros brilha como verniz.

O povoado é o último da serra, já no caminho da fronteira. As casas, construídas debaixo dos penedos, não têm chaminés, nem janelas. Cobertas pela neve, desaparecem na brancura, e só o fumo das lareiras se vê sair pelos buracos das paredes. As cabras e as ovelhas são recolhidas aos currais, e os cães e os gatos dormem na cinza morna dos borralhos. As mulheres fiam lã e tecem mantas de farrapos, e os homens sobem a serra, a caçar raposas e cabras, ou a passar contrabando na fronteira.

Na última casa, já na saída do povoado, junto do ribeiro, dois homens aquecem-se ao lume da lareira. Um é velho e tem a pele da cara vermelha e marcada das bexigas. Na nuca, as rugas cor-de-rosa formam losangos imperfeitos, e os cabelos são compridos e crespos. É alto e magro, e os olhos, da cor da cinza, são irrequietos e frios. Sentado no escano, ao lado do companheiro, mexe constantemente na lareira com a vareta da espingarda. O outro homem ainda é novo. Tem, também, a pele da cara vermelha e curtida do vento e da geada, e os olhos são iguais aos do velho. Só não são tão irrequietos, nem tão frios. Vestem ambos velhas samarras de bombazina, forradas de pele de raposa, e calçam chancas tachadas, de couro cru. Estão imóveis e calados há muito tempo.

Num gesto vagaroso, o velho pega num cavaco fumegante e acende a ponta do cigarro. Tira uma fumaça profunda e atira o cavaco à lareira.

- Catano! Vamos ter um bom dia.

O rapaz não se mexe e responde sem olhar para o velho.

- Se calhar.

O velho puxa outra fumaça e ajeita-se no escano.

- Soubeste que mataram o Zifa da Zefa?

O rapaz não responde e o velho puxa algumas brasas para junto das chancas com a vareta da espingarda.

- Na semana passada mataram o cabo de Bouro.

O rapaz continua imóvel, a olhar para o lume.

- Eu soube.

O velho atira a ponta do cigarro às brasas e dá uma palmada no joelho.

- Catano! O que é que tu tens, rapaz?

O rapaz continua sem se mexer, mas abana a cabeça, num gesto brusco.

- Nada, carago!

O velho bate nas brasas, com a vareta da espingarda, e as fagulhas saltam no ar.

- Boa vai ela, catano! Então o Zifa da Zefa morre na cadeia, só por mor dum filho da puta dum cabo ser promovido, deixa mulher e três filhos, e tu dizes que não há nada?

O rapaz não responde e o velho faz uma pausa.

- Diz-me cá, rapaz. Estás com medo, catano?

O rapaz levanta a cabeça e olha para o velho.

- Carago! Você bem sabe que eu nunca tive medo!

- Então, que é que tens, porra?

- Nada, já lhe disse!

O velho levanta-se.

- Está bem. Uma pessoa deve dizer sempre aquilo que acha que é certo. Onde é que está a pinga?

O rapaz volta-se e aponta a parede, atrás do escano.

- Aí dentro.

O velho tira a cabaça de dentro do forno e senta-se, e bebe alguns tragos.

- A rapariga foi à missa?

- Foi ao confesso.

O velho ri-se.

- Uns é que matam e ela é que se confessa, catano?

Bebe mais um trago e estende a cabaça ao rapaz. O rapaz abana a cabeça. O velho encolhe os ombros e coloca a cabaça em cima do escano. A seguir, levanta-se e abre a porta. Uma rajada de vento e neve sopra do pinhal e revolteia pela casa. O gato, deitado na cinza, junto dos potes, abre um olho e afila as orelhas. O velho olha a serra durante algum tempo e sorri. O vento assobia entre os pinheiros e atira a neve contra os troncos e contra os penedos. Apesar do ar gelado, o rapaz não se mexe. O velho fecha a porta e senta-se, e estende as mãos por cima do lume.

- Vento de reconco. Não tarda a parar.

Chega-se mais perto e esfrega as mãos com força.

- O cão foi com a rapariga?

O rapaz não responde. O velho recosta-se no escano e ajeita a samarra ao corpo, e fecha os olhos. O rapaz acende um cigarro e tira a primeira fumaça, e, num gesto brusco, atira o cigarro às brasas e cruza os braços no peito.

- Vou pra Caniçada.

O velho arregala os olhos e levanta-se num pulo.

- Vais pra onde, catano?

- Carago! Vou pra Caniçada, já disse.

Os olhos do velho quase se fecham.

- Vais prá barragem?

- Vou trabalhar, carago!

O velho olha para o rapaz, fixamente, durante algum tempo. A seguir, pega na cabaça e bebe dois tragos, devagar.

- Quer dizer, então, que vais pra Caniçada.

O rapaz não responde. Baixa a cabeça e fixa os olhos no lume. O velho continua a olhar para ele.

- Já lá foste alguma vez?

- Não, carago! Mas sei que estão a contratar pessoal pra trabalhar na barragem.

Calam-se. O velho senta-se e coloca a cabaça em cima do escano. A seguir, pega na vareta da espingarda e atiça as brasas.

- Quer dizer que não tens nada, ham?

O rapaz não responde.

- Porra, rapaz, será que tu não sabes o que te vai acontecer?

O rapaz continua calado.

- Fala, catano!

- Sei, carago!

- Quer dizer que sabes, e queres ir?

O rapaz não responde e o velho dá uma palmada no joelho.

- Estás doudo, rapaz?

- A Libana vai ter um filho, carago!

O velho ri-se.

- E só por mor disso queres tu ir pra Caniçada?

O rapaz não responde e o velho pega na cabaça e bebe um trago.

- Fala, catano!

- Carago! Não quero que o meu filho padeça o que eu padeço.

O velho abana a cabeça com força.

- Além de cagão, ainda tens vergonha da nossa vida, catano?

Coloca a cabaça em cima do escano e mexe nas brasas, devagar, com a vareta da espingarda.

- Rapaz, eu nunca tive pena de ninguém. Ter pena dos outros é pior do que ter pena de nós. Mas, agora, eu tenho pena de ti, caralho!

O rapaz não responde e o velho pega numa canhota e atira-a à lareira.

- Que é que tu pensas que vais fazer pra Caniçada, ham?

O rapaz encolhe os ombros.

- Porra, rapaz!

O rapaz continua calado e o velho dá um murro no assento do escano.

- Estás doudo, catano?

O rapaz olha para o velho e abana a cabeça, com força.

- Carago! Não quero que o meu filho ande sempre fugido, como eu ando.

O velho faz alguns riscos na cinza, devagar, com a vareta da espingarda.

- Olha, rapaz. Há muitos anos, quando a guerra civil andou em Espanha, também houve gente que pensava como tu pensas. Que se dissesse amém com os falangistas, salvava-se. Pois disseram amém, lamberam o cu dos alcaides e foderam-se, catano!

Faz uma pausa e cospe com força nas brasas.

- Quanto mais uma pessoa se baixa, rapaz, mais o cu se lhe vê. Olha os bichos, catano! O gato bravo foge ao cão? Muita gente diz que foge, mas não foge. Se o cão vai em cima dele, ele enfrenta-o e adeus cão. Esta serra é dura, rapaz, é madrasta, tem neve, vento, o caralho, catano, mas vê se algum bicho sai daqui. Antes livre com fome do que gordo na gaiola, rapaz.

Atira duas canhotas à lareira e ajeita-as com a vareta da espingarda.

- Se tu fores pra Caniçada, sabes o que te vai acontecer? Nem cagar direito te vão deixar. Aqui na serra, a guarda sobe mas sempre desce, catano!

Faz uma pausa e olha para o rapaz.

- A vida sempre assim foi, rapaz. Ou uma pessoa mata ou uma pessoa morre. Mas se tu fores pra Caniçada, catano, mesmo que não te matem, já morreste, rapaz.

Junta as brasas espalhadas na cinza, com a vareta da espingarda, e empurra-as para junto das canhotas.

- Uma pessoa não morre só quando morre, rapaz. Uma pessoa também morre quando não faz o que deve ser feito, catano!

Recosta-se no escano e olha para o rapaz durante algum tempo.

- Diz-me cá, rapaz. Foi a rapariga que te meteu isso na cabeça?

O rapaz não responde.

- Catano, rapaz!

- Ela nem sabe disso, carago! Eu é que quero largar esta vida.

O velho ri-se.

- Ninguém larga a vida que tem, rapaz. Cá se nasce, cá se morre. A menos que se queira passar a vida a lamber o cu dos outros, catano!

Faz uma pausa e balança a cabeça, devagar.

- Rapaz, rapaz, quando o lobo se torna cordeiro até as toupeiras lhe cagam na cabeça, catano! Sempre assim foi e há-de ser.

Faz outra pausa e ajeita as canhotas com a vareta da espingarda.

- Mas tu é que sabes.

O rapaz dá uma palmada no joelho.

- É, carago! Eu é que sei.

Calam-se. O velho aconchega a samarra ao corpo e cruza os braços no peito e fecha os olhos, e o rapaz finca os cotovelos nos joelhos e apoia o queixo nas mãos. Ficam assim algum tempo, até que um cão ladra ao longe e o velho abre os olhos.

- É o teu cão, catano!

O rapaz levanta-se e abre a porta. O dia já nasceu e o vento parou. O rapaz olha o pinhal. O cão salta na neve e ladra, com o rabo levantado e abanando. É um cão de caça, traçado de perdigueiro com coelheiro, e, visto de longe, não parece maior do que uma lebre. A mulher vem mais atrás, curvada e encapuzada no xaile, com a saia a arrastar-se na neve. Ao farejar o rapaz o cão ladra mais alto. Atravessa o ribeiro gelado com dois pulos e entra pela porta. Lambe as mãos do rapaz e lambe também as do velho. O gato continua deitado na cinza, indiferente à correria do cão. A mulher chega pouco depois. É mais nova do que o rapaz, mas também tem a pele da cara vermelha e curtida do vento e da geada. O rapaz abraça-a.

- Libana, carago!

O velho ri-se e levanta-se. A mulher afasta-se do rapaz e olha para o velho.

- Caraças! O que é que foi, padrinho?

- Não foi nada, rapariga.

O rapaz fecha a porta e aproxima-se da mulher.

- Aquece-te, carago!

O velho coloca a vareta na espingarda e prende os polvorinhos e os chumbeiros à cintura.

- Bom...

A mulher olha para o rapaz.

- Não vais caçar?

O rapaz não responde.

- Duardo, caraças!

O rapaz passa um braço na cintura da mulher e puxa-a para junto do escano.

- Aquece-te, carago!

A mulher tira o braço do rapaz e afasta-se, e o velho aproxima-se da lareira e esfrega as mãos por cima do lume.

- Rapariga, rapariga!

A mulher olha para o velho, espantada.

- Caraças, padrinho, o que é que foi?

- Não vai haver mais caça, rapariga. Nem mais caça, nem mais nada, catano!

A mulher olha para o rapaz, ainda imóvel. O velho olha para os dois e ajeita a espingarda debaixo do braço.

- Rapariga, tu não vives com um homem. Vives com um cagão, catano!

O rapaz cerra os punhos e dá dois passos em direção ao velho. A mulher segura-o por um braço.

- Caraças, Duardo!

O velho ri-se.

- Diz que vai pra Caniçada.

A mulher olha para o velho e, a seguir, olha para o rapaz.

- É verdade, Duardo?

- Carago! É por mor do nosso filho.

- Caraças! O nosso filho ainda não nasceu.

O velho ri-se.

- Mas o medo dele já nasceu, catano!

Abre a porta e coloca a espingarda em bandoleira, e cospe na neve com força.

- Rapariga, quando uma pessoa tem medo, catano, não tem mais nada.

Sai e começa a andar. O rapaz corre e segura-o por um braço.

- Carago, velho!

A mulher corre também e coloca-se entre os dois. O velho afasta-a.

- Deixa, rapariga. Deixa. Cão que ladra não morde, catano! Sempre assim foi e há-de ser.

A mulher volta-se para o rapaz.

- Queres deixar a nossa casa, Duardo?

Faz uma pausa e olha-o, fixamente.

- Mesmo que o nosso filho nasça morto, caraças?

O rapaz não responde e o velho ri-se.

- Rapariga, morto o teu filho já está, catano, se nascer igual ao pai!

O rapaz olha para o velho e para a mulher, e, sem uma palavra, num gesto brusco, entra em casa. Volta, pouco depois, com a espingarda e os polvorinhos e os chumbeiros, e, sem olhar a mulher ou o velho, assobia ao cão e começa a andar. O velho olha para a mulher e sorri, e segue atrás do rapaz.


2
A serra brilha ao sol da manhã, silenciosa. O vento parou e o gelo faísca nos penedos e nos galhos nus dos carvalhos, e os pombos bravos e as pegas e os gaios voam nos pinhais. As águias e os gaviões planam no céu sem nuvens, e os coelhos e as lebres afilam as orelhas nas saídas das tocas, atentos ao menor sinal de perigo. Escondidas entre os matos e as urzes, as charrelas ciscam a neve e piam, e os corços retouçam as folhas geladas dos silvedos. A neve escorre por entre a caruma dos pinheiros e os lobos e as raposas escondem-se nos fojos, e os javalis fossam nos chavascais, a grunhir, enraivecidos e famintos.

Lado a lado, os dois homens caminham em direção ao pinhal, as espingardas em bandoleira e nuvens de vapor a sair dos narizes e das bocas. O cão corre na frente, a farejar as touceiras que encontra no caminho. Sempre calados, os homens atravessam o ribeiro e entram no pinhal, as chancas a enterrarem-se na neve amolecida.

Uma pega voa entre os pinheiros e o velho pára, e acende um cigarro. Tira duas fumaças e aponta as encostas nevadas, que sobem até aos cumes.

- Vamos pra onde, catano?

O rapaz não pára, nem se volta.

- Às cabras, carago!

- Às cabras? Catano, prás cabras, temos que ir ao Cantarcho!

- Tem medo, carago?

O velho sorri. Isso, rapaz. Quem tem cu tem medo. Mas é melhor ter medo por ter cu do que ter medo por não ter. Começa a andar, as pernas enterradas na neve até quase aos joelhos. Ao longe, o cão ladra. O velho pára.

- Catano! É lebre!

O rapaz não pára, nem responde. O cão ladra outra vez. O velho cospe na neve e começa a andar.

- De certeza que é lebre, catano!

O rapaz fala sem se voltar.

- Carago! Eu ouvi.

Um pombo bravo voa dum pinheiro, um pouco à frente. O velho sorri. Isso, bicho. Pára e olha o vôo do pombo, serra abaixo. Vai, bicho, vai. Cada um com a sua sina. Olha a serra, a neve a cobrir caminhos e valados, e o sol a faiscar no gelo. Sempre que cá passo me lembra Lóbios. Tira uma fumaça profunda e sorri. Bons tempos aqueles, caralho. Fazia-se o que se fazia, mas o que se fazia, a valer, isso nunca ninguém disse. Tira outra fumaça e cospe na neve. Hoje, todos dizem que os populares matavam os padres e emprenhavam as freiras, mas o que os falangistas faziam, isso ninguém diz. Cospe outra vez e abana a cabeça com força. Filhos da puta. Foderam com tudo e, ainda por cima, disseram que era preciso fazer o que faziam pra mor de livrar a Espanha dos comunistas. Tira uma fumaça profunda e sopra o fumo com força. Pois fizeram o que fizeram, prenderam e mataram quem quiseram, e tudo ficou na mesma. Quem era rico, continuou rico, e, quem era pobre pagou as contas. Ajeita a espingarda no ombro e olha as encostas cobertas de neve. Como muitos fizeram por aí. Cospe outra vez e sorri. Mas cá em riba canta outro galo. Cá em riba eles fodem-se. Ah, fodem. Na semana passada morreu um. No mês que vem, se a cadeia da Portela não abrir, morre mais um. Nós também morremos. Mas, morrer, qualquer um morre. O que importa é fazer o que se tem de fazer. Deixa cair a ponta do cigarro na neve e começa a andar. Ao longe, o cão ladra e gane, em seguida. O rapaz pára e o velho aproxima-se.

- Está no Fojo, catano!

O rapaz volta-se.

- É raposa, carago!

- É raposa, pois. Se não fosse, o cão não gania.

O rapaz olha as pernas do velho, enterradas na neve.

- Está cansado?

O velho faz um gesto de enfado com a cabeça.

- Vai andando, catano! Vai andando.

Já tinham atravessado o pinhal e caminhavam agora por entre renques de carvalhos sem folhas, cobertos de neve e de gelo. Lá em baixo, à meia encosta, ficava o povoado. O rapaz olha para as casas, alapadas debaixo dos penedos e cobertas de neve, com o fumo das lareiras a sair pelos buracos das paredes. O velho está velho, mas sabe o que diz, carago! Esta serra é dura, é madrasta, é filha da puta, mas é nossa. Volta-se e olha para o velho, e sorri. Velho, você está certo, caralho! Isto aqui é nosso. É madrasto, mas é nosso. Sempre foi. O cão deixa de ganir e ladra. O velho pára.

- Catano! O cão entocou-a.

O rapaz pára também e olha para o velho.

- Quer descansar um pouco?

O velho pisa na neve com força e a perna enterra-se até acima do joelho.

- A neve é que está mole, catano!

Continuam a andar. Sempre a subir a meia encosta, pouco depois, chegam ao Fojo. A cova da raposa fica debaixo duma laje, num bosque de vidoeiros. O cão sentado na neve, está imóvel, os olhos fixos na entrada. Quando os fareja, abana o rabo, mas não se mexe. O velho examina os rastos da raposa, atentamente.

- Está manca das patas dianteiras. Se calhar, levou tiro.

- Ou encontrou lobo.

- Ou isso, catano!

O rapaz chama o cão. O cão não se mexe. O velho faz um sinal com a mão.

- Espera, que eu vou ver a saída de riba, não vá ela fugir por lá.

O rapaz acena com a cabeça e o velho afasta-se. O rapaz pega o cão ao colo e recua sobre as pegadas do velho. Na neve ficam apenas dois rastos. Um de ida, outro de volta. Pouco depois o velho dá o sinal. Um pio de mocho prolongado. O rapaz solta o cão.

- Aboca, Farrusco!

O cão corre e entra na cova, e o rapaz encosta-se no tronco dum vidoeiro. Vai dar um colete de truz, ora se vai. Engatilha a espingarda e apoia-a no braço esquerdo, pronta a atirar. Pingos de neve derretida caem-lhe na cabeça e no pescoço, mas ele não se mexe, os olhos fixos na entrada da cova. O velho está certo, caralho! Caniçada que se fôda! Na semana que vem, se a cadeia da Portela não abrir... Uma aragem perpassa-lhe pela nuca e o rapaz sente o cano duma arma a encostar-se ao pescoço. Puta que o pariu! O cano afasta-se e o rapaz volta-se. Atrás do vidoeiro, a mauser em ponto de fogo, um guarda olha para ele e ri-se. O rapaz aponta a espingarda ao chão.

- Pode abaixar a arma, carago! O cão está lá dentro.

O guarda aponta as pegadas em volta da laje.

- Raios! O outro?

O rapaz ri-se.

- Carago! Que outro?

- Quem fez isto, raios? Foi o cão?

- Fui eu que tapei a saída de riba. Pode ir ver, se quiser, carago!

O guarda estende a mão.

- Passa a arma. Mas cautela, raios! Cautela, que...

O rapaz segura a espingarda pelos canos e entrega-a ao guarda. O guarda afasta-se e pega num punhado de neve, e inutiliza as espoletas. A seguir, encosta-a no tronco dum vidoeiro e olha em redor. Tem mais de cinqüenta anos e é gordo, com a cara riscada de veias avermelhadas e os olhos empapuçados, como um sapo.

- Agora, raios, ala!

O rapaz não se mexe. O guarda dá dois passos, mas o rapaz continua sem se mexer. O guarda recua e encolhe os ombros.

- Raios! Pra mim, tanto se me dá como se me deu.

Levanta a mauser e mira o peito do rapaz.

- Três segundos pra andares.

O rapaz aponta a entrada da cova.

- E o cão, carago?

O guarda encolhe os ombros.

- Um...

- Carago! Es...

- Dois...

- Mãos pra riba, catano!

A voz do velho soa atrás do guarda, seca como um tiro. O guarda deixa cair a mauser e levanta os braços e o velho aproxima-se. O rapaz sorri e esfrega as mãos com força.

- Você demorou, carago!

O velho ri-se.

- Catano, rapaz! A pior coisa que há é uma pessoa ter a certeza que ganhou e não ganhar.

Faz uma pausa e volta-se para o guarda.

- Cartucheira, catano!

O guarda desafivela a cartucheira e deixa-a cair na neve. Conhece a fama do velho e sabe que ele nunca ameaça em vão. O velho sorri.

- Rapaz, descarrega a arma desse cabrão, catano!

O rapaz apanha a mauser e descarrega-a, e pega a cartucheira. O velho aproxima-se do guarda. Empurra-o com os canos da espingarda e encosta-o no tronco dum vidoeiro. O guarda, apesar do frio, sua. O velho sorri.

- Catano, rapaz! Sabes quem é este cabrão?

- Sei, carago! É do posto da Portela.

O velho pára de sorrir e os olhos quase se fecham.

- É. É do posto da Portela. É do posto da Portela, catano, mas também é o filho da puta que leva a metade de tudo que se passa na fronteira.

- Eu sei, carago! Mas nunca lhe paguei nada.

- Tu nunca pagaste, eu nunca paguei, mas o Zifa da Zefa pagou a vida inteira, catano!

Faz uma pausa e olha para o guarda.

- Escuta bem o que te vou dizer, ó cabrão! O Zifa da Zefa morreu e o novo cabo foi promovido. Contas acertadas. Agora, se alguém subir a serra outra vez, não desce mais. Nem pra entrar no cemitério, catano!

Gotas de suor escorrem pelo rosto balofo do guarda e brilham como neve derretida. O velho cospe na neve e aponta a mauser.

- Dá cá essa arma, rapaz.

O rapaz entrega a mauser ao velho. O velho retira o percussor e guarda-o no bolso da samarra, e quebra a coronha na laje. Atira o cano na neve e olha para o guarda.

- Ala!

O guarda treme, mas não se mexe. Tem os braços esticados por cima da cabeça e os olhos esbugalhados, fixos no cano da mauser, caído na neve. O velho ri-se.

- É por mor da arma? Tens medo de chegar ao posto sem ela?

Encolhe os ombros e sorri.

- Pois pra mim tanto se faz, catano!

Levanta a espingarda e aponta, e a neve ao lado do guarda salta no ar. O velho não precisou de dar segundo tiro. Quando o último floco pousou no chão, o guarda corria, encosta abaixo, sem capacete e com os braços a abanar, tentando equilibrar o corpo gordo. O rapaz aponta-o e ri-se.

- Carago! Parece um pato.

O velho aponta o cano da mauser, caído na neve.

- Enterra isso, catano!

O rapaz enterra o cano junto da laje e o velho carrega a espingarda.

- Vamos.

O rapaz aponta a entrada da cova.

- O cão, carago?

- Catano, rapaz!

O rapaz recarrega a espingarda e troca as espoletas, e ambos descalçam as chancas, e andam em círculos até confundir todos os rastos. Depois, aproveitam as pegadas do guarda e saem do Fojo. Seguem o primeiro ribeiro que encontram e continuam a subir.

- Quase mataste aquele cabrão, carago!

O velho ri-se.

- Nunca errei um tiro na vida, catano!

Acende um cigarro e tira uma fumaça profunda.

- Com estes cabrões, é melhor assustar do que matar. Dá mais medo, catano!

Uma hora depois o rapaz pára, a cara roxa de frio e os cabelos empastados de neve.

- Carago! Tenho os pés gelados.

O velho aponta a encosta sem árvores, que sobe até aos cumes.

- Ainda podem dar conosco, catano!

Até onde a vista alcança, agora, só os caules dos zimbros e dos tojos furam o manto branco da neve. Os homens continuam a subir e, meia hora depois, avistam a última lombada da encosta. A seguir a ela começa o muro que cerca a reserva das cabras e das corças, e termina na fronteira. O velho pára.

- Pronto, catano! Agora, só por muita sorte é que nos hão-de encontrar.

Enterram a cartucheira e as balas do guarda ao pé do muro e calçam as chancas. O gelo das pedras faísca e o ar rarefeito obriga-os a respirar pela boca. O velho olha o céu sem nuvens e as águias a planar em círculos vagarosos.

- Catano! Vai nevar.

- Tem jeito, carago!

- Está muito parado. Quando escurecer, cai neve.

Encosta-se no muro e abre a braguilha.

- Vou mijar, catano!

O rapaz olha o caminho, ladeado pelo muro, que serpenteia pela encosta. Pouco antes da última curva alguma coisa se mexe. Encoberto pelo muro, o rapaz anda alguns metros. São dois guardas. O rapaz corre de volta.

- Vêm aí dois guardas, carago!

O velho olha os vultos.

- Puta que os pariu, catano!

- Carago! E agora?

O velho encolhe os ombros e abotoa a braguilha.

- A ver vamos.

- Será por mor da morte do outro cabo, carago?

- Cá se fazem, cá se pagam, rapaz.

O velho cala-se e examina os guardas com atenção.

- Vamos, catano! Pode ser que passem sem nos ver.

Saltam o muro e descem alguns metros, agachados, encobertos pelas pedras. Param ao lado duma touceira coberta de neve e o velho aperta o braço do rapaz.

- Se nos virem, catano, tu corres pra baixo, que eu corro pra riba.

O rapaz abana a cabeça.

- Isso, nem à...

O velho puxa-lhe o braço com força.

- Faz o que eu digo, rapaz. Quando chegar o teu dia, catano, tu corres pra riba.

Os guardas andam devagar, a conversar e a fumar, com as mausers em bandoleira e os capacetes a faiscar, batidos pelo sol. Ao longe, na meia encosta, o cão começa a ladrar. O rapaz olha para o velho. O velho engatilha a espingarda.

- Catano! Cão dum raio!

Os guardas param e, um deles, aproxima-se do muro.

- Ó pá, não foi um cão?

O outro guarda atira a ponta do cigarro por cima do muro e olha a meia encosta, atentamente.

- Sim. Pareceu.

O primeiro guarda anda alguns metros e, de repente, pára.

- Ó, pá! Alguém mijou aqui!

O segundo corre e examina a neve ainda amarelada.

- Ainda estão por aí amoutados, pá. De certeza!

O primeiro guarda engatilha a mauser e encosta-se no muro.

- Ficas tu aqui, que eu vou cercá-los lá por baixo, pá.

Atira a ponta do cigarro por cima do muro e corre pelo caminho. O cão ladra de novo, já mais perto. O velho roga-lhe uma praga em voz baixa e faz sinal ao rapaz. Levantam-se, num pulo, e começam a correr. O velho, encosta acima, e o rapaz, encosta abaixo. O segundo guarda vê-os e grita ao companheiro.

- Aí vai um, pá.

O velho já quase dobrava a lombada quando o segundo guarda aponta e dá o tiro.


3
O velho aparece somente à noite. Cansado, com a cara e as mãos roxas de frio, e a roupa toda molhada. O cão fareja-lhe as pernas e lambe-lhe as mãos, e o velho acaricia-lhe a cabeça e as orelhas. A mulher levanta-se.

- Venha, padrinho. Sente-se, caraças!

O velho encosta a espingarda na parede e senta-se, e a mulher tira a cabaça de dentro do forno e senta-se também. O velho bebe alguns tragos e acende um cigarro, e volta-se para o rapaz.

- O cabrão conheceu-te?

- Não. E o outro, carago?

O velho bebe mais um trago e recosta-se no escano.

- Matei-o, catano!

O rapaz pega na cabaça e bebe também.

- Carago! O que é que você vai fazer?

O velho estende os braços por cima do lume e encolhe os ombros.

- Vou esperar que neve, catano, e vou atravessar a fronteira.

- Eu é que devia correr pra riba, carago!

- Pra quê? Pra matares aquele cabrão?

- Matava-o, carago!

O velho sorri. Levanta-se e abre a porta e olha a escuridão, com o vento já a assobiar no pinhal. O rapaz levanta-se também e aproxima-se do velho.

- Carago! Quer que eu vá com você?

O velho fecha a porta e senta-se.

- Pra quê, catano?

- Sempre somos dois, carago!

O velho ri-se.

- Catano, rapaz! Quem mata um mata dez!

O rapaz senta-se. O velho tira uma fumaça profunda e olha para ele.

- Rapaz, alguém tem de cá ficar, catano!

O rapaz não responde e o velho sorri e dá-lhe uma palmada no joelho.

- Os cabrões vão subir outra vez. Sempre sobem, rapaz. Por mor disso, é que tem de cá ficar alguém que os obrigue a descer, catano!

Recosta-se no escano e aconchega a samarra ao corpo.

- No mês que vem, rapaz, é preciso abrir a cadeia da Portela.

O rapaz olha para o velho e acena com a cabeça.

- Eu sei, carago!

O velho ajeita-se no escano e fecha os olhos. A mulher abraça o rapaz e o gato levanta-se e espreguiça-se, e aninha-se no colo dela. O cão fareja as pernas do velho e deita-se na cinza, com a cabeça em cima das chancas dele. Agora, era só esperar que nevasse.
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