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domingo, 19 de maio de 2013

O dia D (Paulo Lima)




            Apesar de estar preocupado com o dia seguinte, consegui dormir como uma pedra. Fui despertado por uma convocação enérgica de minha mãe. “Acorda, doutor”. Afobado, pulei da cama, passei as mãos no cabelo, olhei o relógio: 4 da manhã. Corri pro banheiro. Meu irmão, que dormia no quarto ao lado, também recebeu a mesma ordem. “Acorda, engenheiro”. Ela mal podia esconder o orgulho de ver seus dois filhos prontos para prestar o vestibular. Meu pai já estava na garagem checando os últimos detalhes do carro. Eu precisava avisar as meninas que a gente já estava de saída. Liguei pra Raquel e em seguida pra Daniele.  
           
          Partimos às cinco horas. Tínhamos de vencer a distância até Santa Cruz em pelo menos duas horas. Para tornar a viagem mais animada, decidimos dividir o time. Fui dirigindo ao lado de Raquel. Meu irmão se ajeitou no banco de trás com Daniele. Era uma hierarquia natural. Ele tinha um rolo com ela, mas eu não sabia direito até que ponto ia a intimidade entre os dois.  Eu era amigo de Raquel, tinha muitas afinidades com ela, embora nunca tivéssemos tentado nada um com o outro.
            Fazia um pouco de frio. Uma luz alaranjada cobria o horizonte. Vi pelo retrovisor quando meu irmão tentou se aninhar no colo de Daniele, como um gato preguiçoso. Ela tentou afastá-lo com uma cutucada discreta. Era uma reação de falso pudor.  Eu ouvia histórias a respeito dela, embora meu irmão nunca tivesse comentado nada comigo. Era o nosso primeiro vestibular, e aos 18 anos tínhamos planos grandiosos para o futuro. Raquel queria ser escritora. Dani ia ser fisioterapeuta - abriria a primeira clínica em nossa cidade. Eu cuidaria do coração das pessoas, e meu irmão construiria casas para elas morarem.
            De Raquel vinha um perfume leve e delicioso. Ela permanecia calada. Talvez pensasse nas provas. Tentei acalmá-la, embora eu mesmo me sentisse ansioso. “Aqui vou eu, rumo à literatura e à glória”, eu disse. “Ah, não brinca”, disse. “Doutor Adib Jatene que se cuide”, ela me devolveu o incentivo. Uma vez eu dancei com ela numa dessas festas típicas de cidade do interior.  Os homens enchem a cara, contam vantagem, saem cantando os pneus dos carros dos pais, transam com uma ou outra garota mais atirada, e vão pra casa dormir. Às vezes a moça engravida, encurtando a história. Eu lembro que conduzi Raquel pelo salão, enquanto eles tocavam um tema meloso do cinema do qual não consigo me lembrar.  Houve uma entrega de ambas as partes, mas no dia seguinte, quando nos vimos de novo, era como se nada tivesse acontecido.
            Um caminhão avançou ameaçador pra cima do carro. Desviei bem em tempo. Do banco de trás ouvi uma risada abafada vinda de Dani. Dei uma olhada pelo retrovisor. Meu irmão estava com a mão no meio das pernas dela, embora ela resistisse tentando afastar a mão dele. Quando voltei a olhar, estavam se beijando.  Raquel não percebeu nada. Se viu, manteve a discrição. Olhei pelo canto do olho e vi que ela estava com um ar preocupado. Ou talvez estivesse apenas concentrada nas provas, não sei bem. 
            Rodamos algum tempo calados. Foi Dani quem rompeu o silêncio. “Stop!”, ela gritou. “Stop!”, repetiu meu irmão quase ao mesmo tempo. Os dois deram uma risada. “O que foi?”, perguntei. “A moça quer dar uma aliviada”, ha ha ha ha ha ha. Espiei no retrovisor. Dani tinha um ar constrangido. Diminuí a velocidade enquanto procurava um lugar para parar. Vi uma estradinha vicinal. Entrei por ali. A estrada era de chão batido. O carro sacolejou um pouco. “Aqui está bom”, eu disse. “Tem de ser rápido”.
            Dani pulou do carro e sumiu por um instante no meio do mato. “Acho que vou aproveitar também”, disse Raquel. Ela seguiu o mesmo caminho de Dani. Meu irmão desceu do carro e pôs a mão no pau. “Dose dupla, mano, vamos atrás?”, ele propôs. Pensei em Raquel, mas desaprovei a brincadeira no ato. “A gente tem um compromisso importante daqui a umas duas horas”, eu falei. “Porra, mano, vai ser rápido. Depois a gente segue viagem”, ele voltou à carga. “Não!”, eu o repreendi.  Ele voltou a insistir. Os minutos se passaram. Comecei a ficar nervoso e meti a mão na buzina. Meu irmão insistia em seu plano. Eu o conhecia. Quando ele punha uma ideia na cabeça, ficava difícil convencê-lo do contrário.
            “Dani, Raquel”, “Dani, Raquel”, gritei. Nem sinal das duas. “Vou lá chamar”, disse meu irmão dando umas risadinhas sacanas. E desapareceu no mato. Comecei a suar. Olhei pro relógio, preocupado. Tínhamos bastante chão para percorrer.  Eu não podia jogar fora o esforço de um ano por causa de um ato irresponsável. Comecei a sentir raiva do meu irmão. E de Dani. E talvez também de Raquel.  Num gesto automático, meti de novo a mão na buzina. O silêncio era quebrado de vez em quando por um carro que passava lá na estrada. A vegetação ainda estava coberta por um leve orvalho.
            Nenhum sinal do trio. Tentei o celular do meu irmão. Estava desligado. Porra, eles não podem ter ido longe, pensei. O suor empapava minha camiseta. E não estava quente ainda. Tentei apurar o ouvido, só dava pra escutar o coaxar de um sapo madrugador. Pressionei a buzina com força, como se quisesse esganá-la, e comecei a esmurrar o volante, de tão nervoso que estava.  Liguei pro celular de Raquel. Estava fora de área. E pra Dani. Chamava mas ninguém atendia. Devia estar descarregado.
            Tomei uma decisão drástica. Tranquei o carro e fui atrás deles, seguindo por onde haviam entrado. Pisava com tanta força que o som de meus passos me ensurdecia. Eu devia estar colérico, a ponto de explodir. Aquelas putas, onde teriam ido? Porra, não podem ter ido tão longe. Devem estar de gozação comigo. Tudo bem quanto ao sacana do meu irmão e a sem vergonha da Dani. Mas Raquel não se submeteria a um jogo tão inconsequente – mas como eu poderia ter certeza? Eu não a conhecia a fundo. E se estivessem transando, os três, vencidos por uma irrupção incontrolável do desejo?  Pensei em Raquel, e me vi sufocado por um ciúme inesperado. Meu estômago doía, eu sentia uma pressão horrível nas têmporas. 
            Devo ter percorrido uns dez minutos como um zumbi. Um estalar de galho se partindo no mato me despertou. Ouvi passos rápidos que se aproximavam. Alguém parecia soluçar. Raquel surgiu do nada. A blusa estava aberta e sem os botões, como se tivesse sido forçada. Os seios, empinados e avermelhados, se moviam pra cima e pra baixo, como se tivessem vida própria. Os cabelos longos, antes tão bem escovados, pareciam vítimas de um pequeno furacão. “Raquel, pelo amor de Deus, o que houve?”, gritei correndo para ampará-la. Ela caiu de joelhos, sem fôlego, antes que eu pudesse segurá-la. 
            “Não foi culpa minha”, ela chorava. “Só fui até lá para fazer companhia a Dani. Eu estava ao lado dela, esperando que ela terminasse. Depois ela me disse que bem que gostaria de aprontar ali com seu irmão. Eu disse que não, a gente tinha um compromisso sério. Então seu irmão apareceu, ele viu Dani subindo a calcinha. Ele pediu que eu voltasse pra ficar um instante sozinho com a Dani. Eu disse que não ia embora. Ele disse que eu podia olhar, se quisesse. Eu protestei dizendo que não podíamos ser tão loucos. Dani começou então a rir de um jeito estranho. Logo ele estava dentro dela, parecia tomado por uma fúria descontrolada. Eu estava paralisada. Ele terminou rápido e investiu contra mim. Dani perdeu o controle e protestou me chamando de piranha. Seu irmão deu então um soco na boca dela, e falou pra ela não interromper. Ela caiu e ficou quieta. Deve ter batido com a cabeça. Eu tentei fugir, ele me alcançou e rasgou minha blusa. Eu caí e quando ele estava vindo pra cima de mim, eu o chutei no rosto. Consegui correr, ele me alcançou de novo, então eu o acertei na cabeça com uma pedra. Agora eles estão lá. Não sei se estão mortos”.
            Ela tremia da cabeça aos pés. Eu precisava ir até onde meu irmão e Dani estavam, tinha de ajudá-los, mas Raquel tentou me impedir.  Ela estava histérica. Se estivessem mortos, ou apenas feridos, como eu poderia ajudá-los sozinho, com Raquel descontrolada daquele jeito? Peguei Raquel pelo braço e quase tive de arrastá-la à força até o carro. “Fiquei aí”, ordenei. Retornei até o ponto onde deviam estar os outros dois. Eu pensava na prova do vestibular que talvez não pudesse fazer.   Porém estava preocupado mesmo era com a mãe e o pai. Como é que eu iria contar a eles? Eles estavam tão confiantes e punham tanta fé nos filhos.
            Abri caminho por entre a mata, na direção onde meu irmão e Dani estariam agora.     
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