Ao entrar na era industrial, o Brasil quase nada mudou. Antes seu povo vivia em sua quase totalidade no campo, reduzido à condição de semi-servos. Quando as cidades começaram a inchar pelo êxodo rural, ocorreu o fenômeno da migração interna, sobretudo do Nordeste para São Paulo, assim como antes ocorrera para a Amazônia. Era o canto de sereia da cidade grande chamando os desgraçados para o abraço fatal. O homem foi, assim, enxotado do campo para a cidade, onde esperava encontrar uma vida melhor ou, quando muito sonhava, a vida que nunca teve e só conhecia de ouvir falar: a vida de fartura e enriquecimento. Pura ilusão! De lavrador faminto, cadáver vivo, passou a operário espoliado, igualmente faminto, envelhecido precocemente, como quando trabalhador da terra, favelado como jamais poderia supor e, ainda por cima, estropiado, mendigando uma esmola do INPS. Na verdade, o falado crescimento econômico do Brasil nunca serviu aos trabalhadores. O ABC paulista, centro industrial do país, é o melhor exemplo disso.
Esta tese está na boca dos personagens de A Capital do Automóvel, romance-documentário de Antônio Possidônio Sampaio, ainda mais porque, se alguns falam em voltar para suas terras de origem, o fazem apenas como expressão de inconformismo. Porque voltar seria buscar aquilo de que fugiram. E voltar para que e como, se já não podem sequer plantar, velhos e estropiados que estão? O jeito é permanecer nas favelas, mendigando um encosto junto à previdência social, definhando aos poucos, como antes, e esperar por melhores dias.
Como num calidoscópio, os personagens vão se sucedendo dentro de um amplo quadro de contradições sociais: ora fala um ex-operário que, já velho, relembra a época do surgimento do parque industrial e das lutas sindicais, ora um operário novo que, inconsciente ao drama de sua classe, nem sequer conhece o sindicato ou o tem como mero órgão assistencial. E, entre as duas formas extremas de encarar a realidade, vão aparecendo aqueles que constituem o lumpemproletariado: ora são prostitutas que um dia deixaram seus sertões e suas cidadezinhas pobres e foram “ganhar a vida” nos grandes centros, ora são caranguejeiros, empregados de escritório e outros tipos sociais do submundo da marginalidade, a terceira face deste mundo criado pelo “desenvolvimento” industrial. Porque de um lado estão as multinacionais (personagens misteriosamente invisíveis), com sua pequena humanidade de operários e, à margem de tudo, os que, como rebotalhos da engrenagem social, medeiam entre o trabalho e a improdutividade.
A técnica utilizada por Possidônio é a da confissão feita pelos personagens, que vão contando pedaços de suas vidas, entrevistados que são por um personagem invisível. Diz-se assim porque o livro é rotulado de romance. Fosse reportagem, o tal personagem invisível seria um repórter. De qualquer forma, o livro é um documento corajoso e importante.
Do bojo do romance e, sobretudo do capítulo final, emerge o foco central da questão: o sindicato, a greve e a luta de classes. Ora falam os trabalhadores velhos e experientes, como João Serrador e Nego Bláster, ora os jovens, encarnados na pessoa de uma mulher – Mirian, cujo noivo não passa de um operário inconsciente, conflito de que o autor poderia engendrar um bom romance, sobretudo relevando o papel desempenhado pelas novas mulheres operárias.
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