Apesar
de estar preocupado com o dia seguinte, consegui dormir como uma pedra. Fui
despertado por uma convocação enérgica de minha mãe. “Acorda, doutor”. Afobado,
pulei da cama, passei as mãos no cabelo, olhei o relógio: 4 da manhã. Corri pro
banheiro. Meu irmão, que dormia no quarto ao lado, também recebeu a mesma
ordem. “Acorda, engenheiro”. Ela mal podia esconder o orgulho de ver seus dois
filhos prontos para prestar o vestibular. Meu pai já estava na garagem checando
os últimos detalhes do carro. Eu precisava avisar as meninas que a gente já
estava de saída. Liguei pra Raquel e em seguida pra Daniele.
Partimos
às cinco horas. Tínhamos de vencer a distância até Santa Cruz em pelo menos
duas horas. Para tornar a viagem mais animada, decidimos dividir o time. Fui
dirigindo ao lado de Raquel. Meu irmão se ajeitou no banco de trás com Daniele.
Era uma hierarquia natural. Ele tinha um rolo com ela, mas eu não sabia direito
até que ponto ia a intimidade entre os dois.
Eu era amigo de Raquel, tinha muitas afinidades com ela, embora nunca
tivéssemos tentado nada um com o outro.
Fazia
um pouco de frio. Uma luz alaranjada cobria o horizonte. Vi pelo retrovisor
quando meu irmão tentou se aninhar no colo de Daniele, como um gato preguiçoso.
Ela tentou afastá-lo com uma cutucada discreta. Era uma reação de falso
pudor. Eu ouvia histórias a respeito
dela, embora meu irmão nunca tivesse comentado nada comigo. Era o nosso
primeiro vestibular, e aos 18 anos tínhamos planos grandiosos para o futuro.
Raquel queria ser escritora. Dani ia ser fisioterapeuta - abriria a primeira
clínica em nossa cidade. Eu cuidaria do coração das pessoas, e meu irmão
construiria casas para elas morarem.
De
Raquel vinha um perfume leve e delicioso. Ela permanecia calada. Talvez pensasse
nas provas. Tentei acalmá-la, embora eu mesmo me sentisse ansioso. “Aqui vou
eu, rumo à literatura e à glória”, eu disse. “Ah, não brinca”, disse. “Doutor
Adib Jatene que se cuide”, ela me devolveu o incentivo. Uma vez eu dancei com
ela numa dessas festas típicas de cidade do interior. Os homens enchem a cara, contam vantagem,
saem cantando os pneus dos carros dos pais, transam com uma ou outra garota
mais atirada, e vão pra casa dormir. Às vezes a moça engravida, encurtando a
história. Eu lembro que conduzi Raquel pelo salão, enquanto eles tocavam um
tema meloso do cinema do qual não consigo me lembrar. Houve uma entrega de ambas as partes, mas no
dia seguinte, quando nos vimos de novo, era como se nada tivesse acontecido.
Um
caminhão avançou ameaçador pra cima do carro. Desviei bem em tempo. Do banco de
trás ouvi uma risada abafada vinda de Dani. Dei uma olhada pelo retrovisor. Meu
irmão estava com a mão no meio das pernas dela, embora ela resistisse tentando
afastar a mão dele. Quando voltei a olhar, estavam se beijando. Raquel não percebeu nada. Se viu, manteve a
discrição. Olhei pelo canto do olho e vi que ela estava com um ar preocupado.
Ou talvez estivesse apenas concentrada nas provas, não sei bem.
Rodamos
algum tempo calados. Foi Dani quem rompeu o silêncio. “Stop!”, ela gritou.
“Stop!”, repetiu meu irmão quase ao mesmo tempo. Os dois deram uma risada. “O
que foi?”, perguntei. “A moça quer dar uma aliviada”, ha ha ha ha ha ha. Espiei
no retrovisor. Dani tinha um ar constrangido. Diminuí a velocidade enquanto
procurava um lugar para parar. Vi uma estradinha vicinal. Entrei por ali. A
estrada era de chão batido. O carro sacolejou um pouco. “Aqui está bom”, eu
disse. “Tem de ser rápido”.
Dani
pulou do carro e sumiu por um instante no meio do mato. “Acho que vou
aproveitar também”, disse Raquel. Ela seguiu o mesmo caminho de Dani. Meu irmão
desceu do carro e pôs a mão no pau. “Dose dupla, mano, vamos atrás?”, ele
propôs. Pensei em Raquel, mas desaprovei a brincadeira no ato. “A gente tem um compromisso
importante daqui a umas duas horas”, eu falei. “Porra, mano, vai ser rápido.
Depois a gente segue viagem”, ele voltou à carga. “Não!”, eu o repreendi. Ele voltou a insistir. Os minutos se
passaram. Comecei a ficar nervoso e meti a mão na buzina. Meu irmão insistia em
seu plano. Eu o conhecia. Quando ele punha uma ideia na cabeça, ficava difícil
convencê-lo do contrário.
“Dani,
Raquel”, “Dani, Raquel”, gritei. Nem sinal das duas. “Vou lá chamar”, disse meu
irmão dando umas risadinhas sacanas. E desapareceu no mato. Comecei a suar.
Olhei pro relógio, preocupado. Tínhamos bastante chão para percorrer. Eu não podia jogar fora o esforço de um ano
por causa de um ato irresponsável. Comecei a sentir raiva do meu irmão. E de
Dani. E talvez também de Raquel. Num
gesto automático, meti de novo a mão na buzina. O silêncio era quebrado de vez
em quando por um carro que passava lá na estrada. A vegetação ainda estava
coberta por um leve orvalho.
Nenhum
sinal do trio. Tentei o celular do meu irmão. Estava desligado. Porra, eles não
podem ter ido longe, pensei. O suor empapava minha camiseta. E não estava
quente ainda. Tentei apurar o ouvido, só dava pra escutar o coaxar de um sapo
madrugador. Pressionei a buzina com força, como se quisesse esganá-la, e comecei
a esmurrar o volante, de tão nervoso que estava. Liguei pro celular de Raquel. Estava fora de
área. E pra Dani. Chamava mas ninguém atendia. Devia estar descarregado.
Tomei
uma decisão drástica. Tranquei o carro e fui atrás deles, seguindo por onde
haviam entrado. Pisava com tanta força que o som de meus passos me ensurdecia.
Eu devia estar colérico, a ponto de explodir. Aquelas putas, onde teriam ido?
Porra, não podem ter ido tão longe. Devem estar de gozação comigo. Tudo bem
quanto ao sacana do meu irmão e a sem vergonha da Dani. Mas Raquel não se
submeteria a um jogo tão inconsequente – mas como eu poderia ter certeza? Eu
não a conhecia a fundo. E se estivessem transando, os três, vencidos por uma
irrupção incontrolável do desejo? Pensei
em Raquel, e me vi sufocado por um ciúme inesperado. Meu estômago doía, eu
sentia uma pressão horrível nas têmporas.
Devo
ter percorrido uns dez minutos como um zumbi. Um estalar de galho se partindo
no mato me despertou. Ouvi passos rápidos que se aproximavam. Alguém parecia
soluçar. Raquel surgiu do nada. A blusa estava aberta e sem os botões, como se
tivesse sido forçada. Os seios, empinados e avermelhados, se moviam pra cima e
pra baixo, como se tivessem vida própria. Os cabelos longos, antes tão bem
escovados, pareciam vítimas de um pequeno furacão. “Raquel, pelo amor de Deus,
o que houve?”, gritei correndo para ampará-la. Ela caiu de joelhos, sem fôlego,
antes que eu pudesse segurá-la.
“Não
foi culpa minha”, ela chorava. “Só fui até lá para fazer companhia a Dani. Eu
estava ao lado dela, esperando que ela terminasse. Depois ela me disse que bem
que gostaria de aprontar ali com seu irmão. Eu disse que não, a gente tinha um
compromisso sério. Então seu irmão apareceu, ele viu Dani subindo a calcinha.
Ele pediu que eu voltasse pra ficar um instante sozinho com a Dani. Eu disse
que não ia embora. Ele disse que eu podia olhar, se quisesse. Eu protestei
dizendo que não podíamos ser tão loucos. Dani começou então a rir de um jeito
estranho. Logo ele estava dentro dela, parecia tomado por uma fúria
descontrolada. Eu estava paralisada. Ele terminou rápido e investiu contra mim.
Dani perdeu o controle e protestou me chamando de piranha. Seu irmão deu então
um soco na boca dela, e falou pra ela não interromper. Ela caiu e ficou quieta.
Deve ter batido com a cabeça. Eu tentei fugir, ele me alcançou e rasgou minha
blusa. Eu caí e quando ele estava vindo pra cima de mim, eu o chutei no rosto.
Consegui correr, ele me alcançou de novo, então eu o acertei na cabeça com uma
pedra. Agora eles estão lá. Não sei se estão mortos”.
Ela
tremia da cabeça aos pés. Eu precisava ir até onde meu irmão e Dani estavam,
tinha de ajudá-los, mas Raquel tentou me impedir. Ela estava histérica. Se estivessem mortos,
ou apenas feridos, como eu poderia ajudá-los sozinho, com Raquel descontrolada
daquele jeito? Peguei Raquel pelo braço e quase tive de arrastá-la à força até
o carro. “Fiquei aí”, ordenei. Retornei até o ponto onde deviam estar os outros
dois. Eu pensava na prova do vestibular que talvez não pudesse fazer. Porém estava preocupado mesmo era com a mãe
e o pai. Como é que eu iria contar a eles? Eles estavam tão confiantes e punham
tanta fé nos filhos.
Abri
caminho por entre a mata, na direção onde meu irmão e Dani estariam agora.
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