(Para Carlos Studart Filho)
Eu lia Jorge Garstman, quando ouvi gritos vindos da rua. Preocupado, fechei o livro e, enquanto me dirigia à janela, repetia o nome de Jacó Rabbi, como se do outro lado da parede ele estivesse sendo assassinado. O doido Manuel açoitava o tempo com os braços, pregando à pequena multidão de moleques e vagabundos do bairro.
— Os holandeses vão chegar. Já estão nas proximidades de Jacaúna – bradava o orador.
Vaias estrondavam em meio a estridentes. O pregoeiro ria um riso de satisfação, olhos além da platéia, do casario, como se alcançasse a praia distante, escondida pela cidade. Decerto orgulhava-se de ser o primeiro a dar a notícia.
Ao me avistar, aproximando em zum os olhos para pouco além do foco dos canalhas, avançou em minha direção, rompendo o cerco caçoista.
— Você é filho do Clemente?
Disse sim e o convidei a entrar. Não me importava estivesse em dia de insânia. Ele sabia mais do que todos aqueles cegos que só viam guerras nos cinemas e o mar aos domingos. E eu nutria uma admiração estranha por aquele sábio menosprezado e insultado, aquele irmão vindo não sei de onde, talvez neto de cariris, de adoradores do Boi Santo, ensandecido por herança. Imagino seus ancestrais dizimados a ferro frio pelos Amaro Maciel Parente e caterva.
Dirigiu-se à porta, que fui abrir, apressado, como se atendesse ordem sua. A multidão acercava-se da casa, sequiosa de novo espetáculo, saudosa do palhaço fugitivo. Fechei porta e janela, ciumento daqueles olhos de esquina, daquelas bocas impiedosas.
Já sob a sombra de minhas telhas, o homem era outro. Transfigurara-se, branco feito vela, trêmulo como chama, nem louco nem Manuel.
— Marina, traz um copo com água para este senhor – gritei.
Indiquei-lhe a cadeira, retirando o livro do assento, enquanto tentava copiar-lhe todas as feições. Enganara-me, de fato – não se tratava do maluco do bairro, a alegria dos que dormiam na coxia e se embriagavam de música todo santo dia.
Marina trazia em uma bandeja um copo com água quente e, oferecendo-o a Manuel, cochichou ao meu ouvido:
— Quero ver se ele é doido mesmo. Eu estava ouvindo a lengalenga dele lá da cozinha.
Não recebeu o copo. Deixasse sobre a mesinha. Apanhou meu livro, abriu-o e dirigiu-se a mim:
— Quero ver se ela não esfria hoje.
Veio-me à cabeça, de imediato, a figura acesa de minha mulher, que logo apaguei, olhos na água.
Pôs-se a ler, em voz alta: "Os nativos dessa zona solicitaram ao Conde Maurício e ao Conselho que tomassem o forte português lá existente a fim de libertá-los da opressão em que viviam."
Eu quis dizer a Marina que ela estava enganada. Fosse buscar água gelada, deixasse de rir daquele jeito de moleca. Porém, ao olhar novamente para o homem, reconheci nele o doido Manuel. Para tirar as dúvidas, interrompi-lhe a leitura:
— Não serão os alemães?
— Holandeses – gritou, ferindo-me com seus olhos de mensageiro.
— Mas eles não vêm pelo ar?
Não me deu segunda resposta e continuou a ler e rir. Voltei-me para Marina e pensei em lhe pedir desculpas. Não, não estava enganada, deixasse a água quente ali mesmo, esquecesse a geladeira, risse à vontade, assobiasse, vaiasse, molecamente.
— Acho que vêm de Recife – respondeu-me, por fim.
Em tom de brincadeira e para forçá-lo a dizer de que estava falando, imaginei um hippie nordestino:
— Na certa, são cangaceiros de cabelos oxigenados.
Pareceu não ouvir ou não aceitar minha provocação. E, como se desse por encerrada a conversa e se tratasse de velho amigo nosso, freqüentador habitual de nossa mesa, parente muito próximo, levantou-se e dirigiu-se ao corredor, sempre a ler. Tropicou na mesinha, o copo rolou e espatifou-se ao chão, enchendo a sala de água. Nem sequer olhou para o estrago e muito menos pediu desculpas.
Marina levou as mãos à cabeça e ajoelhou-se, irritada. Queria impedir que os cacos de vidro se estilhaçassem ainda mais e a água inundasse toda a sala. Conteve-se e, olhos em mim, como a pedir perdão por ter agido ao primeiro impulso, falou em ir buscar uma estopa à cozinha.
Seguimos os três pelo corredor, ele à frente, seguido dela.
— Aqui está a notícia por inteiro – gritou o visitante, já pisando a sala de jantar. – “Fundeará amanhã na enseada do Mucuripe o navio Nieuw Nederlandt, trazendo índios pernambucanos, cuja missão será a de preparar o terreno para a tomada do Siará pelos batavos.”
Não tive mais dúvidas: estávamos com um louco dentro de casa. E, pior, na cozinha, perto do fogo e das facas. Pensei em pedir socorro a Marina, mas ela voltara à sala e, ajoelhada junto aos cacos de vidro, cantarolava, mirando-se na água, que não esfriava. Talvez fosse possível esconder facas, garfos e fósforos, e convencer Manuel a publicar sua notícia caduca na esquina.
Odiei-me, chamei-me ingênuo, apiedei-me de minha piedade por aquele pobre diabo, aquele maníaco que transformava bulas em tratados de teologia. Amaldiçoei meu cristianismo tantas vezes negado da boca para fora. Desesperado, desejei a invasão imediata de minha terra por tropas estrangeiras. De preferência, holandesas. Se possível, nazistas. E seu primeiro ato de brutalidade atingisse Manuel.
Assim pensando, não ouvi quando me pediu água gelada. E, como não lhe atendesse, escancarou a porta da geladeira e despejou goela a dentro todo o conteúdo de uma garrafa, em tempo de a engolir.
Só alertei com o vozeirão do louco, livro aberto no rumo das bananeiras do quintal, biquinho, a recitar: “Monsieur le major Garsman, ci-devant commandant de la milice à Siara...”
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