À primeira vista, parecerá que as palavras são excessivas no livro Enquanto o céu não cair, de Diogo Fontenelle. Logo, contudo, estará evidente o engano. Uma palavra a menos, e toda a sua estrutura poética estaria desfeita. Assim, não se há de falar em depuração de linguagem, em desbastamento. Trata-se de um estilo, uma maneira de transportar para o código da escrita a poesia que jorra farta. Toda essa justificação não invalida, entretanto, a crítica segundo a qual a Diogo Fontenelle falta certo cuidado na laboração do poema. Seria o caso de reescrever alguns versos, não se deixar encantar pela aparente simplicidade formal.
Quase no meio do livro aparece um poema, “Precisão”, que poderia vir na primeira página. Não por ser dos melhores, mas por definir a luta do poeta com as palavras, seu modo de elaborar o poema: “Preciso de muitas voltas no mesmo ponto/ para dizer coisas diferentes de mesmas coisas”.
Essa refrega, esse ir e vir, esse desassossego no momento de martelar a palavra acompanham Fontenelle sempre, como ferreiro da poesia. Ora invadido de esperança, a “esperar qualquer coisa muito grande/ como a explicação de tanta resistência”, ora desesperado, amargurado (“Não sou amargo por vocação,/ mas por palmatória e humilhação”).
Todo o livro é um breviário de solidão, um diário de solitário, tudo de uma beleza comovente, como em “Dormi muito tempo grudado a mim mesmo/ e me desfaço fora de minhas bandagens”. O personagem repele o outro, prefere enclausurar-se em si mesmo: “Para que serve o Próximo?/ Para mostrar que é pouco ser infeliz sozinho”. Como se ainda fosse feto. Voltar ao útero, “pegar uma carona de volta”. Sendo isso do reino do impossível, resta parar no meio do caminho, apear no bosque de fadas, no mundo do faz-de-conta, no tempo das adivinhações e das brincadeiras.
A própria linguagem, algumas vezes, é a da infância, como em “Herança”, sublime até pelas rimas, a lembrar o Jorge de Lima de “O Mundo do Menino Impossível”, “Oração”, “Meninice” e outros. Exemplo disso também é “Foi no Parque de Diversões”.
Utilizando-se desse veio de informações e poesia – a própria comunicação infantil –, o poeta cria momentos insuperáveis, como em “O que é, o que é?”. E basta um só verso no encerramento do texto reconstruído: “Corra logo atrás de você mesmo!”
O mundo da infância povoa o livro em toda sua geografia. E surge uma topografia poética rara em nossos dias. Bastariam versos como estes, para garantir a Diogo a patente de topógrafo da poesia: “Os sonhos dos meus amigos/ dançavam nos cadernos/ e pulavam as janelas”.
Para não transcrever outros versos, só mais duas referências: “Queres saber de mim?” e “Se contarem a minha história...”, poemas verdadeiramente sinfônicos.
Antes de Enquanto o Céu Não Cair, Diogo Fontenelle havia publicado Reticências. Ambos, um encanto. O leitor poderá aborrecer-se aqui e ali, todavia se sentirá satisfeito com uns poucos aborrecimentos em meio a tantos encantamentos.
O universo humano é concretamente uno, porém alguns poetas, em luta com a lógica do conhecimento, têm conseguido o milagre de dividi-lo em dois. Se exagero, arranjo outro verbo e faço concessões aos sábios: poetas existem que discernem dois mundos. Um a circundá-los, limitado no espaço e no tempo, a enclausurá-los; outro, sem limites. Para ingressar neste último, basta abrir a porta do sonho.
Diogo Fontenelle não somente duvida da lógica – faz poesia do outro lado da razão científica. E viaja dia e noite, vestido de marinheiro, pelos mares do Sonho, e aporta na Infância, esse país sem donos, anterior ao pecado original.
Em essência, toda a poesia de Aquário do Sonho – Sudário da Infância se circunscreve a essa transmigração do lado bruto da vida para as águas do passado, do vivido. Poder-se-ia falar até em metempsicose – o poeta habita também o espaço da infância.
Como interpretar, no entanto, a poesia de Diogo Fontenelle, sobretudo se tão cheia de símbolos? Porque também um bar simboliza um porto, uma porta. Mas sonham os que bebem ou sonha o poeta com a possibilidade de sonhos dos que bebem? Nos cartões-postais inscrevem-se paisagens propiciatórias de fugas, a relembrar os reinos encantados dos contos infantis. Nas capas dos cadernos desenhavam-se aventuras. E sonhava o menino e sonha o poeta com o menino que sonhava.
Tudo é motivo para a viagem de Diogo. Parte para o lado enterrado da vida e o desenterra, cava-o, busca-o, mete as mãos no chão, como o fazia antigamente no quintal da casa. De primeiro, procurava o mistério e, como só encontrasse mais terra, inventava novos mistérios. Agora, reinventa o menino e seus enigmas. Reinventor de si mesmo, anseia por novas reinvenções, posto que é sem limites o mundo do sonho e da infância. Muito chão a escavacar, muita coisa a contar.
Essa opção pelo ambiente esquecido do homem não impede, porém, que Diogo Fontenelle toque nas chagas coletivas. Em “Hoje tem espetáculo” está presente a questão social, apesar de noutro poema pedir perdão por nada dizer dela. Explica-se, contudo: sua questão pessoal não deixa de ser social. E prevê: “muito em breve nos abraçaremos”.
O poeta não consegue entender a natureza do espetáculo do mundo. Vê-o, claro, mas atormenta-o o passado. E enfia a cabeça no sudário da infância. Olha para dentro, mergulha no Aquário fundo de onde veio. De onde viemos todos. Da meninice, do útero e da água, segundo alguns sábios.
Ou do Sonho dos Deuses?
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